Por Valdenor Júnior

Nestas eleições de 2014, o debate sobre a redução da maioridade penal tem vindo à tona nas campanhas de alguns candidatos. Segundo o El País, foi uma das bandeiras mais levantadas durante o horário eleitoral. A denominada bancada da bala cresceu na Câmara dos Deputados, composta por “delegados, comandantes de corpos militares regionais, como a Rota ou o Bope, , e representantes da Polícia Militar, que apoiam, entre outras propostas, a redução” (El País). Além disso, 13 dos 27 senadores eleitos nesta eleição são favoráveis à medida.

Aécio Neves, candidato à presidência que disputa o 2º turno com Dilma Rousseff, defende a redução da maioridade penal apenas para crimes hediondos, desde que haja parecer favorável do Ministério Público. Apesar de parecer uma proposta bastante limitada de redução, a consulta ao Projeto de Emenda Constitucional ao qual ele se refere, a PEC nº 33/2012 proposta por seu vice e rejeitada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, revela que um perigoso retrocesso na política de justiça criminal e segurança pública no Brasil está sendo defendido por esse candidato.

A PEC visa alterar os arts. 128 e 129 da Constituição Federal, outorgando ao Ministério Público a legitimidade para o incidente de desconsideração de inimputabilidade penal de menores de dezoito e maiores de dezesseis anos, e autorizando lei complementar que regule este incidente processual observando alguns requisitos.

Por meio deste incidente, o menor deixa de ser inimputável, ou seja, é julgado como adulto, cumprindo-se a pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos, desde que seja atestado por laudo técnico a “capacidade do agente de compreender o caráter criminoso de sua conduta, levando em conta seu histórico familiar, social, cultural e econômico, bem como de seus antecedentes infracionais”.

Referido incidente poderia ser suscitado no caso dos seguintes crimes:

1) Aqueles mencionados no art. 5º, XLIII, da Constituição: “a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

1.1) Os crimes hediondos definidos pelo art. 1º da Lei nº 8.072 são latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro e na forma qualificada, estupro, estupro de vulnerável, epidemia com resultado morte, falsificação ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável, e o crime de genocídio. Seu art. 2º refere-se à tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, que a doutrina jurídica considera como “crimes equiparados aos hediondos”.

2) “Múltipla reincidência na prática de lesão corporal grave e roubo qualificado”.

2.1) Roubo qualificado são as hipóteses do art. 157, § 2º e § 3º, do Código Penal: roubo com emprego de arma, roubo em concurso de duas ou mais pessoas, roubo no qual a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância, roubo onde há subtração de veículo automotor que venha a ser transportado para outro estado ou para fora do país, roubo onde a vítima é mantida em poder do agente e restringida sua liberdade, e o roubo cuja violência contra a vítima gera lesão corporal grave.

Aécio afirmou em vários momentos da campanha que essa redução da maioridade penal só valeria para os “crimes graves”. Acredito que muitos de vocês pensavam que isso significa crimes violentos marcados pela imposição de grande sofrimento à vítima, com requintes de crueldade.

Eu mesmo concordo com esse modelo inspirado no anglo-saxão de permitir, excepcionalmente, o julgamento como adulto de menores nesses casos muito violentos. Mas isso deve ser a exceção da exceção da exceção, uma vez que o objetivo de aplicar medidas socioeducativas ao menor ao invés da pena criminal é facilitar a reinserção social de jovens ainda não completamente amadurecidos psicologicamente, para que estes não carreguem o estigma relacionado à condenação criminal e nem entrem em contato com criminosos adultos na cadeia. Não é deixar os menores “impunes”, mas sim evitar que eles definitivamente e irreversivelmente adentrem no mundo do crime, por conta de uma condenação criminal.

Mas, enquanto haja um debate razoável sobre esse modelo, o que Aécio propõe não é isso. Um menor poderia ser julgado como adulto por crime de tráfico de drogas ou por reincidência na prática de roubo em bando, por exemplo. Tal proposta não pode ser aceita.

Primeiro, o comércio de drogas nem ilegal deveria ser, uma vez que vícios não são crimes e o uso de drogas por si só não prejudica outras pessoas. Mas é exatamente por conta dessa política de guerra às drogas que várias cidades brasileiras entraram na lista de cidades com maior número de homicídios do planeta!

É a criminalização das drogas que cria o ciclo de violência relacionado à droga atualmente em nosso país, e, portanto, é necessário lutar por esta redução do papel do direito criminal justamente como forma de reduzir a violência. Entretanto, Aécio parece pensar que a solução para reduzir essa violência seja trancafiar cada vez mais gente em nossas prisões, seja adultos ou menores julgados como adultos. E mesmo que encarcerá-los possa impedir parte deles de participarem do tráfico de drogas enquanto estão presos, isso não anula o fato de que o verdadeiro crime é prender pessoas por vender drogas, assim como seria criminoso prendê-las por venderem bebidas alcoólicas ou cigarros.

Como lucidamente colocou Milton Friedman, em entrevista à Folha de São Paulo:

Folha – “Legalize já”?
Milton Friedman –
Sim. É imoral que os Estados Unidos proíbam as chamadas drogas ilegais. Sou a favor da legalização de todas as drogas, não apenas da maconha. O atual estado das coisas é uma desgraça social e econômica. Veja o que acontece todos os anos neste país: colocamos milhares de jovens na prisão, jovens que deveriam estar se preparando para o seu futuro, não sendo afastados da sociedade. Além disso, matamos milhares de pessoas todos os anos na América Latina, principalmente na Colômbia, na tal “Guerra contra as Drogas”. Nós proibimos o uso das drogas, mas não podemos garantir que elas não sejam de fato consumidas. Isso só leva à corrupção, à violação de direitos civis. Acho que o programa contra as drogas dos EUA é uma monstruosidade e ele é que devia ser eliminado. A maconha é apenas um pequeno pedaço desse problema, mas essa equação pode ser aplicada a qualquer droga hoje em dia ilegal.

Um segundo ponto é que a múltipla reincidência em roubo qualificado é no fato de que o roubo é um crime muito cometido nos centros urbanos, inclusive roubos com mais de um assaltante ou com uso de arma de fogo (mesmo que esta não venha a ser disparada), que são hipóteses de roubo qualificado.

A ideia seria que, punindo esses jovens infratores como adultos, teríamos menos roubos em nossas metrópoles. Mas isso é verdade?

A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), ligada ao Ministério da Justiça, estima que os menores de 16 a 18 anos são responsáveis por apenas 0,9% do total de crimes praticados no Brasil. Dentro desses escopo de crimes cometidos por menores, levantamento do Ministério da Justiça em 2011 revela que crimes patrimoniais como furto e roubo (43,7% do total) e envolvimento com o tráfico de drogas (26,6%) constituem a maioria dos delitos praticados pelos menores que se encontram em instituições assistenciais do Estado cumprindo medida socioeducativa. Apenas 8,4% em homicídios e 1,9% em latrocínios.

Outras estatísticas, que confirmam esse quadro, podem ser observadas abaixo (agradeço ao Adriel Santana por tê-las indicado):

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Ou seja, o resultado de reduzir a maioridade penal tem como alvo potencial uma grande parcela de jovens infratores, por práticas que poderiam ser coibidas com as medidas socioeducativas, aplicando-se adequadamente a legislação em vigor (o que, infelizmente, não ocorre…), mas uma parcela pequena de todos os crimes cometidos no país. A consequência é fazer esses menores infratores de “bode expiatório”, o que sabemos que leva frequentemente ao higienismo social mascarado de política de segurança pública.

Além disso, repito: pela legislação em vigor, esses delitos praticados pelos menores não ficam “impunes”. Há medidas socioeducativas cabíveis, incluindo a restrição da liberdade, que servem adequadamente à finalidade de servir de represália a essas condutas e, simultaneamente, aumentar a possibilidade de reinserção social do jovem infrator. Se forem necessárias modificações nessa legislação, debate no qual não desejo entrar aqui, que seja apenas para alterar a abrangência e o escopo das medidas socioeducativas, não para julgar menores como adultos reduzindo a maioridade penal.

Portanto, essa proposta de Aécio Neves representa um retrocesso muito grande em termos de direitos humanos no Brasil, e é sintoma de uma mentalidade que privilegia o Direito Criminal como forma primária de alcançar finalidades consideradas socialmente desejáveis e ameaça nossas liberdades civis, em especial daqueles mais marginalizados entre nós, que são mais vulneráveis à ação da mão forte do Estado policial em bairros pobres ou favelas.

Infelizmente, entendo que isso é uma tendência que veio para ficar.  O Congresso eleito é o mais conservador desde 1964, e, como já dito acima, os defensores da redução da maioridade penal têm crescido tanto no parlamento como entre as pessoas em geral. E meu palpite (que só o futuro poderá confirmar ou desconfirmar) é que, caso Aécio vença a eleição, seu partido, o PSDB, têm incentivos para conduzir o país a uma política criminal mais repressiva.

É importante lembrar que, se o PT hoje tem a principal parcela de voto entre os brasileiros de baixa renda, isso nem sempre foi verdade. André Singer, em seu livro “Os Sentidos do Lulismo”, esclarece que isso só passou a ocorrer a partir da reeleição de Lula em 2006. Mesmo quando eleito em 2002, “Lula contava com  menos intenção de voto entre os eleitores de renda mais baixa do que entre os de renda superior” (SINGER, p. 62).

O PSDB já contou com grande proporção de voto dessa parcela da população, uma vez que Fernando Henrique Cardoso foi eleito e reeleito no 1º turno na década de 90, conseguindo angariar apoio popular com base na estabilização econômica do país, resolvendo o problema da hiperinflação que afligira grandemente as camadas populares. Como ouvi de um trabalhador rural do interior do Pará certa vez, “antes do real, todo mundo andava com coisas velhas…. só depois do real, é que as pessoas puderam comprar coisas novas para elas.” Não foi à toa essa percepção na ocasião: 9 milhões saíram da pobreza extrema em 2 anos (1994-1995) como resultado do término da hiperinflação.

Isso significa que o PSDB não precisa continuar para sempre com um eleitorado da classe média tradicional, como ocorreu após esses anos de governo do PT. Mas ele pode aproveitar a força junto à parte desse estrato social por representar a principal força política capaz de opor-se ao PT e agregar novamente uma grande proporção do voto do eleitorado de renda mais baixa com base no discurso da segurança pública. Trata-se de um tópico que poderá servir de mote para uma coalizão entre esses diferentes eleitorados no sentido de manter o PSDB no poder, afastando assim a hegemonia conquistada pelo PT.

Um indício de que isso talvez será tentado é essa proposta de redução da maioridade penal e a ênfase de Aécio ao longo da campanha na questão da segurança pública. Outro indício é que, mesmo que o PT não tenha como proposta a redução da maioridade penal, Dilma tem defendido a integração nacional das polícias com “apoio” das Forças Armadas, tal como na Copa do Mundo, o que também aponta para uma direção mais nacionalizada da segurança pública e do fortalecimento do aparato repressivo em detrimento das liberdades civis também caso Dilma seja reeleita (veja textos meu e do Erick Vasconcelos para o C4SS para uma crítica da postura autoritária do atual governo durante a Copa do Mundo).

Mas a evidência mais reveladora é que Aécio está disposto a recusar o apoio de Marina no 2º turno, por considerar a manutenção desta proposta de redução da maioridade penal mais importante que um eventual apoio de Marina. (No final das contas, ela declarou apoio a ele, mas houve o risco de que ela não apoiasse)

Ainda que em parte isso possa refletir uma confiança de que seu desempenho eleitoral no 2º turno não dependerá tanto do eventual apoio de Marina, parece-me refletir um claro comprometimento com setores conservadores em matéria de política criminal e uma aposta que o pacote proposto pelo PSDB para a segurança pública será uma chave crucial para a reconquista do eleitorado de baixa renda, com manutenção do eleitorado na classe média tradicional.

 

junior

Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e para o site brasileiro Liberzone, e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.

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