Por Valdenor Júnior
[dropcaps]L[/dropcaps]i uma matéria muito estranha em um site famoso da esquerda brasileira, o “Pragmatismo Político”. O título é “Médica Cubana que pediu ajuda ao DEM quer encontrar namorado em Miami“, e no subtítulo “Apareceu a verdade: a Dra. Ramona montou uma farsa para encontrar o namorado em Miami”.
Vejam o início do texto:
“A Dra. Ramona Matos Rodrigues tem o direito de querer viver com o namorado em Miami.
Isso é um problema dela com as autoridades de seu país e não nos cabe, a brasileiros, darmos palpite sobre as regras cubanas de emigração, que, atualmente, só restringem a saída de médicos, cientistas e militares. Os Estados Unidos restringem a entrada em seu país e que, volta e meia, vemos cenas dantescas de dezenas de “chicanos” mortos ocultos em vagões de trem para tentar entrar no “eldorado” americano e ninguém diz que, com isso, ferem a liberdade de ir e vir.
Mas a Dra. Ramona não tem o direito de ilaquear a boa-fé do povo brasileiro montando uma história farsesca sobre as razões de sua tentativa de fuga para Miami.”
O texto usa alguns artifícios retóricos impressionantes para dessensibilizar o leitor em relação a essa história. No primeiro parágrafo, fala que a médica tem direito de querer viver com o namorado em Miami. Perceba: Direito de “querer” apenas, não direito de “efetivamente viver”. Um direito de querer puramente na sua cabeça é uma proteção nula à pessoa humana.
No segundo parágrafo, fala que nós brasileiros não devemos dar palpites sobre as regras cubanas de emigração, que atualmente ainda restringem a saída de médicos, e, compara com os EUA, que impede a imigração de forma draconiana e que ninguém (!) diz que os EUA ferem a liberdade de ir e vir. Ninguém diz que os EUA está errado? Nós libertários – e não só os do Brasil, mas também os dos EUA – afirmam que a política draconiana de imigração dos EUA fere uma liberdade humana fundamental, de fazer interações e trocas voluntárias com quem estiver disposto a realizá-las em qualquer lugar do planeta. E quem disse que Cuba deveria ser a última jurisdição a decidir sobre a liberdade de movimento e migração dos ali residentes? Quem deu tamanha autoridade ao Estado cubano para afrontar a liberdade humana?
No terceiro parágrafo, fala que a Médica não tem direito de enganar o povo brasileiro com uma história falsa sobre seus motivos de fugir para Miami, e continua o texto sugerindo diversas coisas sobre isso, desde
“quando é apenas uma pessoa que mente por seus interesses, em lugar de proclamar e lutar por seus direitos abertamente. O que, no Brasil, ninguém duvida, poderia ter feito. Mas a Dra. Ramona foi contratada por nosso país para atender doentes, não para se portar como uma transtornada – que seja, concedamos a generosa possibilidade – por um amor na Flórida que a leve a mentir na sede do parlamento, diante de toda a imprensa”
até
“Aliás, nada impediria o namorado da Dra. Ramona, se é tão grande este amor, vir para cá. Talvez o que o impeça seja, apenas, Miami. Mas isso é um problema privado do casal. E esse é o pecado imperdoável da Dra. Ramona: transformar os seus quereres pessoais em um caso político em país alheio.”
Não entendo… Se o povo brasileiro nem sequer tem direito de opinar sobre a política migratória de Cuba em relação aos seus médicos, segundo a própria reportagem, porque a médica cubana deveria proclamar e lutar por um suposto direito à imigração para os EUA e de desistência do programa firmado entre o Governo do Brasil e Cuba sem risco de deportação? O Brasil não pode interferir na política de Cuba, mas a cubana deveria reclamar pro Brasil acerca da política de Cuba, e não esperar a deportação? Sério?
Quanto à alegação de que tudo o que ela teria dito era falso, escondendo o real motivo, também me surpreende que o texto exija dela um “dever incondicional kantiano de falar a verdade”, não importam as circunstâncias. Se ela realmente mentiu, não teria mentido se não tivesse medo de que tal justificativa seria considerada impertinente para o governo brasileiro que firmou o acordo com Cuba, o que ensejaria sua deportação à Cuba, e, portanto, a impossibilidade total de, algum dia, sequer sonhar em encontrar seu namorado cubano em Miami.
Como cobrar de uma pessoa que arrisque a única possibilidade de viver seu amor fora de Cuba, alegando para a desistência apenas “o amor” e nenhum motivo que seja considerado “politicamente importante” ou “ligado ao bem comum”? Pedir isso para um governo que deportou os boxeadores cubanos que fugiram da delegação de seu país quando do PAN 2007, sem sequer importar-se com o motivo destes terem tentado fugir do governo de Cuba?
O “querer pessoal” deveria ser respeitado. Deveríamos ter direito inalienável à liberdade de escolher por nós mesmos. Daí a saudade de Raul Seixas que cantou: “Todo homem tem direito de amar a quem quiser/ (…) Direito de viver/ viajar sem passaporte”:
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=vAh8nnZZZlA[/youtube]
Raul Seixas certamente teria sido mais sensível à demanda da cubana do que a esquerda brasileira é.
E que tal fazermos uma homenagem ao Raulzão? Vamos colocar de novo na Constituição esse parágrafo sobre direitos individuais que existiu na nossa primeira constituição republicana, de 1891 (ou algum dispositivo bem parecido com este):
§ 10 – Em tempo de paz qualquer pessoa pode entrar no território nacional ou dele sair com a sua fortuna e bens, quando e como lhe convier, independentemente de passaporte.
Se não como homenagem ao Raul, mas como respeito pela dignidade de todo ser humano e das escolhas humanas que não ferem terceiros, principalmente quando estas encontram-se no âmago dos relacionamentos humanos e do amor.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, tem o blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Com Darwin aprendeu a valiosa lição de que entender o babuíno é mais importante do que se imagina.