Este mês, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal que, se prosperar, aumentará a transferência de renda dos pobres para os ricos. O objetivo da ação, deferida liminarmente pelo Ministro Ricardo Lewandowski, era suspender a Medida Provisória que adia os reajustes aos servidores públicos federais e que aumenta sua alíquota de contribuição previdenciária.

Se o PSOL obtiver ganho de causa, isso não somente prejudicará a solidez fiscal, mas também aumentará desigualdade de renda.

Segundo dados da PNAD, cerca de 6 em cada 10 servidores federais estão entre os 10% mais ricos do Brasil. No setor privado, apenas 1 em cada 10 está entre os 10% mais ricos. Além disso, os servidores públicos federais ganham, em média, o dobro do que trabalhadores do setor privado que têm características educacionais, regionais e laborais similares, conforme demonstra estudo do Insper. Por isso, no curto prazo, ao privilegiar servidores que são relativamente mais ricos, o ganho real dos servidores públicos deverá aumentar a desigualdade – algo que é confirmado por diversos estudos estatísticos.

Além disso, argumentando contra a taxação de servidores inativos, os representantes do PSOL citaram a suposta inconstitucionalidade do estabelecimento de taxação progressiva por Medida Provisória, fundamentada em alguns precedentes. No longo prazo, firmar o entendimento no Supremo contrário a taxação progressiva também aumentará a desigualdade, já que impedirá a possibilidade de redução da desigualdade por vias redistributivas.

Ricos são os outros

Alguns comentaristas assinalaram essa incoerência, já que o PSOL, que diz defender medidas que melhoram a justiça social, desejava transferir recursos do contribuinte para uma minoria que tende a ser mais rica do que o próprio contribuinte. A reação do PSOL foi dizer que os ricos brasileiros não são ricos de verdade.

Juliano Medeiros, Presidente Eleito do PSOL, ao defender a postura do PSOL em favor dos mais ricos, espantou-se ao perceber que uma família de 4 pessoas com renda de 10.400 reais por mês (2,6 mil per capita) pertence ao decil mais rico do Brasil – sendo que, certamente, a maior parte das pessoas fora de sua bolha social sabe que tal renda não é pequena para a realidade brasileira. O Deputado Jean Wyllys foi mais longe, ao afirmar que um salário de 27 mil reais por mês “pode parecer uma fortuna para a imensa maioria do povo brasileiro, mas não representa a verdadeira riqueza”. Um salário de 27 mil reais por mês coloca alguém entre os 0,5% mais ricos do país – mas, para Wyllys, traçando um conceito que parece dizer que somente bilionários são ricos, quem ganha essa quantia não está entre os mais ricos do país.

Essa reação não é exclusiva do PSOL ou de Jean Wyllys. Ela é característica da própria elite brasileira. Para esta, ricos são sempre os outros. Segundo dados de uma pesquisa recente coordenada pela Oxfam, 9 em cada 10 brasileiros acham que estão nos 50% mais pobres do país – uma impossibilidade matemática. Segundo a mesma pesquisa, só 1 em cada 10 brasileiros que se encontram entre os 25% mais ricos acha que está entre os 25% mais ricos. O resto acha que é mais pobre do que realmente é.

A elite precisa reconhecer seus privilégios – e conhecer melhor a realidade brasileira

Eu cursei minha graduação na Universidade de Brasília. Uma coisa que sempre me espantou na Capital Federal era como muita gente que eu conheço acha que salários de 15 mil, 18 mil, 20 mil reais são baixos. O gráfico abaixo ajuda a explicar o porquê. Ele mostra, com linhas que representam os estados, onde um domicílio em cada percentil da distribuição estadual (eixo horizontal, quanto mais à direita, mais rico) cai na distribuição de renda nacional (eixo vertical, quanto mais para cima, mais rico), depois de feito ajustes por custo de vida local.

Perceba que o DF, aquela linha azul clara que na direita acima do gráfico se desprende do resto dos estados, tem uma elite de super-ricos que rapidamente se torna muito mais rica que o resto do país. Mesmo antes de chegar no 1/4 mais rico do DF, um domicílio brasiliense já está entre os 10% mais ricos do Brasil. O alto salário do funcionalismo público federal, que tende a pagar mais para pessoas com escolaridade similar no setor privado, é uma das principais explicações para isso.

Quando meu amigo solteiro que ganha 6.500 reais e mora em Brasília reclama do próprio salário, ele está comparando o salário dele com os 10% da população do DF que tem renda familiar per capita maior do que a dele. O que ele não sabe, contudo, é que isso coloca ele no 1% mais rico do país. Ele não é irracional – só é mal informado.

O PSOL precisa reconhecer os privilégios de sua militância

Como a elite brasileira não se reconhece como elite, o PSOL fica numa situação difícil. Por um lado, alguns de seus líderes, como o próprio Jean Wyllys, que já disse que não acha que o salário dos deputados é alto, realmente acreditam que não fazem parte da elite e se recusam a reconhecer seus próprios privilégios. Por outro, ir contra os privilégios dessa elite significaria advogar o corte de benesses para parte importante da base do PSOL. Isto, porque o PSOL encontra mais votos entre os mais abastados.

A mais importante campanha política enfrentada pelo PSOL até agora – a candidatura de Marcelo Freixo à Prefeitura do Rio de Janeiro – ilustra essa questão. Não há dados por renda média das zonas eleitorais. Mas, como escolaridade está fortemente correlacionada com a renda, esse dado é um bom substituto.

Nos bairros mais pobres, onde há uma parcela maior da população que não terminou o ensino médio, Freixo teve um apoio menor. Já nos bairros mais ricos e escolarizados, como Jardim Botânico e Copacabana, Freixo teve muito mais apoio. Essa relação é muito forte – a variância da escolaridade da população entre zonas eleitorais explica cerca de 70% da variância da porcentagem de votos dados a Freixo naquele certame.

Não há solução para desigualdade sem tocar nos privilégios da elite que se diz de classe média

Essa situação é um dilema, porque não há solução para a desigualdade de renda no Brasil sem atacar determinados privilégios dessa elite com educação universitária que se acha de classe média e, em parte, vota no PSOL. Se o PSOL realmente está comprometido com uma sociedade mais próspera, livre e socialmente justa, ele precisa rever algumas de suas posições históricas e atacar os privilégios dessa elite. Estes incluem, dentre outras coisas, benesses ao funcionalismo federal, deduções de educação e saúde no imposto de renda, financiamento estatal de “empresas campeãs nacionais” e universidade pública gratuita para os filhos dos mais ricos.

Caso contrário, vai continuar repetindo discursos sem guarida na realidade e quixotescamente buscando balas de prata irreais – como, o jornalista abaixo.

Isso não impediria o partido de pedir a taxação de grandes fortunas e uma estrutura tributária mais favorável aos mais pobres. Ao contrário, tornaria a posição do partido mais coerente.

Ter um público – e uma elite – que se informa sobre sua própria situação e seus privilégios é algo importante. Não adianta tentar negar a realidade e achar que os mais ricos brasileiros não são ricos de verdade. Ao tomarmos consciência de nossos próprios privilégios, poderemos apoiar políticas públicas baseadas em evidências empíricas, que ajudem a melhorar a condição social dos mais vulneráveis e reduzir a desigualdade social.