Desde que se tornou o principal meio para se entrar nas universidades, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem sido o principal assunto todos os anos no final de semana em que é aplicado. Para além dos problemas de uma única prova definir o rumo da vida de milhões de pessoas, nesse ano, o que não faltaram foram denúncias acerca de questões e do próprio tema da redação, que supostamente serviriam à doutrinação ideológica de esquerda. Tendo esse assunto já sido tratado por este Mercado, resolvemos dar uma olhada nas questões mais polêmicas do Enem, analisando se estariam tratando de inverdades ou imprecisões que serviriam a um propósito político partidário.

 

Simone de Beauvoir: uma filosofa inexpressiva?

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De cara a primeira questão do Enem no Sábado, na prova de Ciências Humanas citava um trecho do livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, no qual ela afirmava que ninguém nasce mulher, mas assim se torna, o que teria gerado críticas de muitos por estar propagando a teoria da Identidade de Gênero. Esse Mercado já se manifestou a respeito desse tema, evidenciando diversos estudos empíricos mostrando que o sexo ao qual você pertence não se define pelo órgão reprodutor com o qual nasceu. Para além disso, o já muito debatido trecho do livro pode levar a interpretações distorcidas acerca do que se trata: para muito além das questões de Identidade de Gênero, a filosofa disserta sobre o papel socialmente construído da mulher, principalmente no que se refere à sua inferiorização por sociedades machistas, tais como o cuido da casa e a subordinação aos maridos, uma realidade absolutamente predominante em 1949, quando foi publicado o livro.

Outra crítica feita à questão do Enem foi a respeito da suposta inexpressividade de Simone de Beauvoir, que não teria sido de importância suficiente para ser citada na prova. As razões de sua inclusão teria sido por ela ter sido abertamente de esquerda, inclusive tendo simpatizado com a Revolução Cubana. No entanto, é impossível negar o impacto da filosofa, não só academicamente, mas em toda sociedade francesa. A título de exemplificação, em 1971, Simone encabeçou uma lista de 343 mulheres famosas que, no manifesto conhecido como o “O Manifesto das Vadias”, declararam já ter realizado voluntariamente um aborto. Tal empreitada inspirou outra semelhante, na qual em 1973 mais de trezentos médicos declararam terem realizado cirurgias de aborto por questões humanitárias. Graças a essas iniciativas, a França em 1974 aboliu qualquer penalidade a mulheres que interrompessem a gravidez até as dez primeiras semanas.

 

Globalização: teria ela gerado mais desemprego?

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Essa questão mostra uma visão crítica do processo de Globalização, generalizado a partir das décadas de 70-80, que supostamente teria gerado desemprego. No entanto, tal afirmação é imprecisa, não tem nenhuma evidência empírica e pode levar a ideias equivocadas. A Globalização levou à integração de diversos países agrários e pobres a um novo sistema capitalista descentralizado comercial e produtivamente. Com isso, milhões de empregos e recursos foram criados, levando a taxa de pobreza do mundo ao menor patamar da história da humanidade, como mostra o gráfico abaixo. A consequência natural de tal processo foi a saída de milhões de pessoas do campo, em uma escassa produção de subsistência, para a cidade, onde procurariam empregos em novas indústrias em serviços, o que poderia ser tratado como um “aumento no desemprego”.

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O Nobel da economia Milton Friedman fez uma importante declaração sobre o processo os efeitos da integração comercial e produtiva dos Estados Unidos com o mundo: “Quando os Estados Unidos se formaram em 1776, era preciso de 19 pessoas em uma fazenda para produzir comida suficiente para 20 pessoas. Então, a maioria das pessoas tinham que gastar seu tempo e esforço no cultivo de alimentos. Hoje, é preciso 1% ou 2% da população para produzir comida para todos. Agora, considere a suposta grande quantidade de desemprego gerada no processo. Porém, não houve realmente desemprego gerado. O que aconteceu foi que as pessoas que anteriormente eram obrigadas a trabalhar na agricultura foram libertadas pela evolução tecnológica e outras melhorias para fazerem algo diferente. Isso nos permitiu desfrutar de um padrão de vida muito melhor e de uma gama muito maior de produtos”.

 

Agrotóxicos: uma ameaça à vida?

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Outra questão muito comentada teria sido acerca dos agrotóxicos na mesa brasileira, uma ameaça à vida segundo uma charge exposta no Enem. De fato, não há falta de evidências científicas acerca dos perigos do uso excessivo de pesticidas e agrotóxicos para a saúde dos brasileiros, que lideram o ranking do uso de tais produtos.  No entanto, é um contrassenso impedir o uso de técnicas agrícolas que aumentem a produtividade da terra na produção de alimentos, desde que não utilizados em níveis perigosos. Davi Lyra Leite, meu colega neste Mercado, já se posicionou favoravelmente, por exemplo, à utilização da técnica dos transgênicos, tendo em vista a ausência de evidências de risco à saúde pelo seu uso, e a importância do tratamento genético para a história do avanço agrícola nos últimos séculos, que ofereceu diversos benefícios para a humanidade, como produtos alimentares mais fáceis de cultivar e baratos de produzir. Sabe-se, inclusive, que o uso de transgênicos pode resolver grande parte do problema do uso excessivo de pesticidas na produção agrícola.

 

Ditadura Militar: uma política econômica ruim?

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Por fim, temos uma questão acerca da política econômica no período da Ditadura Militar. Segundo a charge e o comentário abaixo apresentados no Enem, a Ditadura Militar teria sido responsável por um grande endividamento externo, que teria sido extremamente prejudicial ao país. Muitos criticam que, em realidade, a política econômica dos militares foi de fato bem sucedida para o enriquecimento rápido do país,de modo que teria valido a pena, apesar da propagada contrária do atual governo. Já detalhamos aqui, no entanto, o porquê dessa interpretação estar equivocada. Em que pese o rápido crescimento do PIB nos anos 70, tal expansão foi de fato fortemente financiada por recursos estrangeiros – que foram utilizados inclusive para subsidiar a gasolina na crise do Petróleo de 73. Essa política econômica nos levou a dobrar a dívida externa de 1971 a 1982 em proporção do PIB, como mostra o gráfico abaixo. Graças a tal política e à reviravolta dos juros americanos nos anos 80, fomos levado a uma década de baixo crescimento, alta inflação e juros galopantes. Inclusive o Governo Dilma, no primeiro mandato, pareceu se inspirar na política econômica de tal período, e, como a História se repete, provavelmente colheremos os mesmos frutos da década de 80 nos próximos anos. 

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Tendo em vista as questões mais polêmicas do Exame Nacional do Ensino Médio, não há muita evidência de que há um projeto de doutrinação em curso aplicado por tal prova – apesar de alguns pontos mais enviesados. O problema do Enem de fato é mais profundo: são milhões de estudantes dependendo de uma prova para seguir uma vida digna, uma vez que nossa política educacional privilegia o Ensino Superior, em um sistema de vagas universitárias limitadas aliadas a um ensino básico precário, o que acaba por desbancar em uma maior concentração de renda promovida pela própria ação do Estado. Se houvesse de fato um projeto de doutrinação esquerdista em curso no Ensino Público, é improvável que o governo continuasse com políticas que atentam contra uma justa distribuição de renda na sociedade brasileira.

 

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