Por Valdenor Júnior
Há 50 anos, em 31 de março de 1964, o Brasil sofreu um golpe de estado, que levou ao regime militar. O objetivo inicial seria tirar o presidente João Goulart, cujas políticas o alinhavam mais à esquerda (e temia-se que ao comunismo), e promover novas eleições. O fato é que a ditadura militar estendeu-se até 1985, e foi marcada por perseguições políticas, censura e intervencionismo econômico.
Há muito se sabe que a esquerda brasileira fez oposição ao golpe e às políticas da ditadura que se seguiu. Mas pouca gente sabe da oposição liberal, libertária. Dois sujeitos merecem ser mais conhecidos: Raul Pilla e Henry Maksoud.
Entre a ditadura Vargas e a ditadura militar, tivemos o período da chamada “república bossa-nova” ou “república populista”. Pouca gente sabe que, durante este período, Raul Pilla atuou na política nacional, pelo chamado Partido Libertador, preconizando o parlamentarismo e o liberalismo político.
Quando da discussão no Congresso sobre uma lei de segurança nacional em 1949, ele defendeu que são os Estados débeis, que não merecem mais defesa, que recorrem a expedientes extraordinários para se defender, e que é estranho que, no momento em que mais precise se proteger o indivíduo, venha a se dar maiores poderes ao Estado! Veja na íntegra:
“O Estado precisa defender-se das arremetidas de seus inimigos. Mas se o Estado, que é o poder, não se defende pelo normal exercício das suas faculdades e necessita de recursos extraordinários, é que já não tem, ou não merece, defesa. São os Estados doentes, os Estados avariados, os Estados degenerados os que sentem a necessidae de remédios heróicos. Quase não há dia em que os jornais não relatem uma violação dos mais elementares direitos individuais, ocorrida, não no remoto sertão, mas na própria capital da República. E é justamente quando tão débeis e desamparados se encontram os cidadãos em face do Estado, que se cuida de reforçar o Estado em face dos cidadãos? Haverá coisa mais contraditória que esta?”
Vê-se que Raul Pilla não cedeu à armadilha típica da Guerra Fria, a doutrina da segurança nacional, justificativa oficial para o golpe e a persistência da ditadura. Para ele, a liberdade não devia ser limitada sob pretexto da segurança. Em 1947, ele foi um dos poucos, ainda sob o regime democrático, a votar contra a cassação do Partido Comunista Brasileiro, mesmo sendo um anti-comunista convicto!
Em 1961, com a crise política decorrente de João Goulart ter assumido a presidência (após a renúncia de Jânio Quadros, do qual Goulart era vice), foi Raul Pilla quem fez a emenda para a implementação do parlamentarismo. Sabe-se que Goulart assumiu a presidência sob um regime parlamentarista, e que foi depois dessa emenda ter sido afastada por um plebiscito, que os militares deram o golpe.
Ou seja, Pilla defendeu o parlamentarismo como saída para a crise institucional, enquanto a direita conservadora defendia o golpe militar e a manutenção de um regime de exceção enquanto durasse a ameaça comunista. São mundos completamente opostos de pensamento.
Pilla retirou-se da vida pública pouco tempo depois do golpe militar, não aceitando o que, segundo ele, seria a farsa de representação desse regime. Ao deixar a vida pública, disse que “o poder pessoal é um tremendo tóxico psicotrópico que embriaga, vicia e pode chegar a demência.” Já estava idoso à época, e, como ele mesmo afirma, não tinha mais o ímpeto da juventude. Mas deve merecer nosso respeito enquanto brasileiros.
Outro nome importante é Henry Maksoud, que, em 1974, comprou a Revista Visão. Na época da censura, Maksoud não se esquivou de promover uma linha editorial liberal à Visão, criticando os excessos do intervencionismo, do estatismo e do desenvolvimentismo do regime militar. Mas também sofreu represálias advindas do regime autoritário.
Conforme nos revela estudo de João Elias Nery,
“a principal censura à revista deu-se na segunda metade dos anos 1970, em função das críticas do proprietário da revista, H. Maksoud, à participação do Estado na economia. Para enfrentar esta divergência o governo federal deixou de investir em publicidade na revista e inibiu a participação de empresários que mantinham relações com a esfera federal e também passaram a não anunciar em Visão, temendo represálias.”
Segundo Isaac Jardanovski, esta represália contribuiu para que a revista passasse por significativas dificuldades financeiras, passando por sucessivas crises, até deixar de circular por completo no início da década de 90.
Em uma interessante página de jornal da época das discussões da Constituinte de 1988, Maksoud revela outra afronta à liberdade de expressão que sofreu durante o regime militar, pois, ao comprar a Visão, foi impedido de nela escrever por não ter diploma de jornalismo! Lembre-se que aqueles eram os tempos da famigerada Lei de Imprensa, aprovada em 1967, em pleno regime ditatorial.
Em meados de 1987, Maksoud também trouxe à público um projeto seu de Constituição para o Brasil, de nítido caráter hayekiano, que implementaria a demarquia! Sobressai do texto a separação completa dos poderes, a eleição dos membros do legislativo por meio de um sistema eleitoral diferenciado, sem passar por partidos políticos, e a não intervenção do Estado na economia. Certamente, uma Constituição demárquica seria melhor que a nossa atual Constituição de 1988, de nítido caráter intervencionista.
Em entrevista concedida à Folha de São Paulo em 2007 , Maksoud deixa ainda mais claro seu libertarianismo militante, preconizando mesmo uma guinada à anarquia:
“Você está rindo, eu estou falando sério. Sou anarquista. As pessoas pensam que anarquia é bagunça. Anarquia é um sistema de governo. Quer dizer governo mínimo. Você já imaginou o governo viajando o tempo todo e em aviões bacanas por esses lugares todos? Anos atrás, uns amigos me acusavam de eu ficar criticando, escrevendo, falando e nunca apontar uma solução. E aí dei uma solução: férias coletivas para o governo. Vocês ficam rindo, mas falo sério. O Brasil tem um monte de reservas em dólar, não tem? Bilhões e não tem o que fazer. Olha o mapa do mundo [aponta um mapa-múndi], há umas ilhas ali do lado da Austrália, do lado do Pacífico, compra umas belas ilhas e põe os governos lá em férias.”
O regime militar foi um atentado a caros valores liberais e humanitários. Os liberais e libertários brasileiros devem deixar claro, nesta data de 50 anos do golpe militar no Brasil, que a defesa da liberdade é incompatível com a repressão autoritária de direitos individuais básicos. A obra de Pilla e Maksoud deve ser recordada, contra o fantasma autoritário que está sendo renovado no quadro da direita brasileira.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, escreve em seu blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Também escreve para o Center for a Stateless Society – Brasil e o Liberzone.