Por Valdenor Júnior
A renovação de um feminismo libertário e liberal promoveria tanto o feminismo quanto o libertarianismo/liberalismo clássico, ou seja, tanto a mais específica emancipação e autonomia da mulher como a mais geral emancipação e autonomia do indivíduo. Apesar disso, é comum que feministas rejeitem o libertarianismo/liberalismo clássico e que libertários/liberais rejeitem o feminismo. Isso parece decorrer de uma caracterização do feminismo que rejeita, de antemão, todo e qualquer tipo de contato com o liberalismo clássico ou o libertarianismo.
Ocorre que essa caracterização não se justifica historicamente. O ramo do denominado “feminismo de equidade” sempre foi ativo na história feminista e tem claras conotações liberais. Como Steven Pinker o retrata:
“O feminismo de equidade opõe-se à discriminação sexual e outras formas de injustiça para com as mulheres. Pertence à tradição liberal e humanista clássica nascida do Iluminismo, pautou a primeira onda do feminismo e lançou a segunda. (…) O feminismo de equidade é uma doutrina moral sobre igualdade de tratamento que não se compromete com questões empíricas em aberto da psicologia ou da biologia.” (PINKER, Tabula Rasa, p. 461-462)
Contudo, um argumento estranho suscitado por alguns é que o feminismo de equidade, ou o feminismo liberal/libertário em geral, é desnecessário quando a igualdade perante a lei já está afirmada. Segundo esse raciocínio, o feminismo liberal promove a igualdade formal da mulher, pela garantia formal de direitos iguais. Se isso já está escrito na lei, então nada mais resta a fazer.
Contudo, esse argumento deve ser rejeitado. A posição libertária ou liberal clássica não é a de que basta estar escrita na lei uma “declaração de direitos” para que sejamos livres. Isso é uma caricatura da nossa posição. Como já escrevi acerca do mito do Estado liberal no século XIX, o liberalismo clássico foi/é um projeto de libertação sociopolítica da humanidade em relação à dominação política e à pobreza, por intermédio da derrubada de barreiras à troca voluntária e honesta entre as pessoas, para melhorar suas vidas pacificamente.
Nós não somos livres apenas porque a lei formalmente diga que nós somos; nós somos livres quando (e na medida em que) nossa vida está inclusa em uma rede robusta de interações humanas voluntárias, que, ao longo do tempo, vai ampliando as opções e possibilidades disponíveis para a escolha pessoal, seja tomada individualmente ou na condição de membro de um coletivo de adesão voluntária.
Portanto, precisamos derrubar as barreiras que impedem as mulheres de escolherem certas opções e possibilidades por si mesmas e para si mesmas. O problema não é que as mulheres optem por serem donas de casa; o problema é que não haja liberdade para ser outra coisa além disso. O problema não é um estilo de vida em específico, mas restringir as mulheres a um rol de opções de vida limitado, assegurando uma posição subordinada do gênero feminino na sociedade.
Por conta disso, não podemos ignorar o modo como padrões de gênero, a discriminação sexual e a pressão social à conformidade conspiram para limitar severamente as opções e oportunidades das mulheres de uma forma que não é experimentada pelos homens. Também ameaças de violência difusa direcionadas de modo específico às mulheres, incluindo a “cultura de estupro” (veja aqui e aqui), constituem-se no que Charles Johnson denomina como o punho invisível da “lei não escrita do patriarcado”.
Isso também influencia o modo como libertários preocupados com justiça social trabalham o feminismo. Podemos entender justiça social no sentido usado pelo libertário bleeding heart John Tomasi, como a maximização da parcela da riqueza controlada pelos trabalhadores de menor remuneração (veja aqui e aqui), ou no sentido usado por Kevin Vallier, como crescimento econômico + melhoramento das oportunidades para todos, inclusive os mais pobres + mínimo de renda garantida para todos, abaixo da qual ninguém possa cair acidentalmente (veja aqui).
Ocorre que analisar o aumento da renda familiar, no quintil inferior da distribuição de renda, pode não ser suficiente para assegurar a maximização ou o aumento da parcela da riqueza controlada pelas mulheres mais pobres. Como Amartya Sen adequadamente retratou,
“Há ainda a importante questão da divisão intrafamiliar dos alimentos, dos cuidados com a saúde e outras disposições. Muito depende do modo como os recursos econômicos da família são empregados para atender aos interesses dos diversos indivíduos da casa: mulheres e homens, meninas e meninos, crianças e adultos, velhos e jovens. (..) Embora os problema distributivos no âmbito da família possam ser graves mesmo nas situações de fome coletiva, eles são particularmente cruciais na determinação da subnutrição e da fome gerais dos diversos membros da família em situações de pobreza persistente – que são ‘normais’ em muitas comunidades. É na desigualdade contínua na divisão dos alimentos – e (talvez ainda mais) nos cuidados com a saúde – que a desigualdade entre os sexos se manifesta de modo mais flagrante e persistente nas sociedades pobres com pronunciado viés antifeminino.” (SEN, Desenvolvimento como Liberdade, p. 225-226)
Mas o próprio Amartya Sen também destaca que o acesso da mulher ao mercado de trabalho melhora a posição feminina na distribuição da renda familiar:
“existem evidências consideráveis de que, quando as mulheres podem auferir renda fora de casa e o fazem, isso tende a melhorar a posição relativa feminina inclusive em distribuições no âmbito da família. (…) a contribuição da mulher para a prosperidade da família é mais visível quando ela trabalha fora de casa e recebe um salário. Ela também tem voz mais ativa, pois depende menos de outros. O status mais elevado das mulheres aparentemente afeta até mesmo as ideias sobre o ‘quinhão’ que cabe às meninas da família. Assim, a liberdade para procurar e ter emprego fora de casa pode contribuir para reduzir a privação relativa – e absoluta – das mulheres.” (SEN, Desenvolvimento como Liberdade, p. 226)
Portanto, ainda que o aumento da renda familiar seja um critério relevante para saber se as instituições de mercado de uma sociedade conduzem à justiça social, é também importante eliminar barreiras para que as mulheres entrem no mercado de trabalho. De qualquer maneira, a redução da pobreza em larga escala via crescimento econômico constante e duradouro pode fazer muito mais pelas mulheres do que qualquer discurso inflamado sobre a má distribuição familiar.
As mulheres podem e farão sua própria liberdade e libertação, em cooperação com milhares de outros indivíduos em mercados livres e abertos – de qualquer sexo. De fato, as mulheres também são ativos valiosos à construção – e maximização – da riqueza produzida pela humanidade. O feminismo é um empreendedorismo que visa resgatar esse potencial. É assim que o libertário Jeffrey Tucker entende o feminismo, conforme entrevista dada ao Liberzone:
“O tipo certo de feminismo – e eu acho que essa palavra tem uma importância e uma história libertária – é uma específica variedade de empreendedorismos que servem à causa da dignidade humana. Empreendedorismo é sobre descobrir valores perdidos, sobre encontrar e libertar ativos esquecidos que podem ser empregados para um grande benefício social. Isso obviamente descreve as mulheres em geral na maior parte da história humana. Ludwig von Mises apontou o óbvio que antes da era do capitalismo mulheres eram geralmente dominadas, rotineiramente exploradas como fruto de uma tradição cultural, e negociadas como mercadorias. Faltava-lhes ação na condução de suas vidas e seus valores sociais eram controlados por homens poderosos. Sua libertação tomou lugar gradualmente ao longo de centenas de anos e isso ainda ocorre atualmente na forma de contínuas barreiras legais e ameaças. A força motriz da libertação foi o Liberalismo, o mesmo que soltou a humanidade inteira das correntes. No caso de Mises, sua forma empreendedora de feminismo consistiu em abrir as portas para brilhantes mulheres acadêmicas, dando a elas oportunidades para se sobressaírem. Esse não foi um tratamento preferencial; era resultado de um julgamento seu de que estas mulheres tinham algo a oferecer ao mundo das idéias que não estavam permitidas a fazer. Ele foi o único professor em Viena a fazer isso, e os resultados foram magníficos, economicamente e socialmente. Se nós pegarmos esse exemplo, nós descobriremos como o feminismo é nada mais que uma específica aplicação do princípio do Liberalismo praticado com uma visão na direção de encontrar e desencadear valores pelos quais toda sociedade pode se beneficiar.” (TUCKER, entrevista ao Liberzone)
John Tomasi descreve que outro feminismo é possível, livre de estatismo. Esse feminismo defende o governo limitado liberal clássico, e, a partir dos direitos assegurados em termos de robustas liberdades civis e econômicas, pretende criar pontes para a emancipação feminina, revertendo em mudança social. Contudo, os detalhes da mudança social não podem ser preditos. Isso é uma consequência necessária da nossa renúncia ao controle da vida das pessoas, nossa crença de que “ninguém irá finalmente governar esse mundo” (Jeffrey Tucker, entrevista ao Liberzone). Tomasi, assim, mostra a necessidade de uma mudança no feminismo, renunciando às abstrações construtivistas da filosofia e da ideologia política, e abraçando sem reservas uma perspectiva de mudança social mais sociológica, mais evolucionária, mais microeconômica…
Eis o segredo do feminismo libertário.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, tem o blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Com Darwin aprendeu a valiosa lição de que entender o babuíno é mais importante do que se imagina.