Por Mano Ferreira

[dropcaps]P[/dropcaps]oucas coisas me irritam tanto quanto eleições. Nessa época, a complexidade do debate político se reduz a um Fla X Flu sob a égide dos mais fanáticos membros de torcidas organizadas.

É quando criticar um político em específico parece automaticamente transformar o crítico num amante do adversário – binarismo simplório que, como a maioria dos binarismos, possui um elemento objetificante no que concerne às pessoas: todo o universo amplo e sofisticado que compõe a identidade e dá forma à visão de mundo do sujeito é limitada por uma única característica, que apaga todas as demais.

Em ensaio recente, conceituei essa desconsideração da condição de sujeito como opressão: esquece-se que, antes de tudo, o que importa são as pessoas – e que elas são complexas e diversas, o que é de uma beleza encantadora. Sob esse aspecto, infelizmente, o período eleitoral tem se mostrado, talvez com singular intensidade, um tempo bastante propício à propagação desse conceito de opressão.

Fosse uma palavra em voga no início do século XX, tenho a impressão de que opressão teria feito parte do vocabulário habitual de Karl Popper, filósofo austríaco que amava radicalmente o indivíduo, com toda sua expressão de pluralidade, e denunciou os mecanismos próprios à sociedade fechada. Pois bem, a minha tese é que sociedade fechada e opressão têm exatamente a mesma origem.

Popper dizia que o fundamento da noção enclausurada de sociedade estava na estrutura da mentalidade. Ao destrinchar tais características, ele descreveu três conceitos fundamentais: tribalismo (o principal), coletivismo e historicismo (que são específicas formas de manifestações do primeiro).

A tríade se apresenta de modo completo neste período eleitoral. Vejamos:

1. O tribalismo é constituído a partir de crenças mágicas, tabus místicos que nublam a compreensão da realidade – a típica santificação do candidato salvador da pátria, tão curiosa quanto a satanização do candidato lucifer, que decaiu da humanidade e decretará o fim de toda a existência. Há ainda um aspecto gregário, um sentimento de disputa “nós x eles”, “meus iguais x diferentes de mim”.

2. Coletivismo é a redução das pessoas a uma única coletividade dentre as várias que compõem sua identidade, o que faz com que uma característica – no caso eleitoral, o candidato que se apoia – seja preponderante sobre todas as outras coisas, capaz de decretar o coleguismo ou a inimizade eterna. Nesse caso tem também uma espécie de organicidade cósmica, como se todas as pessoas que votassem num candidato fizessem parte de um mesmo todo, com vida própria e características definidas.

Afinal, todo Dilmista é um petralha totalitário ou um esfomeado sem-cérebro, não é mesmo? Assim como todo Aecista é um monstro direitista da Marcha com Deus Pela Família apologista da ditadura militar ou recebe financiamento da CIA pra estimular o entreguismo da riqueza nacional. Aliás, um Aecista também pode ser um mauricinho playboy sacana que não está nem aí para os pobres e deseja um holocausto pra varrer os nordestinos da terra. Vai dizer que não sabia?

3. Historicismo é a crença de que a história humana é regida por regras universais que se confirmam independentemente de outros fatores, até mesmo da vontade do conjunto de indivíduos do país. Se Dilma for reeleita, o Brasil virará a Venezuela e o mar virará Sertão, com estatuas de Lula enfeitando a distopia soviética. Mas se Aécio for presidente, acabarão as universidades, os funcionários públicos levarão chicotadas e a elite capitalista dominará os destinos das criancinhas, hipnotizadas pelos produtos da Disney.

Um dos tribalismos mais destacados na política brasileira atualmente – e que consegue ultrapassar minha cota suportável de irritação – é a demonização do PSDB. Vá lá, eu concordo que a fisionomia do José Serra ajuda muito a conectá-lo com o enxofre, assim como a sua hipocondria autoritária pavimenta o ambiente flamejante. Fossem esses os motivos do estigma – ou, pelo menos, a lógica de enfrentamento da criminalidade baseada na guerra às drogas e no encarceramento -, confesso que até acharia razoável. O problema é que essa rotulação demoníaca parte de impressões contrafactuais: a ideia de que os tucanos empreendem um projeto (neo)liberal, privatista e contrário a programas sociais. O PT, por outro lado, representaria um projeto consistente de esquerda, reformador do estado e promotor da justiça social através do oferecimento de oportunidades e do Bolsa Família.

O ponto é que essa dicotomia não existe na realidade para além do âmbito discursivo: são somente confusões eleitorais. Sem grandes divergências concretas, Dilma e Aécio poderiam ser do mesmo partido. Do ponto de vista ideológico, afinal, como bem faz questão de colocar o Eduardo Jorge (que foi candidato à presidência pelo PV, mas participou da direção nacional do PT por mais de 20 anos), PT e PSDB fazem parte de uma mesma grande família de partidos: o socialismo. Enquanto o PT possui tendências ao socialismo marxista-leninista atualizado, o PSDB se alimenta do chamado socialismo democrático: aquele que, a partir do evidente fracasso soviético, passou a defender uma reforma no modo de funcionamento estatal – motivo pelo qual há adoção de certos trejeitos chamados de neoliberais -, mas com a manutenção da crença no papel central do estado enquanto indutor do desenvolvimento sócio-econômico.

Esse panorama ideológico também se confirma na prática. É notório que certos aspectos tidos como avanços do governo Lula só foram possíveis a partir de outros avanços do governo FHC – até porque não se pode analisar as medidas e os índices sociais de modo alheio ao momento histórico.

Antes de FHC, vivíamos um panorama de hiperinflação estimada em mais de 900% ao ano. Isso significava que o trabalhador tinha o seu salário corroído e seu poder de compra esmagado a cada instante. Na prática, o Brasil vivia um cenário caótico e ingovernável: não são raros os relatos de verdadeiras epopeias logísticas familiares para a compra de utensílios simples da feira doméstica, como leite ou maionese. Relembre nossos últimos 25 anos de história sócio-econômica e sinta um pouco do desespero desse cidadão, que ficou famoso como “o fiscal do Sarney”:

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Se a compra de um café era digna de relatos heróicos para a classe média, imagine então a possibilidade de planejamentos econômicos de longo prazo para os pobres, como a compra de uma casa própria. Nesse cenário, o maior programa social possível era vencer a inflação. Evidência disso é o impacto imediato trazido pelo Plano Real no combate à miséria, efeito superior ao do Bolsa Família. Esse gráfico é bem claro:

extrema pobreza

Mas o que foi o Plano Real? Em termos simples, a redução dos gastos estratosféricos do governo. Um contexto de hiperinflação aponta uma compulsão por gastos nos agentes estatais. Não havia qualquer incentivo à prudência econômica, pois uma sensação artifical de abundância eterna advinha da lógica – tão absurda quanto em voga naquela época – de que qualquer escassez poderia ser resolvida ligando a máquina de imprimir dinheiro.

Acabar com a inflação era justamente desligar a máquina de imprimir dinheiro. Foi para isso que puxou-se o freio de mão, com força, nos aumentos de gastos públicos. Jamais por uma convicção em favor do estado mínimo ou do liberalismo. Também nesse momento entraram em campo as “privatizações” – na verdade, um rearranjo formal e administrativo do modo com que o estado controlava a economia, mas nem de longe representaram uma retirada do estado ou algo verdadeiramente liberal.

Também não seria verdadeiro dizer que o governo FHC se resume a esse aspecto econômico. Também ali foi criado o modelo de programas sociais com transferência direta de renda, sendo o Bolsa Escola o mais famoso deles. Por sinal, o programa estava inserido no contexto de dois objetivos paralelos daquele momento e que tinham bastante teor social: a erradicação do trabalho infantil (então bem mais presente e perverso que atualmente) e a universalização do acesso ao ensino básico (de péssima qualidade, como se sabe). No campo da saúde, houve ainda a (também péssima) estruturação do SUS, sistema que foi criado pela constituição mas até então era meramente ficcional.

Ao assumir o governo, Lula manteve o arcabouço econômico de FHC, abriu mão do modelo de projeto que sempre havia defendido para o combate à fome e aprofundou o sistema de transferências diretas, criando o Bolsa Família. É curioso notar que o governo Lula foi mais uma continuidade do governo FHC do que o governo Dilma foi uma continuidade do governo Lula.

Não é bom deixar que as paixões eleitorais momentâneas criem estigmas distantes da realidade. PT e PSDB tiveram governos de continuidade de ciclo, não de rompimento e oposição. O PT assumiu o governo, afinal, sem modificar a macro-estrutura gerencial do PSDB, baseada em estabilidade econômica e programas sociais de transferência direta. Os fundamentos econômicos só vieram a ser modificados após a crise de 2008, o que tem trazido os problemas atuais que ameaçam a estabilidade.

É bem verdade que também houve, do governo Lula para o governo Dilma, um aumento de outras ações governamentais de caráter eminentemente elitistas, como o Ciência Sem Fronteiras (que beneficia os estudantes que já estão no topo do sistema educacional) e os subsídios do BNDES às grandes empresas – mas o rumo dos acontecimentos nos permite sugerir que esse elitismo não tenha vindo antes mais por uma impossibilidade prática no contexto do combate à inflação do que por uma falta de desejo.

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Evidentemente que ambos os partidos também têm alguns méritos. Não se deve infantilizar a escolha do eleitor, nem podemos ignorar que FHC foi o único presidente reeleito em primeiro turno desde o fim da ditadura militar. Digo isso porque é curioso constatar que, hoje, a intensidade do voto nordestino no candidato presidencial do PT é encarado por alguns com ares revolucionários de uma suposta consciência de classe. Mas se seguirmos a lógica, o que representava o voto massivo do interior nordestino ao candidato FHC – tão massivo a ponto de elegê-lo em duas ocasiões sem necessidade de segundo turno? Como respondem os que demonizam FHC? Será que a consciência de classe aflorou subitamente em 2002 e, desde então, se arraigou firmemente no povo?

Evidentemente que a aprovação social em momento nenhum indica que o governo FHC tenha sido perfeito – muito menos que teria sido melhor ao país uma vitória de Serra, o hipocondríaco, contra Lula, que não aconteceu também por vontade das urnas. A história não vive de “se”. Nenhum governo é perfeito – nem tampouco completamente ruim. FHC, assim como Lula, foi somente um político – buscou consagração através do poder, exercendo-o com diversos problemas, mas também propiciando alguns avanços.

Esses estigmas apaixonados rasos e distantes da realidade são somente um tribalismo e fazem mal à compreensão da história do país, do momento sócio-econômico que vivemos e das demandas estruturais que o país possui atualmente – uma delas, a derrota do pemedebismo. Se quisermos construir uma sociedade aberta, não podemos continuar alimentando esses espécimes de tribalismo.

Com esse texto, talvez alguns me acusem de ser tucano pelo simples fato de interpretar a história a partir de evidências, e não de estigmas. Ou outros digam que este Mercado Popular seja apenas um inocente útil que apoia o petralhismo. Nada mais previsível para um comportamento tribalista. Por isso, vou evidenciar minhas posições: Sim, eu concordo bastante com o modelo de transferência direta de renda para os mais pobres – que são os mais injustiçados pelo perverso sistema de excessiva interfência estatal que temos hoje. Mas eu discordo bastante do modelo de “privatizações” que foi usado no Brasil, tanto pelo PSDB como pelo PT. Eu não acredito na eficiência do estado enquanto regulador do mercado. Eu não acredito na capacidade do estado enquanto gestor de escolas ou hospitais.

Em resumo, pra brincar com Mises e concordar com Eduardo Jorge: petistas e tucanos são todos um bando de socialistas. E, sim, poucas coisas me irritam tanto quanto eleições.

NOTA DO AUTOR:
Atenção, simplesmente englobar todo mundo de um jeito uniforme no mesmo bando de socialistas é uma piada retórica: levar isso mais a sério até as últimas consequências seria promover um apagamento dos diversos sujeitos petistas e tucanos. Seria uma opressão, seria um tribalismo.

A análise fala apenas de tendências ideológicas gerais a partir dos pontos mais marcantes dos governos federais empreendidos pelos dois partidos, ressaltando suas semelhanças essenciais. Obviamente, há outras diferenças, que se expressam em outros âmbitos. Obviamente, essa análise parte de um ponto de vista, é estritamente individual. É minha. Mas também pode ser sua.

manoferreiraMano Ferreira é jornalista, integrante do Café Colombo e co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Tem interesse em filosofia política, comunicação, estética e comportamento. Admira a obra de Karl Popper, mas se percebeu amante da liberdade bem antes de conhecê-la, viajando além da conta num quadro de Magritte.

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