Por João Pedro Lang
Publicado originalmente no In Dubio Pro Libertate
As eleições presidenciais brasileiras são marcadas, a cada quatro anos, por uma recorrente série de argumentos que buscam confundir o eleitor a interpretar a corrida eleitoral de uma forma conveniente a cada candidatura. Essas confusões, embora claramente munição eleitoral, podem afetar até mesmo quem busca estudar a história recente do Brasil de forma desinteressada ou superficial. Onipresentes no meio eleitoral brasileiro, turvam o debate político do país em época de eleições e fora delas.
São três principais mitos retóricos que enviesam a interpretação da história.
1. Dilma é uma continuação do legado e das mudanças de Lula.
Conclusão retórica eleitoral: É preciso eleger Dilma para prosseguir com a redução da pobreza e da desigualdade. Qualquer interpretação honesta da política econômica do primeiro governo Lula a verá como continuísta em relação à de FHC. A política econômica que tirou milhões da miséria e fundou o Bolsa Família foi tão “neoliberal” e ortodoxa quando a política de juros altos e arrocho salarial implementada por Armínio Fraga. Cogitou-se inclusive convidar o ministro da Fazenda dos anos finais de FHC para aconselhar a política econômica lulista. A similaridade de políticas foi garantida por Lula já no período eleitoral, quando buscava tranquilizar o povo e os mercados sobre o caráter ortodoxo de seu planejamento. Em meio a críticas ao “esgotamento do modelo” do governo tucano, a famosa “Carta ao Povo Brasileiro” de Lula garantia exatamente a continuidade daquele pacote, assegurando o cumprimento das bases do tripé macroeconômico. O Banco Central de Henrique Meirelles era, na prática, autônomo, e ainda assim Lula não “entregou o país aos banqueiros”, como sugeriam as propagandas petistas no primeiro turno.
Os programas sociais focalizados, parte da demonizada “agenda neoliberal” do Banco Mundial, foram postos em prática, concentrando os subsídios em quem realmente precisa. Em 2003, quando Palocci anunciava a focalização, seguiram-se duras críticasde membros do governo que insistiam na universalização, como Maria da Conceição Tavares. O governo de Lula, porém, decidiu pela focalização, seguindo os pitacos do economista de Chicago Ricardo Paes de Barros. Os frutos dessa polêmica foram o Bolsa Família e (em menor escala) o Fome Zero, políticas sociais hoje universalmente festejadas pelos petistas. A redução da pobreza no período deveu-se não só a esses meritórios programas sociais, mas também ao ciclo virtuoso de crescimento econômico, motivado pela estabilidade e austeridade macroeconômica.
Em seu segundo mandato, mais confortável para dar seguimento às mudanças pretendidas pelo PT desde a década de 1990, Lula traçou uma estratégia para romper com as bases do “neoliberalismo” na figura de FHC. Imagem paradigmática dessa pretensão foi a posse de Guido Mantega na Fazenda já em 2006, substituindo Palocci. A crise mundial, que explodiu a olhos vistos ao final de 2008, foi o pretexto necessário para a mudança, embora Lula afirmasse categoricamente que, no Brasil, seria apenas uma “marolinha”, em oposição ao “tsunami” que teria ocorrido nos países desenvolvidos. Pôs-se em prática, a partir de 2009, uma nova matriz macroeconômica*.
Firmaram-se as bases do rompimento com o pacote austero do tripé em favor de medidas heterodoxas. O caráter anticíclico das políticas assegurou uma recuperação rápida e suave. Mas as políticas continuaram. Inaugurou-se um ciclo quase-desenvolvimentista que, por meio da fracassada política industrial do BNDES, elegeu campeões nacionais e investiu em projetos cuja eficiência econômica era questionável. Trata-se de uma política francamente concentradora de renda a partir de subsídios aos mais ricos em favor da permanência de uma indústria que insiste em sair do país, dado o ambiente macroeconômico instável e desfavorável para investimentos em capital fixo.
Os resultados desse Frankenstein econômico já se manifestam em baixo crescimento, em tendência clara de queda (ver gráfico abaixo), redução da renda per capita, desaceleração da queda na desigualdade e baixíssimos índices de investimento. A miséria parou de cair. O BNDES favorece a “inserção internacional” de poucas grandes empresas, mas toda essa política industrial é incapaz de reverter nosso processo (possivelmente virtuoso) de desindustrialização. Em comparação com a América Latina e o mundo em desenvolvimento, nossa posição é pífia. Projeta-se para 2014 um crescimento quase nulo do produto, abaixo mesmo daqueles figurões europeus (Alemanha, Espanha, Reino Unido) que Mantega insiste serem a base de comparação para o Brasil.
Fonte: Mercado Popular.
A drástica diferença entre a política econômica do primeiro governo Lula, que teve mais sucesso no crescimento econômico sustentado conjugado à redução acelerada da pobreza, e a nova matriz macroeconômica seria óbvia, não fosse uma segunda confusão histórica que procura justificar os baixos índices do atual governo.
2. A economia vai mal devido à crise.
Conclusão retórica eleitoral: A culpa do curso negativo da economia não é do governo e não devemos utilizar os resultados econômicos para justificar um “retrocesso”.
A “marolinha” que Lula negligenciava tornou-se, a julgar pela retórica do governo, um terremoto seguido de tsunami, cujos aftershocks abalam o país até hoje, 6 anos depois de seu início. A bem da verndade, enquanto o mundo desenvolvido se recupera da crise, o Brasil só mostra sinais de piora. A crise brasileira, longe de ser reflexo da crise internacional, decorre da continuidade de políticas que, embora tenham tido sucesso em nossa saída da crise em 2009-2010, demonstram claro esgotamento e produzem uma tendência recessiva, atualmente, em 2014.
A crise imobiliária, que estourou nos EUA em 2008-2009, e a crise da Zona do Euro, de 2010-2011, já tiveram seus ápices. Os países agora voltam gradualmente a retomar as políticas econômicas de antes da crise e seus índices normais de crescimento, sem a euforia que antecedeu o estouramento da bolha. O Brasil, que se saiu bem no imediato pós-crise, com um crescimento de mais de 7% em 2010, agora atravessa um período de recuperação com índices tão pífios que contrastam até mesmo com os países que mais sofreram com a crise. A inflação beira 7%, índices de 2003, superados pelo governo Lula. Enquanto o Brasil projeta crescer míseros 0,3% em 2014, a Espanha prevê 1,3%. Em comparação com outros países latino-americanos, a real base de comparação para o país, só somos invejados nas bolivarianas Argentina e Venezuela. O mesmo ocorre com outros países com renda per capita semelhante ao nosso.
Se a crise brasileira fosse fruto da crise internacional, se esperaria caminhos equivalentes em países vizinhos e semelhantes ao Brasil, e resultados claramente piores nos países desenvolvidos. Se o quadro internacional não tivesse sinais claros de recuperação, seria de se esperar que a atual onda recessivas se manifestasse já em 2009-2010, pois a política econômica brasileira desde então só se aprofundou. Os dados desmentem essas hipóteses. Dado isso, o governo se agarra ao índice de desemprego, em comparações absolutamente descontextualizadas. Compara-se o índice de desemprego do Brasil, um país em desenvolvimento, com aquele dewelfare states, acostumados com desemprego maior, como países europeus. Embora o desemprego brasileiro seja baixo, a taxa de desocupação revela uma realidade preocupante: há muitos brasileiros sem emprego que não procuram trabalho, provavelmente dada a facilidade de crédito no país atualmente.
A comparação com a Europa em crise, preferida por Mantega e outros apologistas da política econômica de Dilma, é absolutamente sem propósito. Trata-se de países desenvolvidos com um histórico de políticas de bem-estar social (que levam a constante alto desemprego) que não são nem mesmo os principais parceiros comerciais do Brasil, o que talvez justificasse uma propagação de resultados ruins.
O governo Dilma propagandeia também as taxas de juros artificialmente baixas do país, festejando o histórico acesso ao crédito. Esse resultado seria positivo, não fossem duas coisas. Em primeiro lugar, a falha em impulsionar o investimento no país, ou melhor, em contrabalançar os efeitos negativos da instabilidade macroeconômica sobre o investimento. Em segundo lugar, as circunstâncias internacionais. O Federal Reserve americano planeja, em 2015, aumentar sua taxa básica de juros do mercado interbancário (federal funds interest rate), previsivelmente iniciando uma onda mundial de crescimento dos juros, atingindo em cheio a população brasileira altamente endividada, redundando em insolvência generalizada que pode comprometer a economia brasileira em 2015. Se Aécio for eleito, terá que lidar, à imagem de FHC, com juros altos e uma economia abalada por choques externos. Seria propagada ainda outra confusão que permeia o debate político no Brasil.
3. A política econômica dos governos tucanos é baseada em arrocho e juros altos.
Conclusão retórica eleitoral: É preciso eleger Dilma para evitar um “retrocesso”.
A política econômica do PSDB não é baseada nesses pontos mais que a política econômica do primeiro governo Lula. Afinal, elas seguem as mesmas bases e linhas gerais. Contudo, circunstâncias históricas alimentam essa confusão. Os governos FHC lidaram com o problema de continuar o ciclo positivo promissor do Plano Real, controlando a inflação com medidas de austeridade nos gastos públicos, contenção da indexação (inclusive de salários, um dos preços mais importantes da economia) e juros altos, que tiveram seu ápice na sequência da crise especulativa mexicana, que ameaçava se repetir no Brasil. Nesse contexto, os juros altos combateram a fuga de poupança e a inflação de demanda. No governo Lula, as mesmas políticas foram aplicadas num cenário internacional de bonança, permitindo um ciclo de contínuo crescimento econômico.
Qualquer que seja o candidato eleito em 2014, haverá uma alta nos juros em 2015, não devido a uma política interna orientada para esse fim, mas sim como decorrência de mudanças internacionais. Não interessa aumentar os juros; nem à política social-desenvolvimentista de Dilma, focada no BNDES, ou à de Aécio, que buscará combater a inflação de custos. Trata-se de uma circunstância internacional que age nesse sentido. Não há, contudo, sinais de que será promovido arrocho salarial (isto é, reajustes do salário mínimo abaixo do aumento da produtividade do trabalhador); isso só faz sentido quando a inflação tem um forte componente inercial, o que era o caso nos anos FHC, mas não é o caso agora.
Sendo Aécio eleito, como parecem indicar as pesquisas eleitorais, propaga-se essa confusão. O PSDB firma-se no imaginário como o partido dos banqueiros. Uma política econômica mais ortodoxa fica com o nome sujo devido às circunstâncias, ignorando-se que se trata da mesma política “neoliberal” de Lula. Ainda pior, alimenta-se o mito do (neo)liberalismo como gerador de pobreza e desigualdade, confundindo-se experiências corporativistas com experiências liberais.
Não segue daí que liberais devem votar em Dilma, ou que um governo Dilma seria menos danoso ao liberalismo que um governo Aécio. A preocupação constante dos liberais deve ser o bem-estar da população, e nesse sentido é absolutamente positivo “retroceder” às políticas de FHC e Lula e ao ciclo de crescimento e redução da pobreza. Uma continuação do modelo desenvolvimentista de Dilma aumentará a simbiose entre grandes empresas e Estado, diminuindo os custos do rent-seeking e dificultando a implementação de um modelo liberal no país.
São essas confusões que retroalimentam a dicotomia entre os dois partidos, como numa relação dialética em eterna reprodução. Por isso, se a intenção é superar a dicotomia PT-PSDB e criar as bases para um debate político plural, que acolha as ideias liberais, é imperativo, mais que apoiar Aécio privando-se da crítica ao modelo tucano**, combater e buscar a superação dessas três confusões que permeiam o debate eleitoral e as discussões políticas em geral no Brasil.
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*Embora tenha de fato iniciado em 2009, o governo passou a utilizar esse nome oficialmente apenas no segundo ano do governo Dilma, em 2012.
**N. do Editor: Destaque-se que as posições de Dilma e Aécio são muito parecidas,e por isso remetemos ao artigo daqui do site “Dilma e Aécio poderiam ser do mesmo partido“, por Felippe Brandão, que representa a posição geral deste site em relação aos dois candidatos.