Por Matt Ford, artigo originalmente publicado no The Atlantic.

Tradução por Pedro Galvão de França Pupo.

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Uma visão aérea mostra a Praça da Independência da Ucrânia durante conflitos entre manifestantes anti-governo e batalhões  de choque da polícia  em Kiev, 19 de fevereiro. (Olga Yakimovich/Reuters)

A Ucrânia é do tamanho do Texas, mas, nos últimos três meses, o seu crescente movimento de protestos tem se concentrado em um espaço equivalente a dez quarteirões.

O nome do movimento em si, Euromaidan, é um neologismo que funde o prefixo “euro”, uma referência à vontade da oposição de se aproximar da UE e se distanciar da Rússia, com a palavra ucraniana (originalmente persa e árabe) “maidan”, ou praça pública. E o termo se refere a mais do que a localização física dos protestos na Praça da Independência de Kiev (Maidan Nezalezhnosti). A Ucrânia pode estar situada na Europa geograficamente, mas muitos dos manifestantes também enxergam a Europa como uma ideia, uma que representa “democracia genuína, polícias confiáveis e respeito sincero por direitos humanos.”

 O nome também representa um fenômeno cada vez mais universal: a praça pública como epicentro da expressão democrática e do protesto, e a ausência de uma – ou a manipulação deliberada de tal espaço – como uma maneira de autocratas oprimirem a dissidência através de planejamento urbano.

Nem todas as revoluções foram centradas em praças públicas, mas muitas revoluções recentes foram, incluindo diversas em antigos estados soviéticos. Em 2003, a Revolução Rosa da Geórgia derrubou o presidente Eduard Shevardnadze a partir da Praça da Liberdade de Tbilisi. Em 2005, manifestantes quirguizes enfrentaram a polícia e ocuparam a praça Ala-Too, e então prontamente invadiram o palácio presidencial nas proximidades e derrubaram o presidente de longo prazo Askar Akayev. A Revolução Laranja da Ucrânia em 2004 ocorreu na mesma Praça da Independência onde hoje manifestantes estão envolvidos em confrontos sangrentos com as forças do governo, exigindo promessas do presidente Viktor Yanukovych para eleições antecipadas e um retorno à constituição de 2004.

O simbolismo da praça pública foi fortalecido durante a Primavera Árabe. Um ensaísta escrevendo no auge da revolução egípcia, logo após a queda de Hosni Mubarak em 2011, eloquentemente explicou como a Praça Tahrir representava a repressão mais ampla da sociedade civil egípcia. A praça foi originalmente construída no século XIX, baseada em um projeto que visava transformar o Cairo em uma “Paris no Nilo”, e foi rebatizada como Praça Tahrir (“liberação”) após se tornar um ponto focal para as revoluções egípcias de 1919 e 1952:

 “De fato, nas últimas semanas Tahrir se tornou uma praça realmente pública.  Antes disso ela era apenas um círculo grande e populoso por onde transitavam pessoas – e seus limites eram o resultado de projetos políticos, de políticas que não só desencorajavam como proibiam reuniões públicas. Sob leis emergenciais – estabelecidas no momento em que Mubarak assumiu o cargo em 1981 e ainda não abolidas – uma reunião de poucos adultos em uma praça pública já é causa para prisão. Assim como toda autocracia, o governo Mubarak compreendeu o poder de uma praça realmente pública, de um ambiente onde cidadãos se encontram, misturam, passeiam, reúnem, protestam e compartilham ideias; é compreendido que uma verdadeira “midan” – árabe para “praça pública” – é uma manifestação física da democracia. Uma Midan al-Tahrir realmente pública teria sido temida como uma ameaça para a segurança do regime, portanto ao longo dos anos o Estado utilizou o projeto físico do espaço urbano como um de seus principais métodos para desencorajar a democracia.”

“Em Tahrir isso significou construir cercas e subdividir áreas abertas em lotes facilmente controlados de grama e calçadas. Citando um exemplo proeminente: a grande porção da praça que faz frente ao museu egípcio era, até a década de 60, uma região coberta por grama com caminhos entrelaçados e uma grande fonte. Nesse local famílias e estudantes se reuniam durante o dia; e ele também era um ponto de encontro famoso para amantes se encontrando no coração da cidade. Mas na década de 70, o governo cercou a área – e mais, ele nunca ofereceu nenhuma explicação clara do destino que seria dado a esse ponto de encontro querido. Moradores do Cairo imaginaram que talvez ele havia sido fechado para a construção do Metrô do Cairo ou algum outro projeto de infraestrutura. Em algum momento da década passada uma placa apareceu, anunciando que uma garagem subterrânea multi-nível estava sendo construída. Durante os protestos na Praça Tahrir, ativistas derrubaram a cerca e a utilizaram para construir barricadas e se proteger dos ataques de capangas pró-Mubarak – e a remoção da cerca revelou que nada havia sido construído no local. A área havia sido removida da esfera pública precisamente para evitar a possibilidade de grandes multidões se aglomerando em Tahrir. Esse foi o legado de planejamento urbano de Mubarak.”

O layout do Cairo também fez da Praça Tahrir o lugar perfeito para se iniciar uma revolução.  Localizada no centro da maior cidade do Egito, Tahrir fica perto do parlamento egípcio, da base do partido político de Mubarak, do palácio presidencial, de diversas embaixadas estrangeiras e de hotéis cheios de jornalistas internacionais para transmitirem imagens das manifestações para audiências do mundo inteiro. Depois que Mubarak abdicou, praças públicas grandes em outras capitais árabes também se tornaram campos de batalha revolucionários.

Para a Líbia, a principal praça pública de Tripoli passou a simbolizar o sucesso da revolução de 2011 do país. Originalmente batizada de Piazza Italia sob o domínio colonial italiano (praças centrais inspiradas pela Europa ocidental são um tema recorrente nesta parte do mundo) e depois de Praça da Independência pela monarquia líbia, ela havia sido renomeada como “Praça Verde” de acordo com a ideologia política de Muammar Qaddafi. O governo transicional da Líbia prontamente a rebatizou de “Praça dos Mártires” como homenagem àqueles que morreram enfrentando o regime de Qaddafi na guerra civil da Líbia.

Mas esses espaços públicos nem sempre sobrevivem aos momentos revolucionários que os tornam famosos. A praça pública mais importante de Bahrein teve o mesmo destino do levante que chegou a preenchê-la. Depois que manifestantes marcharam para a Praça da Pérola de Manama, em março de 2011, o governo de Bahrein retomou a praça em uma repressão sangrenta, então arrancou a grama com escavadeiras e demoliu o Monumento da Pérola no centro da praça para reafirmar seu controle.

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  Operários do governo de Bahrein derrubam a Praça da Pérola na capital Manama, em março de 2011 (Hamid I Mohammed/Reuters) (Hamid I Mohammed/Reuters)

De muitos jeitos, a França foi a pioneira do uso consciente de planejamento urbano para fins políticos.  A Paris do começo do século XIX era essencialmente uma cidade medieval, sufocando com o excesso de população e a falta de infraestrutura. As renovações urbanas do Barão Haussmann nas décadas de 1850 e 1860, sob o governo de Napoleão III,  deram à cidade um sistema de esgotos moderno, lindos parques suburbanos e uma rede de estações ferroviárias. Ele também aproveitou a oportunidade para demolir vizinhanças problemáticas das classes baixas, banir seus habitantes empobrecidos para os subúrbios, e substituir seus becos estreitos e apertados por avenidas grandes e espaçosas. Caso houvesse um levante popular, como aqueles que ocorreram em 1789, 1830 e 1848, as autoridades francesas esperavam que as ruas mais amplas dificultariam a construção de barricadas por parisienses revolucionários e facilitariam a marcha de colunas de soldados franceses para suprimir revoltas.

 Cálculos similares ainda são feitos hoje em dia. Em 2005, a junta governante da Birmânia moveu o governo de Yangon, uma metrópole gigantesca com 5 milhões de habitantes, para a nova capital em Naypyidaw, no interior, por motivos de segurança. Isolada de outros centros populosos, Naypyidaw é habitada principalmente por funcionários do governo e oficiais militares que passam o menor tempo possível na cidade desolada. Oficiais birmaneses afirmam que quase um milhão de pessoas vivem lá, mas a população verdadeira provavelmente é muito menor do que isso.

Quando a Revolução Açafrão irrompeu dois anos mais tarde, em 2007, os amplos protestos que ocorreram em outras cidades birmaneses nunca chegaram às ruas de Naypyidaw, e os governantes militares do país permaneceram no poder após uma repressão breve, mas brutal. Mesmo se a população da cidade tivesse sido grande o bastante para manifestações, onde elas teriam ocorrido? Avenidas largas demarcam as vizinhanças especialmente designadas onde vivem os militares, sem nenhuma praça pública ou espaço central para residentes se reunirem – desobedientes ou não. O palácio presidencial chega a ter um fosso. Um jornalista descreveu a cidade como “ditadura via cartografia”.

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  Chamar as muitas avenidas de Naypyidaw de “espaçosas” seria injusto para o espaço.  A maior delas, localizada do lado de fora do parlamento da Birmânia, tem 20 avenidas de largura. (Saul Loeb/Reuters)

O presidente Nursultan Nazarbayev do Cazaquistão, por sua vez, realocou a sua sede de governo para Astana, uma capital no interior da estepe cazaque preenchida com arquitetura futurista para impressionar visitantes. O presidente russo Vladimir Putin buscou inspiração no passado:  Em 2008, ele reviveu a tradição soviética de enormes paradas militares na Praça Vermelha de Moscou como exibição de força bélica. Ainda não é bruto o suficiente? Autoridades sauditas usam a Praça Deera de Riyadh para realizar decapitações públicas oficiais.

Outros são mais sutis. Em Pyongyang, a capital austera e imponente do último estado totalitário do mundo, a conformidade exala de cada massa gigantesca de concreto. Apenas os norte-coreanos mais leais recebem permissão para morar em um dos muitos blocos de apartamentos idênticos da cidade, uma característica comum de projetos urbanos stalinistas. A maior cidade da Coreia do Norte é definida pelos “grandes monumentos de gosto questionável que pontuam a paisagem urbana… ligados pelas avenidas absurdamente largas no estilo Haussmann e praças públicas colossais  onde falta um público de verdade. O espaço público abundante existe apenas para glorificar o Estado e o regime de personalidade do regime Kim.

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  Uma foto do fundador de Coreia do Norte Kim Il Sung decora um prédio em Pyongyang. (Damir Sagolj/Reuters)

Se muito espaço público pode ser uma coisa ruim, então a Praça da Paz Celestial da China é a pior infratora. A quarta maior praça do mundo pode ser considerada paradoxalmente “o oposto de um espaço público”, escreveram Tim Waterman e Ed Wall em seu livro sobre arquitetura e paisagismo. Na Praça da Paz Celestial, a “escala totalitária reduz os indivíduos à insignificância e os obriga a se sentirem subservientes ao poder do Estado. É um espaço mais apropriado para a exibição de tropas e armamento, não para a participação ativa do cidadão na vida diária de uma metrópole.” A repressão  de 1989, liderada por tanques contra ativistas pró-democracia que ocupavam a praça, serve como um lembrete cruel de como manifestações em massa podem falhar.

Nem todos os autoritários são tão adeptos em planejamento urbano. A grandiosa reforma de Bucareste realizada pelo autocrata romeno Nicolae Ceausescu na década de 1980 obliterou um quinto da cidade histórica para implementar uma extensa bagunça de estruturas de concreto, incluindo o maior edifício parlamentar do mundo, que domina o horizonte de Bucareste. Nada disso impediu uma multidão gigantesca de se voltar contra ele durante um discurso na Praça da Revolução em dezembro de 1989. Dias depois ele foi capturado, condenado, e executado por fuzilamento.

No Cairo de hoje, três anos após a queda de Mubarak, o exército parece estar buscando a normalidade pré-revolução. Multidões retornaram para a Praça Tahrir no último verão e exigiram a derrubada de Mohammed Morsi, o primeiro presidente eleito democraticamente no país. Ele atualmente está sendo julgado por incitar assassinatos e usar violência contra manifestantes, e é esperado que o General Abdel Fattah al-Sisi, o líder militar que derrubou Morsi, se candidate à presidência. Ele provavelmente vai vencer.

A Praça Tahrir agora está vazia. Operários estão ocupados construindo portões de 3 metros de altura, enfeitados com espinhos e pintados com as cores nacionais do Egito, em volta do local de origem da revolução egípcia e o epicentro da Primavera Árabe. Praças públicas podem ser berços para movimentos democráticos mas, parafraseando Tsiolkovksy, você não pode viver em um berço para sempre. Terá a maidan da Ucrânia um destino semelhante?

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