Por Gabriel Oliva
Com ar triunfante, o reacionário cita em seu favor Nelson Rodrigues: “Sou reacionário. Minha reação é contra tudo que não presta”. Que me perdoem os admiradores do grande dramaturgo brasileiro, mas sua definição é incompleta e vazia.
Ninguém julgaria, por exemplo, um socialista como “reacionário” por reagir contra privatizações, as quais ele considera que não prestam. Para que se possa estabelecer que reações qualificam como as de um reacionário é preciso, portanto,ter uma concepção anterior do que “não presta” na visão de um reacionário.
Façamos, pois, uma reconstrução racional da gênese de um reacionário. Num determinado momento de sua vida, o reacionário elege para si um inimigo, tomando suas ideias como um bloco. Esse inimigo, naturalmente, é o “socialismo”, “comunismo” ou “esquerdismo”, vagamente definidos e vistos por ele como encarnações do mal na terra que deveriam sofrer a oposição mais feroz possível.
A partir de agora, ao analisar uma ideia qualquer, o que importa para o reacionário não mais é o mérito da ideia em si, mas sim se essa ideia faz parte ou não desse bloco inimigo. Se a ideia pertence ao bloco, ela é necessariamente ruim e deve ser combatida com todos os meios disponíveis. Concordar com o “inimigo” em certos pontos é, para ele, ser um “idiota útil” que faz o jogo do adversário. O reacionário simplesmente não concebe a possibilidade de se concordar com uma parcela do bloco inimigo sem endossar o restante do mesmo.
Não me entendam mal, eu não estou aqui afirmando que as ideias devam ser tratadas como entes independentes entre si. Muito pelo contrário, é preciso reconhecer que as ideias se inter-relacionam intimamente, compondo uma estrutura que chamamos de visão de mundo do indivíduo. Não obstante, a inter-relação das ideias dentro de uma visão de mundo integrada não justifica a atitude reacionária.
Primeiro, não se deve esperar que as pessoas e doutrinas sejam completamente coerentes. A defesa simultânea de duas ideias contraditórias entre si não é algo infrequente, mesmo entre indivíduos de boa formação intelectual. Que socialistas defendam ideias essencialmente não socialistas ou até mesmo anti-socialistas não é, portanto, algo a se espantar. E é tolice rejeitar uma ideia não socialista só porque ela é (incoerentemente) defendida por socialistas.
Segundo, doutrinas políticas concorrentes, em geral, não são conjuntos disjuntos. Há interseções entre as ideias liberais e as socialistas (devido, principalmente, à apropriação socialista de ideias historicamente ligadas ao liberalismo clássico), da mesma forma que existem interseções entre liberalismo e conservadorismo. Um liberal que rejeita a parcela do liberalismo que também é endossada pelos socialistas (como, por exemplo, a defesa da legalização das drogas e o casamento gay) não é mais liberal por causa disso, mas sim menos.
Finalmente, muitas (embora não a totalidade) das divergências entre liberais e esquerdistas se devem não a diferenças sobre os fins considerados desejáveis, mas a discordâncias em relação aos melhores meios para alcançar esses fins. Abdicar da defesa de fins desejáveis só porque eles também são defendidos por socialistas, como fazem os reacionários, é garantir que a perseguição desses fins se dará por meios esquerdistas. Pior: entrega-se de bandeja aos socialistas o monopólio das virtudes associadas pela opinião pública à perseguição desse fim.
É, em grande parte, por culpa dos reacionários que os combates à pobreza, ao racismo e à homofobia, por exemplo,são vistos como pautas caracteristicamente socialistas. Os reacionários, em geral, minimizam ou até mesmo negam a existência de problemas sociais graves como esses, ao invés de proporem soluções alternativas para os mesmos. Não surpreende que os atingidos por tais mazelas sociais tendam a simpatizar com os socialistas, que aparecem como os únicos preocupados com a situação desses indivíduos.
Para que o liberalismo se desenvolva, portanto, é salutar o seu desvencilhamento da mentalidade reacionária, que empobrece o debate de ideias e distorce o próprio liberalismo, transformando-o numa caricatura anti-comunista. O liberalismo precisa ser, primordialmente, pró-liberdade, e não anti-alguma coisa.
Nota posterior: O erro no uso da definição de reacionário, porém, deve ser atribuído aos reacionários que citam de forma descontextualizada a frase de Nelson Rodrigues, e não ao próprio autor em si. Agradeço ao Bruno Garschagen por me chamar atenção para isso.
Gabriel Oliva é mestrando em Economia pela USP e co-fundador da rede Estudantes Pela Liberdade no Brasil. Possui interesses principais nas áreas de Economia e Complexidade, História do Pensamento Econômico e Escola Austríaca. Define-se como liberal utilitarista indireto meta-federalista neo-hayekiano seasteadiano do oitavo dia. Nas horas vagas, xinga os liberais utilitaristas indiretos meta-federalistas neo-hayekianos seasteadianos do sétimo dia de socialistas, o que eles de fato são.