Nas brumas da madrugada da última quinta-feira, antes que completasse uma semana do caos vivido durante a greve da Polícia Militar, mais um evento intenso marcou o Recife. Funcionários de um consórcio formado por grandes construtoras e liderado pela Moura Dubeux, maior empreiteira de luxo do Nordeste, iniciaram a demolição de antigos armazéns de açúcar situados no Cais José Estelita, uma das áreas mais bonitas e abandonadas da cidade, situada praticamente no centro da capital pernambucana.
Além da localização estratégica, o tamanho do lugar (1,3 km de extensão) cobiça muitos interesses. Antes da celeuma, a área pertencia à Rede Ferroviária Federal, estatal criada em 1957 e extinta em 1999. Agora, depois de alguns pontos cedidos pela pressão social, o projeto Novo Recife, apresentado pelo consórcio, prevê a construção de um complexo imobiliário com 14 prédios de cerca de 40 andares, entre residenciais, empresariais e hotéis, além de área de lazer, praças, ciclovia, ruas transversais hoje inexistentes e alguns outros detalhes. Quando foram anunciados, os planos trouxeram forte resistência de setores da sociedade, especialmente artistas, universitários e professores (pessoas da classe média, enfim), além do Ministério Público, sob argumentos acerca da necessidade de manutenção da memória e do patrimônio histórico da cidade. Essa insatisfação se manifestou de modo contundente durante uma audiência pública realizada em 2012 sobre o projeto e que acabou gerando o grupo Direitos Urbanos, de ativismo e debate, que desde então organiza o movimento #OcupeEstelita, com ações sistemáticas contra o projeto, a favor da discussão política sobre os rumos daquela urbanização e da cidade como um todo. O modelo é bastante interessante para um movimento social 2.0, sem lideranças formais, com diversidade de posições e origens, bastante articulação através das redes sociais e alto poder de mobilização e influência.
Mas é válido perguntar: o que significa politizar os rumos da cidade? Qual o caráter da avaliação política sobre o crescimento? Como abarcar as contradições entre as demandas dos diversos segmentos sociais? Será o estado o melhor mediador para esse conflito? Bem, o fato é que ele já é o mediador: o estado controla a urbanização no Brasil através de um cansativo conjunto de leis e regulações. Como explica muito bem o nosso Anthony Ling, aqui do Mercado, esse excesso de politização sobre os rumos da urbe produziu a péssima verticalização das grandes cidades brasileiras, além de uma verdadeira obsessão recifense por vagas de estacionamento.
Antecipando-me à possibilidade de ser mal compreendido: o Direitos Urbanos se tornou o principal fórum de discussão do Recife e sem dúvidas desempenha um papel cultural e de integração muito importante para a cidade, incluindo suas ações de ativismo e o seu convite para que as pessoas vivam mais o ambiente urbano. O surgimento e atividades do grupo são reflexos de uma demanda extremamente legítima: uma cidade mais habitável, mais segura e com melhor qualidade de vida para seus moradores e visitantes. Minha divergência com o DU diz respeito exclusivamente a um dos meios defendidos por diversos membros do grupo: a intervenção estatal com o suposto intuito de promover o bem social. Desse modo, no lugar de atacar as causas estruturais que geram o problema, há uma naturalização da presença do estado e instala-se basicamente uma disputa de espaço nas castas do poder.
É exatamente isso que se evidencia emblematicamente na cena a seguir, que foi elogiada por diversos membros do grupo que se sentiram representados com o ocorrido. Veja o vídeo:
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=b0NfZowj2-A[/youtube]
Nas imagens, o ex-ministro e ex-deputado federal Raul Jungmann (PPS), atualmente vereador do Recife, vocifera contra funcionários do consórcio, em clara posição hierárquica, com gritos como “Eu sou uma autoridade, cale sua boca!”. A postura arrogante, além de uma humilhação, denota a imposição de uma clara opressão de classe: o político que julga ter mais direitos que o trabalhador, a reprodução da lógica arcaica do “você sabe com quem está falando?” ou “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Essa estrutura impositiva está estreitamente relacionada com a mentalidade coercitiva do estado, que deseja impor a própria vontade sobre os demais, no grito ou na força. O fato dessa atitude reverberar representativamente sobre uma parcela significativa dos ativistas expressa, basicamente, o desejo pela alternância do coronel, mas não pela implosão do coronelismo.
Só que o coronelismo é exatamente o nosso maior problema – inclusive no que se refere à vivência da cidade. O que há no Recife – assim como em todo o Brasil – é uma completa promiscuidade entre os agentes do estado e as grandes corporações, como a Moura Dubeux. Quando aplaudimos o político arrogante que oprime um trabalhador ampliamos a voz de legitimidade do mesmo sistema político que oprime a sociedade para o benefício de seus comparsas. É nesse sentido que o excesso de politização (ou seja, a concessão de poder público para intervenções verticalizadas, de cima pra baixo) responsável pelo gigantismo do estado favorece justamente a perpetuação da cultura patrimonialista e o reforçamento do capitalismo de compadres e coronéis – questão que, longe de ser somente uma figura de linguagem, chega concretamente ao nível da coação psicológica e da violência física. Foi exatamente essa a origem da questão no Cais José Estelita: o grande espaço da antiga Ferroviária, no lugar de loteado em diversos terrenos, foi leiloado a um custo inicial de R$ 55,2 mi. Um modelo claramente contra a livre concorrência de mercado, feito para beneficiar as grandes empresas e que reflete contundentemente a lógica de concentração de renda patrocinada pelo estado. Diante de um grande monopólio estatal sobre uma área urbana estratégica, arquitetou-se uma simples transferência monopolística, sem ventilar-se a possibilidade de segmentação do espaço. Esse leilão, com denúncias de irregularidades, foi arrematado pela Moura Dubeux por R$ 55,4 milhões, em 2008.
A maior parte dos manifestantes, no entanto, confunde os interesses das grandes corporações com o que seria realmente um interesse do mercado livre. Não enxergam que essa lógica de intervenção estatal em conluio com empresários é essencialmente anti-liberal. Por isso, mesmo sendo a ação do estado o grande problema, evocam ainda mais ação do estado. Depois do estado ter forjado aquela concentração monopolística de terra, querem também que seja o estado, através da política, a definir as diretrizes do empreendimento. Sem perceber, alimentam o problema que denunciam, já que os incentivos presentes na lógica de funcionamento do governo não vão deixar de promover a promiscuidade corporativa. Enquanto o governo tiver poder para beneficiar seus compadres, as grandes corporações comprarão esse compadrio – como fez a própria Moura Dubeux na época da última campanha eleitoral, ao doar oficialmente R$ 500 mil ao PSB, partido do ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, e do atual prefeito do Recife, Geraldo Júlio.
Mas afinal de contas, o que seria uma solução verdadeiramente liberal neste caso? O que seria construir novos usos para o Cais José Estelita garantindo os interesses do mercado? Um preceito claro para o liberalismo é a desconcentração de poder, o que torna premissa básica a qualquer processo de desestatização o máximo desmembramento do anterior monopólio do estado. Assim, a primeira medida seria lotear o terreno em diversas partes. Após o loteamento, há dois caminhos possíveis: a destinação do espaço para o processo de reforma fundiária urbana, destinando os lotes a indivíduos sem-teto; ou uma série de leilões públicos, com valores acessíveis a um universo muito maior de concorrentes, dentre os quais o próprio grupo Direitos Urbanos poderia participar colaborativamente. Dessa forma, no lugar de delegar poderes a uma suposta representação do interesse público, os ativistas poderiam, com seus próprios meios, concretizar um Novo Recife mais fraterno, humano e com efetivos direitos urbanos. Um projeto de cidade com cantos independentes, sem castas para ecoar.
Mano Ferreira é jornalista, integrante do Café Colombo e co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Tem interesse em filosofia política, comunicação, estética e comportamento. Pesquisa a relação entre as obras do documentarista Eduardo Coutinho e do filósofo Karl Popper, mas se percebeu amante da liberdade bem antes de conhecê-los, viajando além da conta num quadro de Renné Magritte.