E se você fosse expulso da sua sala de aula por estar usando um crucifixo? Já pensou em ser proibido de ir ao seu local de trabalho, por ter usado algum símbolo do candomblé? E se você fosse multado por aparecer em ambiente pertencente ao Estado trajando roupas típicas de uma religião?
Pois essa é a realidade que muitas pessoas residentes na Europa enfrentam, com as bênçãos da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH). Parece surreal e, a bem da verdade, é. Como uma Corte internacional, que deveria tutelar direitos humanos, acha legítima a restrição de demonstrações de religiosidade em ambientes públicos, ferindo (ironicamente) o direito de liberdade de expressão?
Acontece que a situação é mais complexa do que parece, o que não justifica as absurdas decisões da CEDH que serão apresentadas a seguir. Com vocês, as duas decisões mais absurdas da CEDH acerca do uso do véu islâmico:
11 entre 10 estudantes de Direito que trabalham com direitos humanos já ouviram falar dessa polêmica decisão. Para os não íntimos, explico: Leyla era uma jovem universitária, residente na Turquia, cursava medicina e, como muçulmana, considerava um dever religioso usar o véu. Quase no fim do curso, ela transferiu sua matrícula para uma universidade na capital do país e, uma vez lá, foi proibida de de frequentar as aulas com o véu, por determinação da reitoria.
Após lutar com unhas e dentes contra a determinação, Leyla foi para na Corte Europeia, alegando que as medidas tomadas pela reitoria eram abusivas e restringiam seus direitos de liberdade de expressão e liberdade de crença. Razoável, certo?
Nem tanto. Ocorre que esses direitos não são absolutos, e podem sofrer interferência, desde que esta vise um fim legítimo, seja necessária em uma sociedade democrática e esteja prescrita em lei. A proibição do uso do véu em locais públicos, então, seria uma medida necessária em uma sociedade democrática (e em um Estado laico, como a Turquia afirma ser). Como disse a própria Corte Europeia:
A Corte frequentemente destacou que o papel do Estado como o organizador imparcial e neutro do exercício de várias religiões, fés e crenças, e alegou que este papel é decisivo para a ordem pública, para a harmonia religiosa e para a tolerância em uma sociedade democrática.
(…)
O papel das autoridades estatais não é remover a causa da tensão através da remoção do pluralismo, mas garantir que os grupos tolerem uns aos outros[1].
Convenhamos, a fundamentação da Corte soa absurda. Então quer dizer que, para garantir que indivíduos tolerem uns aos outros, deve-se remover itens essenciais para a sua diferenciação? Me parece que a CEDH adota o seguinte raciocínio: ao invés de incentivar o respeito e a tolerância (o que inclui também suportar manifestações de religiosidade que nem sempre nos são aprazíveis), deve-se uniformizar os indivíduos, retirando sua singularidade, para o bem geral de uma democracia.
Leyla Sahin: véus são polêmicos
Nada menos libertário. Em contrapartida, a argumentação submetida pelo advogado de Leyla é surpreendentemente liberal:
A requerente afirmou que, enquanto as autoridades da universidade estão aptas a usarem seus poderes investidos a eles pela lei, os objetivos e os limites desse poder também são definidos por lei.
(…)
A requerente explicou que os estudantes eram adultos com discernimento, que gozavam de capacidade legal e eram capazes de decidir por eles mesmos o que seria uma conduta apropriada. Consequentemente, a alegação de que, quando do uso do véu islâmico, ela demonstrou falta de respeito pelas crenças alheias ou tentativa de influenciar outros colegas estudantes e minar seus direitos e liberdades era profundamente infundada.
(…)
Sua escolha foi baseada em uma convicção religiosa, que era o direito fundamental mais importante que uma democracia liberal pluralista lhe garantiu. Na sua mente, é inegável que as pessoas são livres para submeterem-se a restrições, se elas consideram isso apropriado. Também foi injusto dizer que o mero uso do véu é contrário ao princípio da igualdade de gênero, uma vez que todas as religiões obrigam tais restrições na vestimenta das pessoas, as quais são livres para escolher quando ou não aceitar estas restrições[2].
Em poucas linhas, Leyla e seu advogado demonstraram que entendem mais de direitos humanos do que a própria Corte, em matéria específica de liberdade religiosa e de expressão. Mas como vocês podem imaginar, caros leitores, a resposta definitiva da Corte foi, resumidamente:
Por estar em direto e contínuo contato com a comunidade acadêmica, as autoridades universitárias estão em melhor condição que uma Corte internacional para avaliar suas necessidades e condições. Além disso, entendendo que a regulamentação perseguia um fim legítimo, não está apta a Corte a aplicar o critério da proporcionalidade no sentido de estabelecer que as “regras internas” de uma instituição estão sem propósito.
(…)
À luz disto tudo e dando atenção à margem de apreciação dos Estados Partes, a Corte entende que a interferência foi justificada e proporcional ao fim perseguido (ordem pública). Consequentemente, não houve violação ao art. 9 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (que protege o direito de liberdade religiosa)[3].
Em tempo: margem de apreciação é um instituto de direito internacional que permite que os Estados, em situações como essa, tenham uma margem discricionária para aplicar medidas específicas sem que estas sejam consideradas contrárias aos tratados e convenções internacionais, pelo simples fato das autoridades estatais estarem “em melhor condição para avaliar”, isto é, entendem melhor deste assunto do que o órgão julgador. Mas, sinceramente? Não caiam nessa falácia. 99% das vezes que um Estado alega essa tal margem, é porque ele quer vandalizar.
Belgin Dogru era uma garota de família Islâmica (com 11 anos à época dos fatos que ensejaram a demanda), que frequentava a educação infantil em uma escola na França. Em uma aula de educação física, a professora pediu que ela retirasse o véu para que pudesse correr, mas a garota se recusou. Depois de reiteradas vezes pedir que Drogu retirasse o véu, ela foi expulsa não só da aula, por se recusar a fazê-lo, mas também da escola. Após várias tentativas de resolver em âmbito interno a questão, a família apelou à Corte Europeia de Direitos Humanos, alegando que o direito de religião havia sido violado pelo Estado francês.
A França, por si só, já é um país bastante complicado com relação a liberdade de religião. É muito comum o regulamento das escolas proibirem a entrada de estudantes com símbolos religiosos como crucifixos, e a regra de que o Estado deve ser laico é levado a sério até as últimas consequências. Os primeiros casos de conflitos em escolas por causa do véu islâmico ocorreram, segundo a Corte Europeia, em 1989 e até 1994, cerca de 3.000 casos haviam sido levados à cortes internas no país[4].
Já em juízo, nesse caso específico, a França alegou ante a Corte que os requisitos de legalidade, necessidade em uma sociedade democrática e objetivo legítimo estavam previstos, usando como base a decisão do caso Sahin. O objetivo legítimo seria a proteção dos direitos das outras crianças, funcionários e professores da escola, por questões de ordem pública e de saúde pública (mas sem explicar exatamente como o uso do véu poderia ser uma ameaça à saúde das outras crianças). Por fim, o Estado alegou também que deve-se preservar a neutralidade da arena pública, e por isso, se deveria garantir a coexistência de pessoas das mais variadas fés.
A vítima impugnou a argumentação do Estado, inclusive indagando à professora que havia requerido que Dogru retirasse o véu como este acessório poderia oferecer risco à saúde pública. A professora não soube responder, e o Estado não apresentou maiores explicações sobre o tema.
Por sua vez, a Corte aceitou a tese de que havia um objetivo legítimo a ser tutelado e que o direito de liberdade religiosa nem sempre abarca todos os atos motivados pela religião. “Esconder” símbolos que representem uma crença é necessário, por vezes, para preservar a paz e a ordem em uma sociedade. E ainda:
Pluralismo e democracia devem ser também baseados em um diálogo e em espírito de compromisso, necessariamente implicando em várias concessões da parte de indivíduos, que se justificam para a manutenção e promoção de ideais e valores de uma sociedade democrática[5].
Mas como uma sociedade pode ser tolerante com crenças diversas se, ao menor sinal de manutenção de um adereço que representa uma fé, o Estado reprime esses atos? Pior: como uma Corte internacional que, querendo ou não, acaba virando parâmetro para que os Estados adotem medidas ante seus jurisdicionados, pode aceitar a tese (muito mal explicada) de que o véu é uma ameaça à saúde pública quando em aulas de educação física?
O Ministério da Saúde francês adverte: véu na educação física pode fazer mal à saúde
Essa decisão da Corte Europeia é totalmente contrária à ideia de respeito e coexistência, porque fomenta e autoriza a descaracterização do outro, sem haver uma necessidade suficiente que a justifique. No final da lide, a Corte decidiu que não houve violação à liberdade de religião da requerente.
Estados, por si só, são perigosos: imagine dar poder a pessoas que você não conhece, para que elas decidam sobre sua vida. Cortes internacionais servem justamente para que os Estados pensem 2, 3 vezes antes de tomarem atitudes, mas quando temos um Estado que não vê problema em padronizar seus cidadãos e uma Corte de Direitos Humanos que acha isso legítimo, então há um grave problema. Não digo que a CEDH não tenha bons julgados, onde a justiça foi alcançada de maneira satisfatória. Mas cada precedente que se abre em favor de um Estado é perigoso, e é preciso cautela, já que essas decisões afetam não os Estados em si, mas pessoas, como eu e você.
Notas
[1] Parágrafo 107 do julgamento de mérito do caso Leyla Sahin v. Turkey
[2] Parágrafos 81 e 101 do julgamento de mérito do caso Leyla Sahin v. Turkey
[3] Parágrafos 121-123 do julgamento de mérito do caso Leyla Sahin v. Turkey
[4] Parágrafos 21 e 20 do julgamento de mérito do caso Dogru v. França
[5] Parágrafo 62 do julgamento de mérito do caso Dogru v. França
Bianca Araújo é um projeto de advogada, atualmente cursando Direito no CESUPA e membro da Clínica Jurídica de Direitos Humanos nesta instituição. Seus hobbies incluem falar de direitos humanos, feminismo e comprar sapatos, não necessariamente nessa ordem.