Decretar o fim de uma tendência social, econômica ou política é um hobby para cientistas sociais. Os marxistas já disseram inúmeras vezes que o capitalismo estava no fim. Fukuyama até decretou o fim da história. E, entre os especialistas de América Latina, uma prática recente é afirmar que o período de governos de esquerda na região está chegando ao final. De fato, há indícios a favor e contra. Sin embargo, algo é irrefutável: as coisas estão mudando na nossa região. Para estar certo disto, basta olhar com calma os eventos políticos que ocorreram em 2014 ou os que vão ocorrer em 2015 e 2016.
As vitórias eleitorais de Tabaré Vázquez no Uruguai [Saiba mais sobre o sucessor de Mujica] e de Dilma no Brasil mostraram no ano passado que a esquerda ainda respira. Mas, para além das urnas, os escândalos de corrupção têm preocupado os mandatários. No Brasil, a operação Lava Jato tem devastado como uma pororoca a antiga dinâmica política. Com índices de rejeição antes inimagináveis, a presidenta Dilma foi à lona. E, ao que parece, a crise alcançou até mesmo ao antes intocado presidente Lula.
Fato semelhante ocorre no Chile. Por lá, o filho da presidente Michele Bachelet é o centro de um caso de sonegação fiscal e tráfico de influência, colocando o segundo governo da sua mãe em uma situação delicada. Antes apoiado pelo radical movimento estudantil chileno que aspira por reformas profundas, hoje, o governo chileno está de volta aos braços do centrista partido democrata-cristão e deve continuar lá até o fim. [Saiba mais sobre a crise chilena]
Em 2015 três eleições merecem análise. A primeira delas já ocorreu e o presidente boliviano Evo Morales teve uma amarga derrota. Na Bolívia, a personificação da vitoriosa oposição é Soledad Chapetón, descendente de camponeses aimarás e nova prefeita de El Alto – umas das maiores cidades do país e centro político de Evo. [Saiba mais sobre Soledad e a Bolívia]
A segunda eleição será em outubro, na Argentina, para presidente e legislativo. Com os hermanos as urnas caminham para um destino semelhante ao nosso: alta polarização e indefinição até o momento da apuração. Por um lado pode vir Scioli com o filho de Cristina Kirchner, Máximo, de vice. Do outro, Mauricio Macri, oposicionista ao governo e ex-presidente do Boca Juniors. Independentemente de quem vença, inicia-se um novo ciclo político no país, após uma imensa crise econômica e mais de uma década de kirchnernerismo. [Saiba mais sobre a eleição argentina]
A terceira eleição é ainda uma incógnita. A Venezuela deveria realizar eleições legislativas, mas o enorme degaste do governo de Maduro e, consequentemente, o endurecimento do regime colocam dúvidas se haverá eleições ou se elas vão cumprir os requisitos mínimos para ser considerada uma eleição justa e limpa. Se ocorrer, porém, a tendência é uma vitória expressiva da oposição (algo que nunca ocorreu em todo o período chavista). Isto talvez possibilite uma maioria qualificada que garantiria a nomeação de nomes não vinculados ao atual regime para a Comissão Nacional Eleitoral e o Poder Popular (uma espécie de Ministério Público). Este ano é chave para saber se Maduro vai conseguir todos os requisitos para ser, inquestionavelmente, um ditador. [Saiba mais sobre as eleições parlamentares da Venezuela]
Além disso, irá ocorrer em 2016 a eleição no Peru. A atual candidata mais forte é a filha do ditador Fujimori, Keiko, mas ainda é cedo para referendar. O que é possível observar, porém, é o desejo da população de mudança em relação ao bem moderado presidente Humala. [Sobre Keiko Fujimori]
Ocorrem, também, duas grandes negociações. A primeira é entre EUA e Cuba que está normatizando a relação entre os dois países e, quem sabe, leve ao fim do mais notório fracasso de um bloqueio econômico na história. [Saiba mais sobre a reaproximação] Na Colômbia, também há as negociações entre o governo Santos e as FARC com o propósito de acabar com o conflito que já duram algumas décadas. [Saiba mais sobre a negociação com as FARC]
Enfim, ocorreu e está ocorrendo muita coisa na região. Mas isso quer dizer que estamos entrando em uma fase pós- governos de esquerda? Se sim, estamos indo para uma situação melhor? Para responder essa questão tem que se reforçar que essas linhas de diferentes governos de esquerda divergem chegando ao ponto de quase serem antagônicas. Pode-se, resumidamente, reuni-las em três grupos: alto, médio e baixo intervencionismo. O intervencionismo se refere ao grau de crítica e de rejeição as democracias de mercado (Estados que se baseiam o seu regime político na democracia liberal e o econômico na economia de mercado).
Os países de alto intervencionismo são aqueles fortemente críticos às democracias de mercado. São, por exemplo, aqueles associados ao chavismo: Bolívia, Equador, Venezuela e Cuba e pode-se incluir as FARC’s.
O maior símbolo do intervencionismo, a Venezuela, encontra-se na lona. Por lá não se tem mais dinheiro para nada. A boa noticia é que a oposição afirma reiteradamente que se busca uma solução pacifica e democrática para a crise. Como dito, este ano é crucial para o futuro do país.
Em Cuba, por sua vez, está ocorrendo um processo de distensão em busca de se tornar uma China do caribe, ditatorial, mas capitalista. Não dá pra saber onde isso vai dar, mas qualquer melhoria na liberdade econômica e/ou política para o povo cubano é um necessário avanço.
Por sua vez, as FARC’s caminham, na prática, para o seu fim com o processo de negociação com o governo Colombiano.
A Bolívia de Evo, por outro lado, demonstra-se forte e saudável graças, em grande medida, a não ser realmente intervencionista na área econômica. Desse modo, os políticos e as políticas mais intervencionistas e coletivistas na região estão se enfraquecendo e sofrendo duros golpes e/ou fortes mudanças nos últimos tempos. Uma noticia a se celebrar.
Nos países de médio intervencionismo surgem a todo tempo denúncias. No Brasil a deflagração da Lava-jato e os seus resultados ainda inconclusivas podem macular de maneira irremediável o maior partido do país, o PT. Há, também, impressionantes acusações contra o BNDES.
Na Argentina também não é diferente. Ainda se pairam muitas dúvidas sobre o caso do assassinato de Nisman decorrente da sua investigação de outro caso sinistro que foi o atentado à AMIA em 1994. O que também está aparecendo é um fracasso econômico.
Ambos os países vão ter PIB negativo esse ano que, no caso brasileiro, levou a uma mudança de rumos com a passagem do timão para Joaquim Levy mãos de tesoura. Mas, o mais importante é que os dois mostraram que as suas instituições estão razoavelmente fortes.
No caso brasileiro, o juiz Sérgio Moro está realizando uma das maiores investigações da história brasileira e prendendo pessoas que nenhum cidadão imaginaria ver na prisão. No caso argentino, conseguiu-se impedir a manobra para possibilitar a reeleições infinitas a Cristina Kirchner que, como visto na FIFA da Blatter, é uma péssima ideia. Há coisas para se comemorar nos dois países. [Saiba mais sobre o Caso Nisman]
Por fim, os países de baixo intervencionismo tem se demonstrado os com maior sucesso econômico, permitindo um crescimento sustentável.
O Chile que parecia ensaiar um maior intervencionismo com o segundo governo Bachelet recuou-se com um crescente diminuição da popularidade do governo e as denuncias de corrupção que chegam a envolver diretamente a presidenta. Ao que parece, os chilenos sabem reconhecer os grandes feitos realizados nas últimas décadas.
A Colômbia, por sua vez, caminha para o grande feito de acabar um dos mais longos conflitos internos da história. A tendência é com uma total estabilidade interna o país cresça em acelerado ritmo. Há motivos para celebrar.
Aliados entre si, Chile e Colômbia se juntaram ainda com Peru, México e Costa Rica para formar a Aliança do Pacífico. A Aliança representa um forte contraponto à influência política e econômica do Brasil na região. [Saiba mais sobre a Aliança do Pacífico]
Há mudanças ocorrendo e, apesar de não se conseguir afirmar que é o fim da esquerda na região, é seguro dizer que estamos entrando em novos tempos. Novos tempos em que se aspira por parâmetros mínimos de estabilidade e respeito democrático – até mesmo na Venezuela. Novos tempos em que se sepultam os projetos mais intervencionistas.
Por mais de uma década a alta das commodities e do petróleo legitimou e fortaleceu governos populistas. Com o fim da bonança, finalmente a conta chegou. Achar que o poder central seria capaz de dizer o certo e o errado está levando o Brasil para um tempo de ajustes, arrochos e uma perspectiva recessiva. Em situação mais grave está a Venezuela que caminha para o completo derretimento da sua economia e dos ganhos sociais. Por outro lado, esses “novos tempos” estão premiando os países que apostaram na democracia de mercado e no fortalecimento institucional.