Por Valdenor Júnior

Com a proximidade das eleições, um questionamento recorrente surge: o financiamento de campanha por empresas privadas deve ser proibido?

Em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade com esse objetivo, a maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram no sentido do fim do financiamento eleitoral por pessoas jurídicas.

O Ministro Lewandoski afirmou:

“O financiamento fere profundamente o equilíbrio dos pleitos, que nas democracias deve se reger pelo princípio do ‘one man, one vote‘ [um homem, um voto]. A cada cidadão deve corresponder um voto, com igual peso e idêntico valor. As doações milionárias feitas por empresas a políticos claramente desfiguram esse princípio multissecular, pois as pessoas comuns não têm como contrapor-se ao poder econômico”

Já o Ministro Zavascki foi um voto divergente:

“Só por messianismo judicial inconsequente se poderia afirmar que declarando a inconstitucionalidade da norma que autoriza doações por pessoas jurídicas e assim retornar ao regime anterior se caminhará para a eliminação da indevida interferência do poder econômico nos pleitos eleitorais. É ilusão imaginar que isso possa ocorrer”

Como a regra não valerá ainda para esta eleição, já sabemos que três empresas – a JBS (dona da marca Friboi), a fabricante de bebidas Ambev e a construtora OAS – bancam65% da campanha dos presidenciáveis até o último dia 6 [N. do Editor: este texto foi publicado originalmente em 13.08.2014]. A JBS, por exemplo, doou 5 milhões para Dilma e para Aécio, e 1 milhão para Campos.

presidenciaveis1

(Imagem extraída da Folha de São Paulo)

O grande temor é o de que o financiamento de campanhas por empresas privadas significa que estas podem manipular os políticos para que atendam os seus interesses, ao invés daqueles do público. Em uma palavra, capitalismo de compadrio.

Eu sou contra o capitalismo de compadrio. Mas entendo que o financiamento de campanha por empresas não deve ser proibido, e sim regulado de tal maneira que seja inutilizado enquanto instrumento de promoção do capitalismo de compadrio. Explico-me.

O verdadeiro motivo pelo qual o poder político é comprado não é pelo fato de existir desigualdade de renda e de riqueza, mas sim pelo fato de que existe poder político para impor um arranjo de capitalismo de compadrio. Como esclarece David Schmidtz:

“A realidade é que, se o poder pode ser comprado e vendido e então voltado contra nós, a solução não é garantir que ninguém seja rico o bastante para comprar esse poder, mas, em vez disso, aprender como impedir que os políticos adquiram poder para então vendê-lo. Nivelar as diferenças econômicas não resolveria o problema real. Se vender X por um dólar é errado, temos de castigar as pessoas que vendem X, não aquelas que dispõem de um dólar para comprá-lo.” (SCHMIDTZ, David. Os Elementos da Justiça. P. 173)

Isso pode ser traduzido para o debate do financiamento eleitoral nos seguintes termos: proibir o financiamento de campanha por empresas privadas não resolve o problema, que é o poder que os políticos têm para estabelecer regulações que favorecem interesses especiais. A rigor, o correto é acabar com esse poder, que é a causa, e não acabar com o financiamento, que é o efeito.

Mas alguém poderia objetar que estamos longe de acabar com esse poder, e que, portanto, nossas regras eleitorais devem ser projetadas de modo a reduzir os riscos do poder ser “comprado” por meio de financiamento eleitoral. Assim, segue esse argumento, a proibição do financiamento eleitoral por empresas privadas justifica-se como um second best (segunda melhor opção).

Eu concordo que, por estarmos longe de acabar com o capitalismo de compadrio, nossas regras constitucionais sobre o “jogo político” devem ser projetadas de modo a limitar esse resultado nocivo. Neste sentido sigo o alerta de William Graham Sumner, oponente da plutocracia:

“A plutocracia é uma organização civil na qual o poder reside na riqueza, pela qual um homem adquire qualquer coisa que ele possa comprar, em que direitos, interesses e sentimentos daqueles que não podem pagar serão anulados. (…) Os plutocratas estão apenas tentando o que os generais, nobres e sacerdotes fizeram no passado – conseguir o poder do Estado em suas mãos, de modo a curvar os direitos dos outros em seu próprio benefício (…). Os novos perigos devem ser enfrentados como os antigos o foram – por meio de instituições e garantias. O problema da liberdade civil é constantemente renovado. Uma vez resolvido, reaparece em nova forma. As velhas garantias constitucionais foram todas concebidas contra reis e nobres. Novas devem ser inventadas para manter o poder da riqueza nos limites da responsabilidade sem a qual nenhum poder é consistente com a liberdade.” (SUMNER, William Graham. What Social Classes Owe to Each Other. Tradução livre)

E nem se pode alegar que o empresário pode utilizar seu dinheiro da forma que bem entender, podendo influenciar políticos a favorecê-lo em relação aos concorrentes por meio do financiamento das campanhas, como se isto fosse um exercício de legítima liberdade econômica.

Quando uma empresa faz isso, ela está prejudicando a liberdade econômica das outras pessoas, da mesma forma como faria caso tivesse contratado uma máfia local para aterrorizar os concorrentes e, na prática, implementar restrições à livre concorrência sem respaldo governamental. Da mesma forma, se é errado jogar poluição em larga escala em cima de uma vizinhança, também é errado influenciar o congresso a legalizar esse ato. Violar direitos alheios, seja por meios ilegais ou legalizados, será violação de direitos alheios da mesma forma. Portanto, não existe liberdade para usar seu dinheiro para criar arranjos de capitalismo de compadrio, uma vez que isso prejudica as liberdades alheias.

Mas eu não concordo que a proibição total do financiamento de campanha por empresas privadas seja a garantia constitucional de que precisamos como second best (enquanto não conseguimos abolir completamente o poder do Estado para estabelecer o capitalismo de compadrio). Exponho meus motivos, antes de defender uma proposta de regulação.

Uma possibilidade é que ela seja ineficaz, por vários motivos, indo desde o fato de que possivelmente não é a principal maneira do sistema político ser manipulado em direção ao capitalismo de compadrio (grupos ideológicos bem-intencionados podem promovê-lo enquanto pensam estar agindo contra isso) até o de que as empresas tenham outras formas mais sutis de comprar os políticos, como menciona Taleb:

“Os ex-reguladores e os ex-funcionários públicos, que foram empregados pelos cidadãos para representar seus interesses, passam a usar a experiência e os contatos adquiridos naqueles empregos para se beneficiar com as falhas no sistema, após ingressar em um emprego privado – escritórios de advocacia etc. (…) em países africanos, funcionários do governo são explicitamente subornados. Nos Estados Unidos, existe a promessa implícita, nunca verbalizada, de se conseguir uma colocação posterior em um banco, um cargo que não exija praticamente trabalho algum de quem o exerce, e que oferece, digamos, 5 milhões de dólares por ano, caso essas pessoas sejam vistas com bons olhos pelo setor, E as ‘regulamentações’ de tais atividades são facilmente contornadas.” (TALEB, Nicholas Nassim. Antifrágil. P. 521-522)

Inclusive Taleb faz um comentário de um arranjo muito mais eficaz para minorar o capitalismo de compadrio e o lobby: a redução da extensão territorial do governo, como ocorre entre os suíços, em relação aos quais “o que os governa é inteiramente de baixo para cima, governos municipais de um tipo ou de outro, entidades regionais chamadas cantões, miniestados semissoberanos, unidos em uma confederação” (TALEB, p. 120) e “não podem existir lobistas – essa pertubadora raça – em um município ou em uma região muito pequena (…) [pois sua atuação] exigiria exércitos de lobistas tentando convencer as pessoas enquanto se infiltram em suas comunidades” (TALEB, p. 123). Mas a possibilidade de fazer esse tipo de reforma em um país como o Brasil é muito baixa no curto prazo, portanto, vamos também afastar essa opção.

Outro problema da proibição total do financiamento de campanha por empresas privadas é que isso não significa o mesmo que proibir os “ricos”: pessoas físicas muito ricas continuam sendo capazes de doar para campanhas, enquanto pequenas e médias empresas (talvez em associações representativas) não poderiam doar mesmo se quisessem fazê-lo para eventualmente tentar se proteger de influências políticas que queriam prejudicar o cenário para essas empresas de menor porte. (influências estas que não veem unicamente do grande empresariado, mas também dos ideólogos bem intencionados, como já mencionei acima).

E um último ponto é que também é incorreto presumir que uma pessoa rica esteja doando para campanhas para fazer “capitalismo de compadrio”, antes mesmo que qualquer ato desse seja realizado. 

Exatamente aqui que minha proposta faz diferença. Se nós tememos o capitalismo de compadrio por intermédio do financiamento de campanha por empresas privadas, e não o financiamento em si, nós devemos proibir o uso do financiamento como forma de alcançar o resultado do capitalismo de compadrio, não proibir o financiamento como tal.

Como, então, o financiamento de campanhas por empresas privadas deve ser regulado? Proponho uma regra simples: O candidato que recebeu financiamento de campanha de empresas privadas não será autorizado, ao longo de todo o seu mandato, a votar em favor de projetos de lei ou aprovar políticas que de alguma forma beneficiem seletivamente as empresas que o apoiaram. Por exemplo, referido candidato está proibido de participar da votação de projetos que digam respeito a isenções tributárias seletivas, mas poderia participar da votação de projetos que realizem reduções tributárias que atinjam a todas as empresas, sem beneficiar as que o financiaram em particular.

O interessante disso é que, em alguns cenários de votação, também estaríamos promovendo uma “compatibilização de incentivos” (conceito do ramo da mechanism design): da mesma forma como você pode induzir uma criança a cortar o bolo dado para ela e seu irmão de forma equitativa, ao determinar que será o irmão que escolherá o pedaço primeiro, você pode induzir os candidatos financiados por empresas a votarem mais vezes na direção do bem comum, ao deixar para eles apenas duas opções, ou votar em favor de reduções gerais nos impedimentos de atuação no mercado ou votar em favor de aumentos gerais nos impedimentos de atuação no mercado, descartando a desigualdade de tratamento em favor dessas empresas.

Mas também não podemos nos iludir, isso não acaba completamente com o capitalismo de compadrio. Em alguns casos, uma empresa já estabelecida pode se beneficiar de aumentar igualmente os impedimentos para si desde que saiba que isso possa afetar mais fortemente as outras empresas (em especial as menores e as iniciantes).

Por isso, uma regra ainda melhor (ou uma interpretação melhor da regra acima enunciada) seria a que proibisse o candidato de votar em favor de projetos de lei ou aprovar políticas que resultem em benefício seletivo às empresas que o apoiaram em detrimento das demais, mesmo que o projeto formalmente estabeleça um aumento uniforme (não seletivo) nos impedimentos à atuação naquele ramo específico.

A compatibilização de incentivos seria ainda maior, uma vez que a única opção desse político seria a de melhorar o arranjo institucional econômico. E ainda haveria (algum) incentivo das empresas para financiá-los, uma vez que são candidatos que podem afetar políticas que, de tão intervencionistas, são mais prejudiciais para essas empresas do que mercados autenticamente livres (um exemplo poderia ser o bolivarianismo).

Contudo, essa regra mais forte teria o inconveniente de ser mais difícil de ser aceita (em especial para o cargo executivo), por depender de uma análise econômica mais aprofundada e menos intuitiva, além de que a eficácia dela em coibir o capitalismo de compadrio não é tão alta, pois o que ela coíbe ainda pode ser apoiado por grupos ideológicos bem-intencionados, e haveria incentivo das empresas lobistas para influenciar os parlamentares financiados a se absterem de votar, e não votar contra, de modo que essas leis seriam aprovadas ainda assim.

Alguém pode até pensar numa regra fortíssima, no sentido de que os políticos que receberam financiamento devam obrigatoriamente votar contra projetos que resultem em benefício seletivo às empresas que o apoiaram em detrimento das demais, mesmo que o projeto formalmente não seja seletivo. Mas uma regra de votação obrigatória de um parlamentar não faz sentido em uma democracia, então tal regra fortíssima deve ser descartada de pronto.

Uma última preocupação é que as regras mais forte e mais fraca que eu enunciei acima proíbem que seja beneficiada seletivamente a empresa que financiou a campanha, o que tornaria possível que as empresas privadas financiassem representantes diferentes e os influenciassem a trocar os votos: quem foi financiado pela empresa X vota em favor de projetos que beneficiem seletivamente a empresa Y e quem foi financiado pela empresa Y vota em favor de projetos que beneficiem seletivamente a empresa X. Mas além disso ser um tipo de coordenação mais complicada, o que já é uma dificuldade, é possível resolver isso simplesmente modificando a regra no sentido de que a proibição estende-se a projetos seletivos em relação a qualquer empresa. (Talvez excetuando-se as pequenas empresas?)

Portanto, a reforma que eu defenderia é a de que o parlamentar financiado fica impedido de votar em favor de projetos de lei ou aprovar políticas que resultem em benefício seletivo a determinadas empresas em detrimento das demais, tanto no caso do projeto ser seletivo, quanto no do projeto ser apenas formalmente não seletivo, em relação a todas as empresas (talvez com exceção apenas das pequenas) de preferência, ou pelo menos em relação às empresas que o financiaram. Uma regra semelhante poderia ser utilizada para os ocupantes de cargos executivos.

_____________________________________________________________________________

Publicado originalmente no blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart

junior

Compartilhar