Com a chegada das manifestações marcadas para os dias 13 e 15 de março se ouve e se fala de golpe, militares, impeachment. Se faz necessário, portanto, questionarmos como anda a jovem democracia brasileira. Como já abordado aqui e aqui, esse período foi revolucionário para a economia brasileira. Mas, e do ponto de vista político as coisas estão mudando pra melhor? Para responder isso, precisamos, primeiramente, entender o que é democracia.
Democracia está longe de ser uma ideia consensual. Já ganhou inúmeras interpretações desde o seu surgimento na Grécia Antiga. Dentre as leituras clássias e modernas de ciência política, grandes filósofos se debruçaram sobre o tema – entre eles, Aristóteles, Mill, Locke, Rosseau, Marx – sem nunca chegarem a importantes denominadores comuns.
Já dentre a literatura contemporânea, há um maior consenso dentro da ciência política desde as importantes contribuições de Joseph Schumpeter e Robert Dahl. Hoje entende-se que um regime verdadeiramente democrático se insere no que é conhecido como democracia liberal. Diamond [1] apresenta quais são as características desse regime:
1 – Significativa liberdade individual de credo, opinião, discussão, fala, publicação, reunião etc;
2 – Liberdade para minorias étnicas, religiosas, raciais e outras minorias para praticarem apresentarem suas culturas e a sua religião e terem igual direito a participação política;
3 – O direito a todos os adultos de votarem e serem votados;
4 – Genuína abertura e competição na arena política;
5 – Igualdade legal para todos os cidadãos dentro de um Estado de Direito em que as leis são claras, conhecidas, universais, estáveis e e não retroativas;
6 – Um judiciário independente;
7 – A não utilização de práticas de tortura, terror, detenções não justificadas, exílio, interferência nas suas vidas pessoais pelo Estado ou atores não-estatais;
8 – Pesos e contrapesos institucionais no poder dos representantes;
9 – Real pluralidade de fontes de informação e formas de organização independentes do Estado;
10 – Controle civil sobre os militares.
Uma democracia liberal, portanto, é muito mais que votar, do que uma democracia eleitoral.Na verdade, o que não falta é ditaduras que tem processos eleitorais com o intuito de dar credibilidade ao regime, mas sem garantir as liberdades necessárias dentro de uma democracia liberal Uma verdadeira democracia liberal envolve diversos elementos que necessitam estar em constante desenvolvimento e fiscalização.
A volta brasileira ao regime democrático na década de 80 está inserido no que é conhecido como a ‘terceira onda democrática’ que se inicia com a Revolução dos Cravos em 1974 que tira do poder o ditador Salazar em Portugal. No caso brasileiro, pode-se colocar como marco histórico para a volta de um Estado democrático a promulgação da constituição de 1988 que instala um marco legal para o real estabelecimento de uma democracia liberal. Desde então, tivemos cinco presidentes. Eles nos moveram para mais próximo ou mais longe desse ideais democráticos? Ou seja, estamos aprofundando dentro do nosso sistema político os elementos fundamentais de uma democracia liberal ou estamos deixando eles de lado em função de alguma aventura política?
O brasileiro tem uma mentalidade estatista. E isso não é coisa do ‘cara do blog neoliberal’ dizendo. Marilena Chauí, uma das maiores intelectuais ligadas ao PT destaca isso [2] ao afirmar que uma das características que formam o Estado brasileiro e o nosso consciente coletivo é uma ideia que o sucesso nacional será através da política, ou seja, da ação Estatal através de messias que, com a graça divina, levariam o Brasil a ‘ao reino de Deus’. A nossa chegada a redenção, portanto, não seria através do trabalho como se afirmar ser o caso das nações anglo-saxões, mas pelo ordenamento coletivo e político a partir de, finalmente, se criar o Estado ‘bom’ com os políticos ‘corretos’.
No século XX, esse ideal se configurou no que hoje se entende como o ‘nacional-desenvolvimentismo’ brasileiro baseado nas interpretações cepalinas de centro e periferia, da necessidade de desenvolver a industria nacional e nas visões da ESG – Escola Superior de Guerra e no ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Essa linha de pensamento era a base política brasileira em quase todo o século XX em que o país era fechado ao comércio internacional e promovia, com dinheiro público, empresas nacionais.
A disputa política brasileira, no século XX, sempre esteve baseada no Estado, em como e onde usá-lo .A esquerda ancorada em diferentes tons de marxismo entendia o processo de industrialização como um passo necessário para a eliminação dos atrasos da produção agrícola e, por fim, chegarmos ao socialismo. O PSOL, por exemplo, é a heranla direta dessa linha de pensamento. A direita era nacionalista e militarista via que a abertura comercial era sinônimo de perda de soberania nacional e que o Estado tem o dever de criar uma nação forte. Bolsonaro é a herança que sobrou desse discurso que foi a base da ditadura militar. desse modo, teve direita e esquerda, mas ambas estatistas. Uma visão crítica do Estado tanto do ponto de vista moral, quanto da sua efetividade de gerar resultados positivos economicamente e bem-estar para a população. Ou seja, um pensamento liberal não foi uma força politicamente relevante.
Esse centralismo do Estado na política brasileira tem uma mudança a partir do processo de redemocratização ocorrido no final dos anos 80. O retubante fracasso das políticas intervencionistas e estatistas que levaram o país a uma ‘década perdida’ leva a uma nova dinâmica política. Pela primeira vez, há a alguma crítica a esse modelo. Mas, no começo, ela surge a partir de uma figura que, novamente, busca se postar como o messias, o salvador da pátria: Fernando Collor.
O seu retumbante fracasso político leva à presidência o PSDB. FHC não era estatista da mesma forma que as lideranças políticas foram no século XX, mas não pode, nem de longe, ser considerado equivalente a Ronald Reagan ou Margaret Thatcher como parte da esquerda costuma dizer. Os governos tucanos foram e são sememlhantes aos governos dos partidos social-democratas europeus que, de diferentes formas, abraçaram algumas reformas pró-mercado desde a queda do socialismo real. Mas, como no Brasil até uma tímida defesa do mercado era novidade, tornaram-se um dos novos polos em que a política brasileira gira.
O petismo, por sua vez, incorporou todo o discurso nacional-desenvolvimentista que permaneceu no pais em lugares como o departamento de economia da UNICAMP. Desde a sua fundação, o PT passsa por um processo de caminhho para o centro [3] em que as pautas mais socialistas, revolucionárias e estatistas vão se diluindo em pollíticas reformistas em função de que os seus principais grupos (campo majortitário e CNB) decidiram priorizar os pleitos eleitorais [3]. Na prática, isso gerou, especialment após a entrada de Mantega no Ministério da Fazenda, o que se conhece como ‘Nova Matriz Econômica” que pode ser entendido como o novo nacional-desenvolvimentismo que gerou, entre outras coisas, enormes recursos do BNDES para a formação de “campeões nacionais” como a JBS que, atualmente, tem controle do mercado pecuarista brasileiro, aumento dos gastos púlicos e importantes programas sociais. Com essa ida para o centro o PT uniu todos os principais adogados de maior presença do Estado desde Bresser-Pereira, Delfim Neto, Maria Conceição Tavares.
Pode-se dizer, portanto, que desde a redemocratização do país no final dos anos oitenta, a política do país opera entre o antagonismo de dois grupos. Por um lado, um grupo que tem como referência os partidos social-democratas europeus que aceitam mercados, mas acreditam em um papel para o Estado. Na realidade estatista brasileira esse grupo vira de ‘extrema direita’. No outro lado, há um grupo que acaba unindo visões (neo-)marxistas com estrututuralismo e políticas econômicas heterodoxas. Apesar dos vários problemas, esse é um dos períodos mais, se não o mais, liberal que o Brasil experimentou e deu resultados positivos.
Os terríveis números do desempenho econômico nos últimos anos resultaram na decisão de Dilma de colocar Levy no Ministério da Fazenda. Isso tem uma consequência clara de uma nova política econômica. Mas, também, é a grande e final prova que o ‘espiríto de Sion’ [4] nunca vai a política de governo do PT. Ou seja, as ideias da fundação do partido de um ‘reformismo forte’ claramente anti-mercado foram solapadas em prol da realpolitik eleitoral. Se reconheceu, mesmo que tacitamente, que a necessária política de estabilidade econômica e monetária no Brasil tem que ser através do tripé macroeconômico. Os impactos dessa escolha ainda se ficaram claros, mas permite algumas conjecturas.
A primeira é o enfraquecimento do PT.A tímida escolha por políticas ortodoxas deve levar a críticas e cisões tanto dos nacional-desenvolvimentistas, quanto dos membros mais de esquerda do partido que ansiavam com um reformismo mais ‘forte’. Se isso vai resultar em fortes rachas internos é cedo de dizer, mas o PT caminha a passos largos para ser mais um partido de gabinete, sem articulação com segmentos da sociedade. O segundo é a ascensão do pensamento conservador/evangélico que uma nova visão de mundo distinta da maioria da nossa elite tradicional laica.
O terceiro é o conflito geracional. Não é simples coincidência que a ascensão de um movimento liberal/libertário ocorra entre os mais jovens. A geração dos nascidos não se baseiam na cosmovisão de luta contra a ditadura que existe na geração anterior. A atual geração tem os seus olhados focados nas questões individuais econômicas e sociais. Se preocupa com os direitos individuais LGBT e das mulheres e acesso a uma economia mais livre em que possam empreender e consumir produtos e serviços com mais facilidade.
Esses novos movimentos se juntam ao enfraquecimento dos velhos (PT e PSDB) elevam ao fim do ciclo de disputa entre dois blocos de centros que marcou a política brasileira até 2013. Mas, há boas noticias e, paradoxalmente, são o ‘Mensalão’ e o ‘Lava Jato’. A capacidade de haver negociações e condenações mostram que as instituições que formam a nossa democracia liberal estão ficando mais fortes. Além disso e apesar de toda a paranóia, grupos golpistas são marginais nos dois lados do espectro político como ocorre nas democracias consolidadas. O ‘Fora Collor”, o “Fora FHC” e, agora, o “Fora Dilma” se mostram em indignações políticas dentro da institucionalidade. Pode ser otimista, mas tudo indica que estamos indo para um país mais polarizado, mas dentro da insitucionalidade, do respeito as regras, dentro de uma democracia liberal. Por fim, os atuais discursos de golpe são tão descabidos quanto os discursos de impeachment.
[1] DIAMOND, Larry. The Spirit of Democracy: The struggle to biuld free socities throughout the world. New
[2] CHAUÍ, Marilena. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abrama, 2001
[3] SECCO, L. História do PT: 1978-2010. Cotia: Ateliê Editorial, 2011.
[4] SINGER, A. Os Sentidos do Lulismo: Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia Das Letras, 2012.