Trump disputa o posto de homem mais poderoso do mundo contra Hillary Clinton em novembro. A chance de ele perder as eleições gerais é enorme – desde que, é claro, os democratas tirem o traseiro da cadeira e compareçam às urnas. Até agora os eleitores do Trump estão bem mais mobilizados, e são pessoas bem mais apaixonadas que o eleitor médio da Hillary.

Todavia, no fim acho que o Trump vai perder por duas razões: 1) ele é inconsistente nas opiniões e 2) é bem menos “bom negociador” do que se apresenta. Mesmo que ele esteja menos à direita que alguns de seus concorrentes diretos (o que o favoreceria em eleições gerais), ele tem múltiplos flancos a serem atacados – John Oliver explorou os principais muito bem já. A campanha dos democratas tem guardado a munição pra quando for oportuno, e acho isso sábio. Nas gerais a Hillary terá o apoio de pelo menos 60% dos EUA (toda a mídia e boa parte dos conservadores) pra atacar. A mensagem de união que Hillary apresenta será parecida com a de esperança do Obama. Logo, Trump vai perder.

É claro que eleições são uma caixinha de surpresa e tudo pode acontecer, mas o Trump crescendo muito e mesmo assim perdendo é o cenário ideal para a sociedade americana. Porque ela permite um momento de grande reflexão.

Afinal, por que Trump, e por que agora? Examinar isso pode ser muito positivo, e pode trazer ensinamentos pra nós brasileiros também.

O New York Times publicou há pouco um artigo muito bom cobrindo exatamente essas questões, especialmente do ponto de vista econômico. O autor diz que Trump mobiliza reclamações totalmente legítimas do eleitorado. Por exemplo: a globalização não deu exatamente certo para os americanos nos últimos 10 anos, e Trump joga aberto sobre ser duro com a China e trazer 10 milhões de empregos “de volta”. Sabe-se lá como, mas na prática ser anti-imigração é mais um desdobramento natural do zelo por empregos locais do que qualquer outra coisa. Você pode achar isso xenófobo, mas a verdade é que parte enorme do eleitorado é preocupado com os imigrantes (e eles têm razões bastante legítimas) – e os políticos normalmente ignoram o assunto.Mesmo entre os eleitores democratas: 32% acredita que imigrantes têm um efeito mais negativo que positivo.

Ademais, Trump simboliza a desconfiança do público com políticos tradicionais, corruptos. O “Make America Great Again” é destinado a quem viu banqueiros ricos se beneficiando do governo enquanto a classe média ficava à míngua. Trump consegue pegar emprestado os pedaços do discurso Occupy Wall Street e tirar os que não valem pra direita, como taxar demais os milionários.

Mas para além da macroeconomia, há um fator que é extremamente difícil compreender pra quem tá de fora (e muitas vezes pra quem tá aqui nos EUA): a do voto branco-definitivamente-branco, mas não necessariamente racista.

Privilégio de quem mesmo?

Não é muito difícil acreditar que Trump é racista. No mínimo ele claramente não se incomoda com o apoio de grupos de supremacistas brancos, e já chamou manifestantes de Black Lives de “uma desgraça”.

Mas a verdade é que há uma gigantesca quantidade de brancos americanos que viram suas vidas piorarem significativamente na última década e meia, enquanto viram a dos negros melhorar, na média, em várias frentes importantes. ATENÇÃO: não estou dizendo que o racismo está quase no fim, que não há por que lugar contra ele, ou que os negros estão melhores de vida que os brancos aqui. É óbvio que a base é muito diferente, e os negros têm uma desvantagem histórica da escravidão, que ainda não foi recuperada – eu moro no Harlem e sei bem. Estou falando do que se percebe e da história recente.

E na história recente, temos fenômenos que nunca ouvi citados na mídia brasileira como esse:

Mortalidade de negros e hispânicos caindo, à esquerda, e subindo entre brancos, à direita.

Mortalidade de negros e hispânicos caindo, à esquerda, e subindo entre brancos, à direita.

Graças à epidemia de heroína e suicídios em regiões majoritariamente brancas degradas com desemprego, essa é a primeira geração de brancos que deve viver menos que seus pais, na média. Essa reportagem do New York Times dá conta do fenômeno.

Outra: depois de duas décadas de leis absurdas e uma guerra contra as drogas falida, que prendeu desproporcionalmente negros por coisas que nem deveriam ser crimes, a tendência está se revertendo. O número de negros presos caiu 22% de 2000 pra cá. O índice continua sendo altíssimo e é preciso fazer muito para ele diminuir, mas nos últimos 15 anos, como nota o Washington Post, os brancos não foram beneficiados com o “desencarceiramento”. Especialmente as mulheres:

Presas por 100 mil habitantes nos EUA

Presas por 100 mil habitantes nos EUA

Há várias outras estatísticas nessa linha, como a que lembra que apesar de brancos representarem 52% dos novos nascimentos nos EUA eles são 70% dos “novos pobres”, de acordo com o último censo. A direita aqui lembra que isso não vale só para os EUA. Na Inglaterra, brancos pobres foram o grupo que mais viu sua expectativa de futuro piorar, de acordo com a Comissão de Igualdade e Direitos Humanos.

É óbvio, para reforçar, que brancos americanos ainda são mais ricos, mais saudáveis emelhor educados que qualquer grupo étnico. Mas, de novo, me parece claro que a “vantagem” está diminuindo. O que é matematicamente bom, óbvio. Mas a gente acreditou até hoje que o bem-estar humano não é um jogo de soma zero. Logo, me parece natural que brancos de classe média/classe média baixa estejam particularmente revoltados: eles podem acreditar que tiveram que sofrer para que outros subissem de vida.

Somando todos esses pedaços do quebra-cabeças, fica mais fácil entender esse quadro, absurdo à primeira vista:

Porcentagem de pessoas que concorda com a afirmação "A discriminação contra brancos virou um problema tão grande quanto a discriminação contra negros e outras minorias"

Porcentagem de pessoas que concorda com a afirmação “A discriminação contra brancos virou um problema tão grande quanto a discriminação contra negros e outras minorias”

O dado que chama maior atenção: 43% dos americanos acham que a discriminação contra brancos virou um problema tão grande quanto contra negros.

Dado o recorte de cor, educação e classe econômica dos republicanos, especialmente os mais radicais do Tea Party, esse choro faz um pouco mais de sentido. E essas pessoas têm ouvido falar direto, mais recentemente, de “privilégio branco”, “racismo sistêmico” e outras coisas que pra mim ou você são normais e legítimas… Mas para quem não viu a vida melhorar nos últimos anos, viram ofensivas. Passe em um blog conservador americano, e as acusações de vitimismo imperam nos comentários.

Lembra da expressão “Não me representa”? Tenho pensado muito nela recentemente. E, no fim: Será que em vez de denunciar pessoas eleitas pelo povo que representam a opinião popular que você discorda, não é mais produtivo procurar entender quem pessoas como Trump representam?

* * *

Sei que esse artigo pode ser interpretado da pior maneira possível – há inegavelmente um elemento racista entre certos apoiadores do Trump, e os dados aqui podem ser a desculpa perfeita para um comportamento simplista (e desprezível).

Mas fico com o João Pereira Coutinho, que escreveu recentemente na Folha:

No meio deste abismo, qualquer populista que ofereça soluções fáceis (e radicais) para os gritos da turba corre sérios riscos de vencer democraticamente uma eleição.

Infelizmente, essa evidência não perturba a “intelligentsia” da Europa: se os temas “incômodos” são incômodos, melhor não falar deles – uma espécie de “pensamento mágico” segundo o qual tudo desaparece se nada for mencionado. Na hora de votar, o bom senso democrático será soberano.

Só que aí, de repente, ?, vem um Trump pra lembrar que a realidade não é assim.

Trump não se explica pelo fator celebridade, a sua personalidade ou um partido mal organizado. Mas sim pelos desejos e preocupações do eleitorado. É um povo que tem um monte de queixas e mágoas que não são bonitas. E que, portanto, nunca são apresentadas na mídia. Não à toa, “contra o politicamente incorreto” é um dos lemas do candidato-milionário.

A questão é: se a gente não souber de onde essas queixas vêm, se a gente não ouvir com um pouquinho mais de generosidade o que esse povo grita, a gente nunca vai poder enfrentar o Trumpismo de fato.

Meus amigos mais iluminados parecem achar que se não lermos os comentários de portais “de gente louca”, os 80% dos brasileiros contra a legalização da maconha e do aborto, ou os 87% a favor da redução da maioridade penal deixarão de existir. O “pensamento mágico” que o Coutinho fala depende da nossa confiança que a democracia não funcione, de que o povo não tem direito de expressar a opinião sempre.

Trump pode ser a lembrança que não teremos isso pra sempre. No Brasil tivemos asorte até agora de não ter tido muitos candidatos majoritários expressando a opinião de uma parte grande da população. A gente vai dar mais atenção ao que o povo fala – mesmo que isso não seja totalmente certo – ou vai ficar desesperado sem saber o que fazer com o nosso Trump em 2018?

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