Na América Latina, os diversos processos de impedimento ocorridos nos últimos 25 anos têm servido para preservar a estabilidade de democracias presidencialistas, derrubando governos em vez de derrubar regimes. É o que demonstra um amplo estudo de “crises presidenciais”— impeachments, renúncias e outros processos, exitosos ou fracassados — conduzido pelo cientista político Aníbal Pérez-Liñán.

Após a difusão de regimes autoritários pela América Latina, a democracia foi restaurada por todo o subcontinente. Na década de 1980, diversos estudiosos apontavam os perigos do presidencialismo para a região. Eles afirmavam que qualquer disputa entre o presidente e o Legislativo evoluiria rapidamente para crises institucionais e, eventualmente, para golpes de Estado. Seria, portanto, uma repetição das décadas de 1950 a 1970, o que comprometeria a sobrevivência das jovens democracias.

Golpes de Estado e tentativas de golpe não deixaram de ocorrer nos países latino-americanos, é verdade. Mas isso tem se tornado mais raro. Crises entre o Congresso e o Executivo passaram a ser resolvidas cada vez mais pelos meios institucionais, sem rupturas autoritárias.

O caso pioneiro foi o impeachment de Fernando Collor de Mello. No ano seguinte, o presidente da Venezuela, Carlos Andrés Pérez, foi removido do cargo. O Paraguai viu os impedimentos de Raúl Cubas Grau em 1999 e de Fernando Lugo em 2012. O polêmico presidente equatoriano Abdalá Bucaram, num caso particularmente interessante, foi declarado mentalmente incapacitado e deposto em 1997.

Pérez-Liñán se dedicou ao estudo dessa nova tendência de resolução de crises políticas na América Latina. O baixo número de casos não permite um estudo quantitativo, mas foi possível fazer uma análise dos elementos de cada um— e uma comparação entre crises que derrubaram presidentes e casos em que os presidentes sobreviveram à crise.

As conclusões dessa análise revelam que nenhuma variável explica, sozinha, o sucesso de processos de impeachment. Um impedimento de êxito requer, em todos os casos estudados, quatro elementos:

  1. um escândalo (geralmente de corrupção) envolvendo a pessoa do presidente;
  2. a perda de apoio legislativo[1], com o presidente adotando uma estratégia de isolamento do Legislativo ou confrontação ante o Congresso;
  3. uma forte mobilização popular contra o presidente; e
  4. a não participação dos militares no processo.

De fato, entre os casos de presidentes removidos do cargo analisados por Pérez-Liñán, todos envolveram uma “coalizão ampla de protesto” contra o presidente. Sucesso em manifestações públicas parecem ser, hoje em dia, um requisito para a queda de chefes de Estado na América Latina.

Há outro fator não analisado no estudo de Pérez-Liñán: o estado da economia. De fato, processos de impeachment raramente vêm desacompanhados de uma economia em recessão, como ilustramos no gráfico abaixo.

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Há semelhanças históricas entre o impeachment de Collor e Dilma. As listas abaixo trazem algumas dessas semelhanças.

Collor:

  • enfrentava uma profunda recessão — 4,2% de queda do PIB;
  • viveu um escândalo envolvendo o tesoureiro de sua campanha, P.C. Farias;
  • viu seu partido, o nanico Partido da Reconstrução Nacional (atual PTC), isolar-se no Legislativo;
  • foi alvo de manifestações de rua dos “caras pintadas”, que sepultaram a popularidade do presidente, instando o Congresso a impedi-lo.

Dilma:

  • viu em 2015 o PIB brasileiro cair 3,8%, no que, considerando-se todos os anos de crise, se estima ser a maior recessão da história registrada do país;
  • ajudou seu partido, o PT, a construir um novo “centrão” para além do aliado PMDB, numa estratégia de confrontação que eventualmente levou os peemedebistas a retiraram seu apoio do governo Dilma;
  • foi alvo das maiores manifestações populares da história brasileira ao longo de 2015 e no começo de 2016;
  • nomeou Lula para a Casa Civil no mesmo dia em que foram divulgados áudios do ex-presidente, alguns envolvendo Dilma, indicando possível obstrução de justiça, o que deteriorou ainda mais a popularidade da presidente.

 

Este último ingrediente foi um verdadeiro escândalo — o que motivou novas manifestações naquela mesma noite e no resto daquela semana. No dia seguinte à divulgação dos áudios, em 17 de março, os trabalhos do impeachment foram acelerados no Congresso.

O impedimento de Dilma Rousseff é mais um episódio de crise política resolvida pelos meios institucionais. Temores de uma ruptura democrática dificilmente se justificam: o impeachment tem tido, justamente, a função de permitir a troca de um governo impopular (e em conflito com o Congresso) sem comprometer a continuidade das democracias presidenciais.

Mais ainda, nenhum processo de impeachment tem uma explicação única. Explicações simplistas (e politicamente convenientes) atribuindo o impedimento ao arbítrio de alguns parlamentares ou a casos de corrupção não passam pelo crivo empírico ou de narrativas construídas por militâncias. O impedimento é um processo trabalhoso e demorado, que envolve potencialmente muito desgaste político. Por essa razão, é também simplista comparar o processo atual a um exercício parlamentarista. É preciso uma combinação explosiva de fatores para afastar um presidente eleito; certamente, não basta uma “moção de desconfiança”. 

Notas de rodapé

[1] Matematicamente, é preciso que o presidente perca seu “escudo legislativo”, isto é, que a oposição domine as instâncias decisórias do processo por maioria suficiente (em geral, ½ ou ⅔) para que o impedimento seja aprovado.

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