Por Leonel Caraciki
[dropcaps]S[/dropcaps]e tem algo que frequentemente vemos em discussões do movimento libertário americano, são discussões sobre política externa. Em sua grande maioria, historicamente os libertários seguem a ideia de não-intervenção, ou seja, de que países não devem intervir militarmente, nem prestar assistência humanitária ou manifestar quaisquer atitudes que extrapolem as funções mínimas do Estado – defesa e justiça[1].
O expoente mais claro de tal visão é Ron Paul. Seus discursos sempre deixam bem claro que as intervenções militares dos EUA ao redor do mundo fazem mais mal do que bem, acarretando em uma série de problemas tanto para os Estados Unidos, quanto para os países que inicialmente iria proteger[2] – como gastos de tropas em missões no além-mar, morte de civis inocentes e ameaças de segurança doméstica por parte de grupos terroristas. Se a visão de Ron Paul fosse a única possível, o texto terminaria por aqui. Porém, alguns libertários americanos já apoiaram intervenções militares, como foi o caso do professor Randy Barnett e a Guerra do Iraque[3]; assim como libertários ligados às ideias de Ayn Rand provavelmente comungam das mesmas ideias de intervenções em massa que a posição oficial de alguns objetivistas – mesmo que isso signifique a morte de milhares de outras pessoas – para garantir a segurança dos Estados Unidos e de seus cidadãos[4].
Todavia, libertários no Brasil não têm exatamente este problema. Nosso país está longe de ser um global player das relações internacionais, mesmo que a ideia de atingir um nível de protagonismo internacional tenha sido uma plataforma para alguns de nossos governantes, como o Presidente Ernesto Geisel (1974-1979), durante o Regime Militar e na gestão do Partido dos Trabalhadores (2003 – atual), de maneira acentuada no Governo Lula e recalcitrante no Governo Dilma, ao menos em minha visão.
Por questão de justiça, é necessário dizer que o debate sobre política externa e relações internacionais no Brasil é basicamente restrito a discussões pontuais de grandes eventos ou de atos percebidos como controversos. Dentre eles, a iniciativa brasileira de tomar parte nas negociações de paz entre Israel e Palestina ou de participar no monitoramento do projeto nuclear iraniano. Mesmo assim, não é ponto central de plataformas de partidos políticos[5] e igualmente não mobiliza setores da sociedade civil, como ONGs e think-tanks, como se vê nos Estados Unidos. Quase sempre sua discussão orbita entre os condutores da política externa (o Ministério das Relações Exteriores, o presidente e outros Ministérios quando necessário) e os intelectuais do campo disciplinar. Por questão de ordem, vamos nos ater ao papel dos liberais e libertários.
Antes de tudo, temos o ponto fulcral da necessidade de debater com a teoria: a disciplina de Relações Internacionais (RI) tem como elemento central a figura do Estado. Frequentemente, a primeira “escola” de pensamento que se tem contato ao ler sobre as teorias de RI é o chamado “realismo”, que tem como unidade analítica o Estado e teoriza que seu fim último é sua segurança e sobrevivência face a outros Estados.
Boa parte de seus proponentes diz que a política internacional é essencialmente diferente da doméstica e frequentemente acreditam que a estabilidade do mundo depende de intervenções militares, pois a violência e a desconfiança entre as partes é típico da natureza humana. Esta análise, por seu caráter didático, descarta sutilezas do pensamento realista que sofreu diversas revisões ao longo dos anos. Mas consideremos tais ideias para mostrar a aplicabilidade dos ideais libertários nas relações internacionais.
Neste sentido, aplicar a visão libertária para desconstruir tais conceitos seria um exercício bastante razoável. Contrapor tais visões com a ideia de que a abstração conceitual do Estado tem que ser problematizada, entendendo as implicações de sua atuação para com os indivíduos, argumentando que a natureza humana não necessariamente é belicosa, mas sim de paz, e que as trocas voluntárias fariam mais pelo mundo do que conflitos desnecessários. É claro que aqui me pauto por generalizações e seria necessário uma meditação mais profunda sobre as implicações do debate. Outras correntes teóricas como a marxista, as teorias críticas (feminismo, pós-colonialismo, construtivismo) pediriam outra abordagem[6].
O primeiro ponto fundamental de uma visão de política internacional libertária é a defesa da paz e da liberdade. Libertários defendem a cooperação voluntária e pacífica entre indivíduos. Consideremos aqui que neste cenário ainda temos o Estado como elemento presente na análise. A postura primordial seria, portanto, mitigar e remediar a ação estatal na promoção de guerras e conflitos entre nações e outros atos que violassem a paz. Mesmo que não estejamos durante a Segunda Guerra Mundial ou durante a Guerra Fria, durante os anos 2000 vimos uma série de conflitos com implicações bastante graves: Guerra do Afeganistão, Iraque, intervenção na Líbia, uma já esquecida intervenção francesa no Mali e o impasse em relação à questão da Síria.
A pergunta é: mas o que nós aqui no Brasil temos a ver com isso? A postura de nosso país é historicamente baseada também nos princípios de não-intervenção, ainda que diversas discrepâncias entre discurso e prática deem o tom na condução da política externa brasileira. Frequentemente a posição do Ministério das Relações Exteriores foi tratar intervenções militares com bastante desconfiança. A intervenção da OTAN no Kosovo[7], em 1999, foi bastante criticada pelos diplomatas brasileiros. Todavia, durante o governo Lula, foi enviado um contingente militar brasileiro à guisa de força humanitária para o Haiti. As Forças Armadas brasileiras assumiram o controle da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) em 31 de maio de 2004. Os custos em 2013 bateram os R$ 2,5 bi[8], fora os inúmeros relatos de brutalidades cometidas por tropas sob comando brasileiro[9].
Um libertário se perguntaria: será que esta intervenção do Estado brasileiro é moralmente válida de um ponto de vista libertário? Será que tal intervenção não acabou por causar mais problemas do que soluções? Por outro lado, seria moralmente aceitável deixar o povo haitiano à própria sorte? Notemos que, ao mesmo tempo que o Estado adota a postura de intervenção, deixa imigrantes haitianos presos no norte do Brasil, contrariando seus princípios supostamente humanitários[10].
Tais perguntas deveriam ser feitas, principalmente quando uma das pautas da política externa que vimos reaparecer frequentemente nos últimos anos foi o objetivo declarado da participação brasileira na missão do Haiti: angariar um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A ideia de participar da missão seria de demonstrar que o Brasil pode contribuir para o fardo de sustentar uma parte na segurança coletiva da dita sociedade de nações. Será que este é o objetivo mais razoável para o Brasil, um país relativamente livre de ameaças? Não seria mais producente que o foco fosse direcionado para uma neutralidade como a da Suíça, em que não tenhamos que decidir quem pode intervir em nome de quem em guerras que frequentemente geram casos flagrantes de relações incestuosas entre as tropas de ocupação e corporações transnacionais[11]?
O debate sobre o esquema de espionagem dos EUA, ocorrido ano passado, também foi significativo em espaços libertários. Para uns herói, para outros vilão, Edward Snowden foi merecedor de um espaço significativo nas discussões. Um partido libertário brasileiro inclusive organizou uma manifestação em apoio ao whistleblower[12]. Se empreendido em profundidade, um debate de viés libertário sobre o tema rapidamente iria apontar os males da vigilância estatal sobre o cidadão, a intromissão da autoridade coercitiva na vida dos indivíduos e outros problemas.
O nexo do argumento libertário partiria da visão tradicional do liberalismo de que não cabe ao Estado se imiscuir na esfera privada para uma defesa de relações entre Estados que não passassem pela securitização desmedida. Exemplos de excessos estatais nesse sentido não faltam no Brasil: as recentes manobras brasileiras no sentido de criar mecanismos nacionais de e-mail para evitar espionagem, juntamente com iniciativas de pedir reformas da rede com países de reputação duvidosa como Rússia e China já deixam claro que o libertarianismo tem um espaço fértil para discussão. Nos Estados Unidos, as incontáveis violações de direitos civis cometidas pela “Guerra ao Terror” são outra prova.
Certamente assuntos não faltam: política de migração, controle de fronteiras, zonas de livre comércio e seus acordos, alianças políticas e militares. Para cada um, uma contribuição do pensamento libertário seria bem-vinda.
É claro que não é possível esgotar o tema em um curto texto opinativo. Um debate mais específico poderia ser sobre a necessidade de intervenções humanitárias/operações de peacekeeping como moralmente necessárias para resguardar civis inocentes face à violações de direitos humanos, mais ou menos como algumas tendências do libertarianismo bleeding-heart advogariam a necessidade de instituições que aliviem o sofrimento das camadas mais pobres da sociedade[13]. Outros já diriam que a própria ideia de defender qualquer tipo de intervenção humanitária seria ferir o princípio de não-agressão[14], enquanto tantos outros tentariam esquadrinhar o debate em termos mais claros do que significa agressão, moralidade e a ideia de guerra justa, trazendo o debate para fontes mais mainstream das relações internacionais. O refinamento depende do debate.
Obviamente, com debates mais profundos acabaríamos por nos confrontar com temas mais delicados: indagações de como agir perante situações morais limite tais quais o holocausto e outros genocídios modernos; como analisar fenômenos de armas de destruição em massa ou como lidar com rogue states[15] – Estados que fomentam o terrorismo, tráfico de armas e atividades que supostamente ameaçam a paz.
Limito esse texto em conclusões parciais e modestas pois sua intenção foi mais provocar questionamentos do que propor soluções. Acredito que não iremos acordar amanhã com cadeiras de cursos de Relações Internacionais voltadas para uma teoria baseada no libertarianismo. Todavia, as ideias libertárias tem muito a oferecer tanto ao pensamento teórico, quanto à avaliação crítica da política externa brasileira
[1] No caso dos mais próximos à concepção anarco-capitalista, a questão não seria discutível pois simplesmente não haveria Estado para agir. Isso é dito por Murray N. Rothbard na página 270 de “For a New Liberty: the Libertarian Manifesto”, capítulo “War and Foreign Policy”, disponível em: http://mises.org/rothbard/foranewlb.pdf
[2] Discurso de Ron Paul ao deixar o Congresso dos Estados Unidos:
http://www.youtube.com/watch?v=GOyjp5gJ6eE. Para deixar claro, esta visão é comum a diversos expoentes do libertarianismo, incluindo Karl Hess, Samuel Edward Konkin III, Lew Rockwell e outros.
[3] ROCKWELL, Lew. Randy Barnett: Pro War Libertarian?, disponível em:
http://archive.lewrockwell.com/block/block79.html. Infelizmente não tive acesso ao original.
[4] Sobre o Ayn Rand Institute e suas visões de política externa: http://www.aynrand.org/site/PageServer?pagename=media_topic_foreign_policy. No texto “End States who Sponsor Terrorism”, Leonard Peikoff – o principal discípulo de Ayn Rand – diz que uma guerra de auto-defesa “deve ser lutada de maneira que assegure a vitória o mais rápido possível e com o mínimo de baixas americanas, sendo irrelevante os inúmeros inocentes que se encontram na linha de fogo. Estes inocentes sofrem e morrem por causa da ação de seu próprio governo em patrocinar o uso de força contra a América. Seus destinos, portanto, são da responsabilidade moral de seu governo. Não tem como mirarmos nossas balas somente em homens maus”. É desnecessário dizer que tal visão é moralmente obscena e anti-liberdade. O texto está disponível em:
http://www.aynrand.org/site/News2?page=NewsArticle&id=5207&news_iv_ctrl=1021
[5] ALMEIDA, Paulo Roberto de. Processos Decisórios no Âmbito da Política Externa do Brasil. Disponível em: periodicos.ufrn.br/porto/article/download/2196/1612
[6] Recomendo o texto de Lucas G. Freire “Advice to Libertarian IR theorists”, disponível em: http://www.thinkir.co.uk/advice-to-libertarian-ir-theorists/
[7] http://en.wikipedia.org/wiki/Kosovo_War
[8] No Haiti, gastos passam de R$ 2,3 bi, disponível em: http://www.defesaaereanaval.com.br/?p=34099
[9] CARREIRO, Marcelo. Brasil no Haiti: o desastre da MINUSTAH, disponível em: http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&view=article&id=4517:brasil-no-haiti-o-desastre-da-minustah&catid=42&Itemid=127
[10] http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/01/16/senadores-querem-solucao-para-conter-entrada-de-imigrantes-haitianos-no-acre
[11] Western Oil Firms remains as US exits Iraq. Disponível em:
http://www.aljazeera.com/indepth/features/2011/12/2011122813134071641.html. Neste caso alguns diriam que o efeito foi benéfico poiso mercado se abriu para novas empresas. Todavia, com custos imensos de vidas de civis e soldados, além de licitações bastante obscuras, não acredito que o empreendimento seja defensável.
[12] https://www.facebook.com/events/187962721372399/?ref=22
[13] ZWOLINSKI, Matt. What is Bleeding Heart Libertarianism: Part One – Three Types of BHL, disponível em: http://bleedingheartlibertarians.com/2011/12/what-is-bleeding-heart-libertarianism-part-one-three-types-of-bhl/ ; JÚNIOR, Valdenor. As raízes liberais-libertárias: Quem são e o que defendem os Bleeding Heart Libertarians?, disponível em: https://mercadopopular.org/2013/11/as-raizes-liberais-libertarias-quem-sao-e-o-que-defendem-os-bleeding-heart-libertarians/
[14] O pilar ético do libertarianismo que pressupõe que toda ação é legal desde que que não pressuponha agressão ou ameça de agressão a terceiros. Cf. BLOCK, Walter. The Non-Agression Axiom of Libertarianism, disponível em: http://archive.lewrockwell.com/block/block26.html
[15] Encyclopedia of the New American Nation. Post-cold War Policy – Isolating and Punishing Rogue States, disponível em: http://www.americanforeignrelations.com/O-W/Post-cold-War-Policy-Isolating-and-punishing-rogue-states.html#ixzz1km2m5X7A
Leonel Caraciki é historiador. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ) e tem interesses em relações internacionais, história contemporânea e do Oriente Médio. Atualmente, dedica seus estudos a história do liberalismo e libertarianismo.