por Rodrigo da Silva

ATO I: mais estranho que a ficção.

Não há um mísero veículo circulando pela larga avenida. No coração do asfalto, posicionada no centro de um círculo branco, uma garota de azul insiste em gesticular para um trânsito imaginário com o seu bastão. É um dia absolutamente comum na vida do país mais isolado do mundo. Algumas nuvens pretas anunciam um temporal.

Nesse exato instante há míseros onze veículos disponíveis para cada mil habitantes na Coreia do Norte – todos devidamente pertencentes aos poucos estrangeiros residentes no país, a nata do Partido dos Trabalhadores e aos militares (a imensa maioria). Com uma das menores frotas do mundo, o número é trinta vezes menor que a proporção sul coreana e mais de setenta vezes menor que a norte americana. Há quatorze vezes mais veículos circulando diariamente apenas na Marginal Tietê, em São Paulo, do que em toda Coreia do Norte.

No país sem liberdade de circulação, mulheres são proibidas de dirigir com a alegação de que provocam muitos acidentes. No entanto, há mais de 40 anos – sem energia suficiente para ser gasta com luxos como semáforos – são as responsáveis pelo controle do trânsito. Por gesticularem ininterruptamente mesmo quando não há um mísero veículo na via – rodopiando seus corpos esguios como se estrelassem uma companhia de balé do asfalto para uma escassa plateia – são vistas como exemplo de dedicação ao trabalho e amor ao Partido, e só abandonam o posto em fortes dias de calor e chuvas intensas. Ser uma controladora de trânsito é um sonho inatingível para a imensa maioria das mulheres de Pyongyang. As com sorte e beleza suficientes para o cargo muitas vezes acabam em cartazes no cinema do país.

Há meros 724 km de estradas pavimentadas na República Democrática Popular da Coreia; número 115 vezes menor que na Coreia do Sul. Distante do glamour orwelliano da capital e seus arredores – que recebe em quase sua totalidade os 25 mil carros que circulam no país – a maior parte das estradas são de terra, brita ou cascalho, muitas das quais construídas com largas faixas para abrigar tanques e aviões militares em períodos de guerra. Como encontrar um veículo circulando numa estrada é uma cena rara, alguns motoristas solitários buzinam enloquecidamente quando avistam outro veículo. A cena pode ser vista mesmo quando a distância entre eles ultrapassa um raio de meio quilômetro.

nkorea11

Além de uma carteira de motorista, os norte-coreanos precisam de um certificado de formação de condutores (renovado todos os anos), uma autorização de mobilização militar (para o transporte de soldados em tempos de guerra), um documento de validade de combustível (um certificado confirmando que a gasolina foi comprada de uma fonte autorizada) e um certificado de mecânico (para provar que o carro está em bom estado de funcionamento). Há poucos postos de gasolina no país e o combustível é um bem escasso. Não é incomum encontrar cidadãos norte coreanos sugando o combustível de carros estacionados com a boca para trocar por dinheiro. Quando pegos, podem ser espancados até a morte.

32672_b

Num país organizado socialmente através de 3 grandes classes consanguíneas, com mais de 50 subgrupos determinados pelo estado, há usualmente 3 faixas nas ruas de Pyongyang para a locomoção de cada classe. A primeira faixa está reservada para os altos funcionários do Partido, com permissão para dirigir na velocidade que desejarem. Para os reles mortais, os limites são de 70km/h, 60 km/h e 40 km/h – para a primeira, segunda e terceira faixa, respectivamente. Os pertencentes à terceira faixa não possuem permissão para mudar de pista. Enquanto no restante do mundo os limites de velocidade funcionam como imposições de segurança, na Coreia do Norte – mesmo com a maioria dos veículos nas mãos de uma pequena elite – até as estradas servem para reforçar a hierarquia social.

Na capital, duas linhas úmidas e mal iluminadas de metrô, construídas nos áureos tempos em que a grana soviética pintava as caras no país, servem diariamente um quarto da população local. Nas ruas, disputados em longas filas, os ônibus são quase todos herdados da antiga Alemanha Oriental e os bondes elétricos usam tecnologia tcheca. Alguns dos mil Volvo 144s – comprados da Suécia na década de 70 e que até hoje não teriam sido pagos – são usados como táxis. Uma viagem de ônibus ou metrô custa suados US$0,05. Um quilômetro rodado num táxi pode custar até dez vezes mais. Com um salário mínimo de cerca de US$50, a maior parte da população prefere se locomover a pé ou de bicicleta. Para andar de bicicleta também é necessário um registro específico e as mulheres ainda são proibidas de circular com elas na capital do país.

[vimeo]http://vimeo.com/84608804[/vimeo]

Distante desse universo, a família Kim desenvolveu um verdadeiro fascínio pela Mercedes-Benz – marca alemã que historicamente exerce uma paixão peculiar em ditadores, como Hitler, Fidel Castro, Pol Pot, Leonid Brejnev e Saddam Hussein. Kim Il Sung, Presidente Eterno da Coreia do Norte, encontra-se atualmente embalsamado no Palácio Memorial de Kumsusan próximo à sua Mercedes 500 SEL. E a paixão pela estrela de três pontas foi transmitida de pai para filho. Apesar das sanções econômicas impostas pela ONU, que há décadas baniram a venda de itens de luxo no país, segundo relatos de um ex-assessor para compras, Kim Jong-Il acumulou mais de US$20 milhões em carros da Mercedes-Benz. E boa parte com dinheiro de ajuda humanitária. No livro “Escaping North Korea: Defiance and Hope in the World’s Most Repressive Country“, o autor Mike Kim relembra um desses casos:

“[Em 2001], enquanto as Nações Unidas preparavam uma ajuda de emergência no valor de US$ 600 milhões para o país, Kim gastou US$20 milhões importando 200 das mais novas e caras… Mercedes, que ele distribuiu como prêmio a seus seguidores depois do teste de lançamento de um novo míssil de longa distância sobre o Japão.”

2011-12-19_kimjongil

Em 2010 a cena se repetiu: Kim presenteou oficiais do alto escalão com 160 sedãs da marca. Um ano antes havia importado duas limousines Mercedes-Benz S600 Pullman Guard por US$3,1 milhões – quantia que poderia ter sido usada para comprar 13 mil toneladas de milho para alimentar a faminta população norte coreana.

As forças que regem o país mais fechado do mundo possuem suas prioridades.

 

ATO II: um monstro chamado fome.

 

nocanvas_bm-kuzey-koreli-cocuklar-yetersiz-besleniyor-gc19e

“Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, 
Saborear, enfim, 
O pão da minha fome. 
— Liberdade, que estais em mim, 
Santificado seja o vosso nome.”

– Miguel Torga

Há um monstro que habita o interior do país mais fechado do mundo. Sua existência não é fruto da modernidade. Tampouco é uma invenção da mitologia milenar. Há poucos habitantes que não tenham experimentado de sua tirania e ainda menos que desconheçam vítimas derradeiras da sua crueldade. No país mais fechado do mundo um monstro invisível exerce seu poder impiedosamente, destruindo e amaldiçoando – ele atende pelo curto nome de fome.

No tempo dos czares, os russos tinham um cético ditado que afirmava que “depois da tempestade vem a inundação”. Foi com os próprios russos – e o tempestuoso colapso da União Soviética nos anos 80 – que o monstro da fome inundou os campos norte coreanos, exercendo pleno domínio sobre os destinos de uma nação há décadas estagnada pela economia centralizada. No início, a população foi orientada a se alimentar no máximo duas vezes ao dia. Em pouco tempo acabou a comida.

Ainda que a maior parte dos norte coreanos tenha lidado com privações nutricionais durante décadas, a Marcha do Sofrimento (1994-1998) foi um evento central na vida de cada cidadão. O colapso soviético evidenciou o profundo grau de dependência da precária economia norte coreana. Para completar, a crise veio acompanhada de verdadeiros dilúvios. Depois da queda do comunismo, foi a vez do céu desabar. Apenas num condado em Pyongsan, em agosto de 1995, 877 milímetros de chuva foram registrados em meras 7 horas. De acordo com as Nações Unidas, as inundações que assolaram o país foram responsáveis por destruir cerca de 1,5 milhões de toneladas de reservas de grãos. Com a fome generalizada, na colheia do ano seguinte, camponeses famintos devoraram pequenas espigas de milho ainda em formação, destruindo metade da já combalida colheita. A fome era um vírus que se alastrava rapidamente.

404410-north-korea-famine

Acredita-se que apenas em meados da década de 90 a fome tenha dizimado mais de 1 milhão de norte coreanos – o equivalente a mais de 5% da população. Se transferíssemos uma taxa de mortalidade semelhante aos Estados Unidos, 12 milhões de pessoas estariam mortas pela falta de comida. O governo norte coreano abastecia apenas 6% da população com seu programa de alimentação; os cidadãos agraciados recebiam irrisórias 128 gramas de comida por dia, suficientes para preencher uma xícara – o equivalente a cerca de 25% do mínimo recomendado para a ingestão diária de calorias.

Desde então, organizações internacionais falam em mais de 3,5 milhões de mortos pela fome e acredita-se que 1/3 da população lide com a miséria. Mais de 62% da população depende exclusivamente das rações alimentares fornecidas pelo estado – que há 3 anos diminuiu a ingestão diária de alimentos de 1400 calorias para 700 calorias (apenas a título de comparação, um europeu saudável consome entre 2000 a 2500 calorias por dia). Segundo o Programa Mundial de Alimentos da ONU, 57% da população não têm comida suficiente para se manter saudável. Além disso, 37% das crianças menores de 6 anos foram atrofiadas devido à desnutrição crônica – 2/3 delas estão abaixo do peso. A fome também elevou o índice de cegueira no país, um dos mais altos do mundoE isso sem falar nas constantes denúncias de canibalismo.

CoreiadoNorteagricultura

Devemos lembrar que embora a península coreana seja relativamente pequena, ela é quase tão longa quanto a Itália. As condições naturais e climáticas das partes norte e sul são absolutamente distintas. No norte, as montanhas cobrem a maior parte do território e o clima é duro e continental. Seu potencial energético é tamanho que, antes da divisão, 90% da eletricidade da península vinha da região – uma situação radicalmente oposta à atual, como mostram imagens noturnas de satélite. Apesar disso, a pequena superfície cultivável do país (apenas 21,5% do território norte coreano é apropriado para a agricultura, o 150º país nesse quesito em todo mundo) requer um forte investimento em fertilizantes. O solo encontrado na península coreana não é muito fértil. Alguns lugares no sul são cobertos por terra vermelha; o resto da terra é ainda pior. Isto significa que altos rendimentos podem ser conseguidos apenas por constantes fertilizações do solo.

Na tentativa de diminuir as tensões, por uma década a inimiga Coreia do Sul ajudou a preencher a lacuna deixada pelo fim dos subsídios da União Soviética, doando anualmente à Coreia do Norte meio milhão de tonelada de fertilizante. Graças a essas medidas, Kim Dae Jung, presidente sul coreano, ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 2000. A Sunshine Policy, como ficou conhecida, durou até 2008. Desde então, um fertilizante feito com cinzas misturadas a excrementos humanos – chamado toibee – é recolhido de banheiros públicos em cidades e vilas de todo o país durante o inverno. De acordo com uma organização filantrópica budista com informantes na Coreia do Norte, fábricas e empresas públicas recebem ordens para produzir duas toneladas de toibee por inverno. O excremento da população foi a solução encontrada pela revolução norte coreana para tentar amenizar a fome que assola o país. Mas apesar da iniciativa, seus fertilizantes orgânicos não fazem frente aos produtos químicos dos quais as fazendas estatais dependeram por décadas, seja da União Soviética, seja da Coreia do Sul.

Na década de 50, a região sul da península era uma das mais miseráveis do mundo. Passado décadas de profundas mudanças institucionais, a Coreia do Sul se tornou um dos líderes globais em segurança alimentar. Na Coreia do Norte, em contrapartida, como narra a jornalista americana Barbara Demick em seu livro “Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea”, não bastasse a distância natural da população em relação a um pedaço de carne – quando muito presente nas refeições em dias de celebração à vida da família Kim – é preciso uma boa dose de coragem para comprar carne no mercado negro. A chance de estarmos lidando com um pedaço de carne humana disfarçada de carne de carneiro é considerável.

gdpnorthkorea2

A fome se transformou num mecanismo de poder utilizado pelo estado norte coreano para definir quem vive e quem morre, quem é forte o suficiente para contribuir com o Partido e quem é fraco para tentar combatê-lo. Alimentando a população faminta com migalhas que variam de tamanho conforme o grau de lealdade, enquanto se empanturra com os mimos produzidos pelo capitalismo, a família Kim permanece intacta há décadas no poder guerreando com o estômago de cada cidadão.

O monstro que assola o interior do país mais fechado do mundo é um aliado a serviço da revolução.

ATO III: mercado negro como resistência à tirania.

O colapso da Grande Fome na década de 90 inaugurou uma nova era na Coreia do Norte. Para sobreviver, os norte coreanos foram obrigados a vender seus produtos domésticos ou trocá-los por sacos de arroz. Mesmo eletrodomésticos essenciais para a vida cotidiana não estavam acima do bem e do mal quando o assunto em questão era a sobrevivência. Desde então, móveis e eletrodomésticos funcionam como uma espécie de seguro. Durante os piores períodos de fome, cada bem vendido representava um aumento de meses na expectativa de vida. O mantra se tornou: deve-se vender para viver. E o comércio, mesmo proibido, se transformou no único instrumento disponível para salvar os norte coreanos.

Comercio coreia do norte

Os norte coreanos o chamam de jangmadang. Segundo levantamento com desertores, 69% dos entrevistados relataram que mais da metade de seus rendimentos vinham de atividades de mercado, em oposição ao emprego estatal. Nove em cada dez famílias norte coreanas comercializam para sobreviver. Há até mesmo uma elite financeira, que empresta dinheiro com taxas de juros que ultrapassam os 30%. O grupo é conhecido como money-makers e sua influência está se espalhando rapidamente pelo país como consequência inevitável do aquecimento econômico do mercado negro. Lentamente, os money-makers estão adquirindo poder e influência, alimentando o crescimento do varejo e proporcionando linhas de crédito para incontáveis cidadãos.

Em imagens de satélite, analistas identificaram mais de 300 jangmadangs em toda Coreia do Norte. Muitas maiores do que campos de futebol. E as imagens mostram que esses mercados estão crescendo. O governo faz vista grossa porque a economia local depende dessas atividades para não entrar em colapso. Além disso, o suborno é um alicerce para a autonomia.

Percebendo o crescimento de uma pequena elite graças ao mercado negro, Kim Jong Il realizou uma grande reforma monetária em 2009, que consistia numa operação relativamente simples: retirar dois zeros da moeda local, o won. Assim, cem dos velhos wons passariam a valer um won novo. Os indivíduos tinham uma semana para trocar as moedas antigas pelas novas. Foi quando surgiu o golpe: o governo anunciou que ninguém poderia converter mais de 500 mil wons! O valor correspondia a U$200 no câmbio negro. De um só golpe o governo varreu do mapa uma enorme fração da riqueza privada dos cidadãos norte coreanos. Não se sabe exatamente quanto, mas o valor é provavelmente maior do que o total expropriado pelo governo argentino em 2002.

Apesar do estrago, a reforma – como afirma Sokeel Park, chefe de Pesquisa e Análise da Liberty in North Korea (veja tweet acima) – trouxe desconfiança para a população norte coreana, que a partir de então passou a utilizar outras moedas com maior frequência. E o efeito disso pode ser devastador. Como conta o ex-oficial refugiado do exército norte coreano, Jang Jin-sung, num artigo para o The New York Times publicado há pouco mais de 8 meses:

“Usando seus dólares americanos (muitos deles falsos) para compra de produtos chineses, os norte-coreanos passaram a reconhecer a existência de líderes maiores do que os Kims. Quem são esses homens presentes nas cédulas americanas? Os norte-coreanos agora veem que a lealdade ao líder supremo não trouxe benefícios tangíveis; mas as cédulas exibindo os rostos de homens americanos são trocadas por muitas coisas: arroz, carne, até mesmo uma promoção no trabalho.”

O tiro pode sair pela culatra.

 

http://libertroll.com.br/wp-content/uploads/2014/01/NorthKorea6.pnghttp://libertroll.com.br/wp-content/uploads/2014/01/NorthKorea5.pnghttp://libertroll.com.br/wp-content/uploads/2014/01/NorthKorea4.png

Os mercados são mais aquecidos nas províncias do que na capital do país, fundamentalmente por conta da ausência de um controle maior do estado. Graças a isso, na província de North Hamgyong, no nordeste do país, a população consegue experimentar um grau de liberdade e riqueza impensáveis até poucos anos. A região, como conta um desertor, ”já parece um lugar muito melhor para viver do que a cidade de Pyongyang”. Em poucos anos o mercado atesta sua força para propagar prosperidade – em comparação com o controle econômico centralizado – em exemplos que partem de dentro da própria Coreia do Norte. Ao passo que a vida em Pyongyang exige constante vigilância, moradores de North Hamgyong dizem ter acesso regular a arroz e podem comprar até pão importado da China. Não por acaso, já há norte coreanos desertando para a província.

Não há propriedade privada na Coreia do Norte, ainda assim informantes afirmam que já existe um pequeno comércio ilegal de “vendas” de propriedades entre os cidadãos do país. Residências em cidades próximas à fronteira com a China usualmente possuem preços mais elevados nesse mercado negro imobiliário, visto que oferecem facilidades de acesso ao dinheiro chinês, uma menor presença da repressão estatal e pequenos luxos de infra-estrutura como sinais de telefonia móvel. O governo alerta que a prática é um “crime contra o sistema da Coreia do Norte”. Mas as tentativas para acabar com esse comércio incipiente falham nas mãos dos subornos e do envolvimento direto de funcionários do alto escalão com as vendas.

Como narra um comerciante chinês, há dois anos a população norte coreana comprava apenas produtos básicos como “oléo de cozinha, arroz, roupas e eletrodomésticos de segunda mão”. Hoje em dia eles também pedem “computadores Apple, iPads, celulares, máquinas de lavar e geladeiras japonesas – embora os consumidores desses bens de luxo sejam, em sua maioria, oficiais”. Mesmo altos funcionários de Pyongyang estão usando tablets comprados no mercado negro da região.

Para os reles mortais, segundo recentes relatos próximos às fronteiras, entre os dez itens mais cobiçados na região estão, nessa ordem – aparelhos de DVD ($20, portátil, de fabricação chinesa), novelas sul coreanas, calça jeans, celular, aspirina e preservativos. O uso do preservativo – antes restrito à elite – agora está rapidamente se espalhando para os norte-coreanos. Ter uma camisinha também é percebido como um sinal de status. E isso possui uma forte relação com o número crescente de mulheres que vendem seus corpos para ganhar a vida. A AIDS se tornou uma séria preocupação para o estado norte coreano, especialmente na forte disseminação da doença no exército do país – na Coreia do Norte existe uma indústria da prostituição que é focada apenas em servir aqueles que estão de licença do exército; as mulheres transam corriqueiramente por comida; quando a relação envolve dinheiro, os soldados muitas vezes invadem casas de civis das quais roubam impunemente.

O consumo de produtos de mídia estrangeira é estritamente proibido pelo regime. No entanto, graças à ascenção do mercado negro, muitos norte coreanos ouvem programas de rádio e assistem secretamente a filmes e novelas da Coreia do Sul. Sabendo o risco que é ter uma população bem informada – e com o aumento considerável da venda de aparelhos de rádio e de DVD nas fronteiras – Kim Jong Un vem realizando constantes execuções públicas com infratores para causar medo na população. Muitos desertores dizem ter decidido fugir do país apenas depois de ter assistido a essas novelas. Eles ainda confirmam que estudar os hábitos de seus protagonistas é quase tão envolvente na Coreia do Norte quanto ler um livro didático sobre o mundo exterior.

 

Um mercado 'ttoari' em Najin, na Coreia do Norte.

 

Esse é um momento único na história da Coreia do Norte. Como narra o ex-oficial norte coreano Jang Jin-sung, em seu artigo para o NYT:

“O efeito social da ascensão do mercado tem sido extraordinário. O cordão umbilical entre o indivíduo e o Estado foi cortado. Aos olhos das pessoas, a lealdade ao Estado foi substituída pelo valor do dinheiro. (…)

Hoje, quando os norte-coreanos são ordenados por seus empregadores estatais a participarem de atividades políticas, eles sabem que o tempo deles está sendo desperdiçado. Poucos norte-coreanos comparecem aos seus empregos públicos. Essa crescente independência econômica e psicológica entre as pessoas comuns está se tornando a maior pedra no sapato do regime.

Também é a chave para a mudança. Em vez de nos concentrarmos no regime e em seus agentes como possíveis instigadores de reforma, nós devemos reconhecer a força do mercado florescente para transformar de modo lento, mas definitivo, a Coreia do Norte de baixo para cima. Esse empoderamento do povo norte-coreano é crucial não apenas para uma transformação positiva da nação, mas também para assegurar uma transição estável para uma nova era após uma eventual queda do regime.

O crescente comércio com a China deixou a fronteira norte-coreana porosa de muitas formas, facilitando o fluxo de informação para dentro e para fora do país. Muitos norte-coreanos agora podem assistir programas de televisão sul-coreanos que são contrabandeados em DVDs ou pen drives.

Uma forma de acelerar a mudança seria manter as transmissões para o país, para que os norte-coreanos possam acessar a programação de rádio internacional mais facilmente em seus aparelhos ilegais. Outra é apoiar o trabalho dos exilados norte-coreanos, que são um canal de bens e ideias liberais pela fronteira.

As negociações com Pyongyang só podem oferecer soluções temporárias para crises fabricadas. E posso dizer com base na minha experiência de que elas encorajam apenas mais enganação por parte da Coreia do Norte. Olhar para a Coreia do Norte de baixo, explorando as realidades do mercado, é a única forma de promover a reforma do regime – ou sua queda.”

O mercado, mesmo proibido, está sendo responsável por uma série de pequenas revoluções dentro do país mais fechado do mundo, fundamentais para o aumento da qualidade de vida e a libertação do povo norte coreano. Seja no comércio aquecido, no empréstimo dos money-makers, nas vendas de propriedades privadas, seja nas informações que entram clandestinamente pelo país através do consumo, no aumento da expectativa de vida, na proteção contra graves doenças, o mercado é libertador. Com dizia Tocqueville,

“nada é mais fértil em prodígios do que a arte de ser livre; mas não há nada mais árduo do que o aprendizado da liberdade. A liberdade, geralmente, é implantada com dificuldade, em meio a tormentas; é aperfeiçoada por meio de dissenções; e seus benefícios só podem ser conhecidos com o passar do tempo”.

Que o mercado liberte o povo norte coreano.

*Publicado originalmente pelo Libertroll.

Compartilhar