A crise financeira revelada pelos governos estaduais tem sido destaque no noticiário nos últimos meses e está longe de ser resolvida. Salários de servidores atrasados, obras paradas e sistema de saúde prejudicado são apenas algumas das consequências do rombo nos cofres de estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No entanto, há que se fazer uma pergunta em um momento grave como esse: por que, ao mesmo tempo em que a crise dos estados é noticiada, não se fala em crise no sistema federativo? Não é estranho que a situação seja tratada como se fosse matéria separada do Governo Federal? As respostas para essas e outras questões estão por trás da estrutura que norteia o relacionamento entre municípios, estados e a União: o Pacto Federativo.

Podemos resumir o Pacto Federativo como um conjunto de regras que define a distribuição de tarefas, impostos e gastos entre os entes da Federação. Municípios e estados possuem fontes independentes de arrecadação tributária, como IPTU e ICMS, mas ainda podem contar com repasses e empréstimos feitos pela União. Entre os objetivos do Pacto estão a preservação da autonomia e o equilíbrio das forças entre os entes federativos, mas a desatualização das regras em função da evolução de algumas regiões brasileiras e o desrespeito ao limite da dívida que poderia ser acumulada pelos estados, tem colocado o sistema em xeque.

O Projeto de Lei Complementar 257, ou PLP/257, prevê que o Governo Federal negocie com os estados formas alternativas ao pagamento da dívida deles com a União. A situação do Rio de Janeiro, que tornou-se insustentável após a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, é a mais grave até agora, nos faz refletir sobre o futuro da Federação e sobre a urgência de reformas econômicas.

Sistema financeiro desatualizado e limite da dívida com a União

Nosso sistema financeiro atual é baseado na reforma econômica ocorrida em 1967, durante o Regime Militar. As leis envolvendo as regulações das finanças estaduais e as obrigações federativas aos seus entes inferiores se formulam inicialmente em torno da Resolução nº43/2001, do Senado Federal, onde se delimitam os incentivos e punições aos estados que não cumprirem com as condições impostas pela Federação.

Para entender como se dá o processo de endividamento dos estados, precisamos lançar mão de dois indicadores fiscais: a Receita Corrente Líquida (RCL ) e a Dívida Consolidada Líquida (DCL).

A Receita Corrente Líquida (RCL) é o somatório das receitas arrecadadas (tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços, transferências correntes e outras receitas também correntes) no mês de referência e nos onze meses anteriores, deduzidas as transferências constitucionais e contribuições sociais. No caso dos estados, são deduzidos os valores recebidos da União e os valores transferidos aos municípios. Já a Dívida Consolidada Líquida (DCL), corresponde às obrigações financeiras no mês referente e nos onze anteriores, deduzido o saldo relativo aos haveres financeiros (disponibilidade de caixa e outros) registrados como saldo positivo.

O que acontece com os estados que devem além do limite?

Os estados que permitem que a DCL fique duas vezes maior que a RCL, violando a legislação orçamentária, não podem realizar operações de crédito internas ou externas (com bancos internacionais, por exemplo). Caso a Federação esteja na lista de pagamentos, os estados também podem ter seus recursos bloqueados, como o Governo Federal fez questão de demonstrar no recente bloqueio imposto ao Rio de Janeiro.

Fazendo uma análise da progressão da relação entre DCL e RCL com dados recolhidos pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), podemos ver quais Estados não têm conseguido se adaptar à legislação.

Definitivamente o problema não é do sistema federativo como um todo. Temos três possibilidades: ou a Federação esteve falhando apenas com alguns estados, ou por muito tempo estes não conseguiram se ajustar às regulações federais ou a falha é bilateral.

Dos estados especificados no gráfico, São Paulo é o único com condição autônoma para reduzir o tamanho de sua dívida que é, proporcionalmente, a menor. O Rio de Janeiro é um tradicional aliado do governo federal e sempre contou com ajuda para obras estruturais, mas de fato, pouca ajuda recebeu no alinhamento entre Cabral, Pezão e o governo federal. A realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos se deu com recursos do município e do estado, com repasses da União atrasados ou simplesmente não entregues. Nos últimos meses, a ilusão do para-quedas federal terminou: a União bloqueou as finanças do estado até o pagamento das dívidas com a Governo Federal. Minas Gerais saiu de uma época de commodities altas e detém dívidas associadas com indexadores acima da inflação e acima do PIB. O desequilíbrio da máquina pública é percebido no alto gasto com a folha de pessoal: 52% da arrecadação. Considerando-se os valores que obrigatoriamente devem ser destinados a setores básicos, como saúde e educação, não sobram recursos para pagar nem os juros da dívida com a União. Por fim, o Rio Grande do Sul nunca conseguiu se adequar plenamente ao regulamento federal, com uma dívida acima da sua capacidade de pagamento e que cresce além da inflação e do Produto Interno Bruto (PIB).

Onde a União falhou com os Estados?

Durante o Governo Dutra, pela Emenda Institucional nº18, artigo 21, foi criado o Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal (FPE) com base no Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Com algumas progressões desde então, especialmente em 1993, foi definido que seus recursos provém de 21% da arrecadação do IPI e do IR. Suas distribuições, de acordo com a Lei Constitucional 62, determinam que 15% sejam para as regiões Sul e Sudeste e 85% para o Nordeste, Norte e Centro-Oeste, com o objetivo de promover equilíbrio socioeconômico entre as regiões.

Para tentar balancear essa conta, a União se utiliza do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), e esse é responsável por 60% das transferências federais para o Sul e Sudeste. Em 2016, FPE e FUNDEB representaram 90% das transferências da União aos Estados, de acordo com dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Porém, enquanto a maior parte dos valores destinados ao Sul e Sudeste são provenientes do FUNDEB, destinado apenas aos gastos na área da educação, as transferências autônomas vão, em sua maior parte, para o Norte e Nordeste. A União tenta manter um equilíbrio entre os estados, mas a situação atual não é coerente com a importância deles. Para se ter uma noção do valor total dos repasses, basta observar que é maior que a receita consolidada de São Paulo: R$ 158 bilhões no último ano. Esse montante seria suficiente para zerar as despesas correntes do Estado do Rio de Janeiro por um ano e meio.

O Pacto Federativo precisa de mudanças?

A falta de equidade nas transferências da União demonstra uma necessidade de reavaliar as formas em que o Pacto Federativo se desenvolve em nosso sistema de governo. Por maior que seja a vontade dos legisladores de criar uma sociedade igualmente desenvolvida e próspera, a Federação não pode significar um peso ou um privilégio aos povos de certas regiões do Brasil. Atualmente, o Pacto Federativo não leva em consideração as mudanças no modelo produtivo regional ao longo das últimas duas décadas e nem as novas matrizes econômicas. Assim, infla no Norte e Nordeste, baseado em um modelo de transferência ultrapassado, levando-se em conta o desenvolvimento econômico da região.

Outra mudança importante seria a troca dos fundos de participação para estados e municípios por transferências diretas, da arrecadação direto aos Estados e municípios. Isso acabaria com o uso dos recursos como barganhas políticas.

Rio de Janeiro: o que acontece quando um Estado tenta suprir o lugar da União 

O Estado do Rio de Janeiro mostrou como o aumento de gastos sem ajuda devida da União pôde levar a uma situação insustentável: se foi necessário uma Copa do Mundo e uma Olimpíada para gerar 15 quilômetros de metrô e alguns complexos esportivos (muitos abandonados atualmente), no custo de a um endividamento acumulado de R$ 22 bilhões apenas para estas obras, além de outros R$ 70 bilhões, totalizando R$ 90 bilhões ainda a serem pagos pelo governo estadual, é possível decretar o fim do Estado do Rio de Janeiro como locomotora de investimentos.

Hoje, o Rio pode ser considerado um estado falido, capaz apenas, caso haja anos de melhoras, de pagar satisfatoriamente suas contas de pessoal – a maior conta nessa área entre todos os Estados. Minas Gerais, embora com uma melhoria em sua produção, ainda terá de lidar com os desastres do ano passado na região de Mariana e passar, de forma mais amena que o Rio, por uma diminuição da folha de pagamentos. No Rio Grande do Sul, o governador eleito prometeu enxugar a máquina pública mas, na prática, pouco se viu até agora nas contas do Estado.

Independentemente dos problemas estruturais, chegamos à conclusão de que a crise foi provocada pela diminuição na arrecadação dos entes federativos, o que poderia ter sido reequilibrado com um aumento momentâneo das transferências. Isso só seria possível, é claro, caso as regras para as transferências dos Fundos fossem modificadas. Cabe agora, aos representantes dos estados em calamidade fiscal, a negociação, junto ao Governo Federal, de um plano consistente e realista de recuperação fiscal. Do contrário, as perspectivas a esses Estados só tendem a piorar.

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