Por Raymond Aron
Trecho do livro "O ópio dos intelectuais" em tradução de Pedro Menezes

 

Intelectuais em busca de uma religião

Paralelos entre socialismo e religião são traçados com frequência, e a difusão do Cristianismo durante a antiguidade tem sido comparada com a do Marxismo em nossos tempos. A expressão “religião secular” tornou-se lugar comum – eu mesmo a usei, em dois artigos publicados na France Libre, em 1944.

Igualmente clássicos são alguns questionamentos surgidos através esta comparação. Será que uma doutrina sem deus merece ser chamada de religião? Os fiéis não apenas negam a conexão, como também alegam que sua crença é perfeitamente compatível e não concorre com outra fé religiosa – não seriam os teóricos católicos de esquerda provas da compatibilidade entre Comunismo e Cristianismo?

De certa forma, a disputa é meramente verbal. Tudo depende como definimos as palavras nela envolvidas. A doutrina dá aos verdadeiros comunistas uma interpretação global sobre o universo; compartilha sentimentos que inspiraram as Cruzadas de outras eras; interfere na hierarquia de valores para estabelecer novas normas de boa conduta. A doutrina preenche, na alma individual e coletiva, funções que os sociólogos normalmente atribuem às religiões. Ainda que se apresente a ausência de elementos transcendentais ou sagrados como prova de invalidar o paralelo, deve-se lembrar que muitas sociedades ao longos dos séculos ignoravam a noção de “divino”, sem necessariamente ignorar o modo de pensar e agir, as obrigações e devoções que hoje consideramos religiosas.

Esta argumentação ignora o verdadeiro problema. A religião pode ser definida de tal forma que estejam abarcados os cultos, ritos e paixões de tribos consideradas primitivas, os ensinamentos e práticas do Confucianismo, a sublime inspiração de Cristo ou Buda, mas qual o significado do que se considera como religião secular em um Ocidente impregnado pelo Cristianismo?

Teoria Econômica ou Religião Secular?

O Comunismo desenvolveu-se como doutrina política e econômica num tempo em que a vitalidade espiritual e autoridade das Igrejas estavam em declínio. Paixões que em outros tempos se expressaram através de crenças estritamente religiosas foram, pela primeira vez, canalizadas como ação política. O marxismo, porém, jamais se apresentou como proposição aplicável à administração pública ou ao funcionamento da economia, mas como meio de curar definitivamente toda a miséria histórica da humanidade.

Ideologias de Direita e Esquerda, tanto o Fascismo quanto o Comunismo, foram inspiradas por uma filosofia moderna da imanência. São ideologias atéias mesmo quando não negam a existência de Deus, pois concebem o mundo humano sem referências ao transcendental. De acordo com La Berthoniere, ainda que Descartes tenha sido um fervoroso católico, ele pode ser considerado como iniciador desta forma de ateísmo, pois estava mais interessado na conquista da natureza do que em meditações sobre ela. Os Marxistas da Segunda ou Terceira Internacional podem até mesmo aceitar a religião como assunto privado, mas consideravam a organização da comunidade como a mais séria das preocupações humanas.

No vago aspecto do fanatismo, todos os movimento políticos que agitaram a Europa moderna tiveram algum caráter religioso. A diferença é que na maioria deles não há o funcionamento ou a essência de uma filosofia religiosa. No que diz respeito a isso, o Comunismo é unico.

As paixões logicamente seguiram a mudança no centro de interesse. As pessoas não mais mataram umas às outras para determinar qual a Igreja verdadeiramente carrega a missão de interpretar as sagradas escrituras e administrar o sacramento, mas para definir qual partido ou sistema seria o correto para espalhar conforto material por todo o vale de lágrimas onde vivemos.

Democracia e nacionalismo, é verdade, não inspiraram menos fervor do que a sociedade sem classes. Neste tempo em que valores supremos estão ligados à realidade política, os homens são igualmente fanáticos na sua devoção à independência nacional ou à ordem ideal das coisas. No vago aspecto do fanatismo, todos os movimento políticos que agitaram a Europa moderna tiveram algum caráter religioso. A diferença é que na maioria deles não há o funcionamento ou a essência de uma filosofia religiosa. No que diz respeito a isso, o Comunismo é unico.

A profecia Marxista, como vimos, está em conformidade com o padrão típico da profecia Judaico-Cristã. Toda profecia condena as coisas como são e esboça o modo como elas deveriam ser ou serão, além de escolher um indivíduo ou grupo para guiar o percurso pelo terreno desconhecido que separa o presente maldito do futuro radiante. A sociedade sem classes que trará progresso social sem novas revoluções políticas é comparável ao paraíso. A miséria do proletariado é o que inspira esta vocação e o Partido Comunista transforma-se na Igreja combatendo tanto os burgueses/pagões que tentam impedir as boas novas quanto os social-democratas/Judeus que rejeitaram a Revolução quando ela trouxe tudo aquilo que sempre desejaram.

O marxismo, porém, jamais se apresentou como proposição aplicável à administração pública ou ao funcionamento da economia, mas como meio de curar definitivamente toda a miséria histórica da humanidade.

As críticas e proposições do marxismo podem ser traduzidas em termos racionais. As forças de produção, desenvolvidas a partir de uma ciência submissa aos interesses da indústria, ainda não provém condições de vida decentes apenas para uma pequena minoria. Amanhã, os avanços da tecnologia combinados com uma mudança no sistema de posse e gestão dos recursos levará a humanidade aos benefícios da abundância material. É fácil transitar entre o profetismo marxista e sua fé revolucionaria até uma teoria sobre o progresso econômico.

Sendo assim, como a profecia Marxista pode oscilar entre opiniões sobre o futuro das sociedades modernas e o dogma pseudo-religioso? Como ela pode inspirar, por um lado, as ideias e métodos da social democracia, tidas como senso comum em tantos países livres, pacíficos e democráticos, e por outro lado as ideias e métodos do Comunismo, necessariamente ligado à violência e Revolução?

No caso da moderação social-democrata, a teoria é atenuada e admite-se que o trabalho de regeneração do sistema presente demanda a participação de todas as suas vítimas; de todos aqueles que, ainda que não sofram pessoalmente com o sistema, ao menos reconheçam suas falhas e desejem corrigi-las. Isso não faz com que a vocação do proletariado deixe de existir, mas certamente faz com que deixe de ser exclusiva. Por seu número de representantes, os operários industriais devem ter um papel preeminente na humanização das modernas sociedades tecnológicas, mas não são os únicos a sofrerem com suas injustiças, nem devem ser os únicos a moldar o futuro.

Quanto ao comunismo, o caráter proletário do salvador coletivo e do partido que o representa é verbalmente enfatizado e reforçado. Simplesmente diz-se que o Partido deve ser proclamado como vanguarda do proletariado, não importa quão pequena seja a participação concreta de trabalhadores de carne-e-osso na liderança e atividades do Partido. A concepção é aí próxima de uma Igreja que deve ser confiada como guardiã da mensagem de salvação. Todos aqueles que estiverem na Igreja merecerão seu batismo; os proletários que se recusarem a segui-la automaticamente serão expulsos da classe de eleitos.

Se traçado um caminho lógico a partir do primeiro caso, a profecia reduz-se a um conjunto de opiniões razoavelmente ordinárias que variam de país a país; o Marxismo é aproveitado através de elementos isolados – hipóteses históricas, preferencias econômicas, etc. Já o segundo caso nos mostra um Partido-Igreja endurecendo a doutrina até que se transforme em dogma e elaborando seu escolasticismo interpretativo; carregado de paixões, o Partido/Igreja leva consigo imensas multidões.

Para que o sistema comunista de interpretação do mundo jamais se encontre incompleto, a identificação do Partido como representante do proletariado deve ser absoluta e ilimitada. Isto faz com que fatos incontestáveis sejam negados até que os conflitos reais e multifacetados da convivência humana sejam substituídos por lutas conceitualmente estilizadas entre agentes coletivos que são definidos por sua função na busca de um destino ordenado previamente pela profecia. E só a partir disto surgem as especulações intermináveis sobre infraestrutura e superestrutura, a rejeição da objetividade e a re-escrita da história.

Os sociais-democratas renunciaram ao caráter escolástico do marxismo; eles não tentam conciliar os fatos de hoje com a profecia de ontem, nem tentam enclausurar a inconcebível complexidade das sociedades humanas em ferramentas conceituais limitadas; mas, por isso mesmo, a social democracia perdeu o prestígio conferido a um sistema redentor, assim como a certeza e convicção sobre um futuro transparente. Os Comunistas, por sua vez, tentam conectar cada novo episódio do desenvolvimento histórico ao curso geral das coisas, e a própria história é submetida a uma filosofia sobre a natureza; não há nada que eles não saibam, eles jamais estão errados e a arte da dialética os libera para harmonizar cada aspecto da realidade com uma doutrina que pode reposicionar-se em qualquer direção para que jamais esteja errada.

A combinação entre profetismo e escolasticismo produz um sentimento análogo ao de crentes religiosos. A fé no proletariado e no curso da história, a compaixão pelos miseráveis que hoje sofrem, mas amanhã serão donos do próprio destino, e a esperança no futuro que trará a sociedade sem classes representam virtudes teológicas que aqui aparecem em outro molde. A fé não é depositada apenas na história, mas principalmente numa nova Igreja cujos laços com o Messias foram gradualmente afrouxados; a esperança não é mais depositada no futuro que inicialmente deveria ser alcançado por forças espontâneas no curso natural das coisas, mas que será talhado pela violência; a compaixão com o sofrimento da humanidade fortalece a indiferença às classes, nações ou indivíduos condenados pela análise dialética. A fé comunista justifica todos os meios, a esperança comunista não aceita a existência de múltiplas rotas que levam ao caminho de Deus, a caridade comunista nega aos inimigos até mesmo o direito a uma morte honrosa.

Trata-se da psicologia de um grupo, e não do universo de uma Igreja. O militante está convencido sobre seu pertencimento a um seleto grupo de eleitos, responsáveis pela salvação de todos. O fiel, acostumado a seguir uma linha repleta de traços tortuosos, ao repetir sucessivamente como um papagaio interpretações contraditórias do pacto Nazi-Soviético ou do Complô dos Médicos, por exemplo, torna-se de certa maneira um ‘novo homem’. De acordo com a concepção materialista, homens treinados sob certos métodos são dóceis à Autoridade e completamente satisfeitos com isso. Os engenheiros de almas não tem a menor dúvida sobre a natureza plástica do material psíquico a sua disposição.

Na moderação social-democrata, o socialismo se reduz a uma vaga preferência pela interferência estatal na economia e a propriedade coletiva; em seu extremo, ele se abre como um sistema global de interpretação do mundo que deve incluir, simultaneamente, a universalidade do cosmos e a os altos e baixos de uma revolta civil na Guatemala.

Alguns podem argumentar que a fé comunista se distingue de uma opinião política e econômica apenas por sua intransigência, que toda fé nova será sempre intransigente e que Igrejas tendem à tolerância apenas depois de enfraquecidas pelo ceticismo. Mas não se trata apenas do radicalismo: nada comparável à religião secular do comunismo surgiu a partir de movimentos nacionalistas ou democráticos.

O fenômeno poderia ser reduzido a uma espécie de fanatismo, mas seria esta a palavra certa para designar uma doutrina através da qual um único partido se transfigura como guia dos proletários unidos de todo o mundo, um único sistema de interpretação é superimposto à complexidade ininteligível dos fatos, uma mesma rota em direção ao socialismo é tida como obrigatória a todos, a humanidade é dividida em dois campos de acordo com a atitude individual relativa à causa sagrada e todos somos obrigados a re-escrever nossas biografias para que estejam em conformidade com a verdade revelada pelo Estado proletário?

 

Raymond Aron (1905-83) foi um sociólogo francês, amplamente considerado um dos mais influentes intelectuais europeus do século XX. Embora considera-se a si mesmo como um social democrata, Aron rejeitava a face ideológica do marxismo-leninismo e seu “Ópio dos Intelectuais”, a partir de onde o texto acima foi traduzido, é tido como uma das mais clássicas críticas políticas ao socialismo.  A distinção entre ideias isoladas que Karl Marx possa ter apresentado em obras esparsas – muitas das quais têm a simpatia do autor – e o corpo doutrinário e as claves interpretativas do marxismo revolucionário é necessária para a compreensão do texto acima.

Compartilhar