*Por Mariana Afonso e Eraldo Renault

Mal começou o ano de 2017 e a população de Manaus já lida com uma aflição sem precedentes diante do Massacre no Compaj – Complexo Prisional Anísio Jobim. Estima-se que houve 56 detentos mortos, bem como presos foragidos, instaurando um estado de medo na população nas horas posteriores ao ocorrido.

Na Unidade Prisional do Puraquequara, houve quatro detentos decapitados e também fuga de presos no Instituto Penal Antônio Trindade. Para a nossa tristeza, esta crise parece estar longe de acabar. Em seguida, nova rebelião sangrenta ocorreu na capital amazonense. Ao menos quatro mortos foram encontrados na cadeia pública Raimundo Vidal Pessoa. Além disso, em outra rebelião, morreram 33 presos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, no estado vizinho.

Durante essa semana e após os eventos ganharem repercussão nacional e internacional, a ONU se manifestou com um discursos tímido. Ademais, vale dizer que o recente episódio de observadores das Nações Unidas na Colômbia dançando com guerrilheiras manchou a credibilidade da organização no que se refere a processos de pacificação, sobretudo no que tange ao “combate às drogas” e à violência organizada.

A priori, o massacre trata-se de uma disputa entre facções criminosas. Um atrito muito familiar à conceituação hegeliana denominada “luta pelo reconhecimento”. Com isso, vimos as atrocidades que ocorreram, o clima de comoção e insegurança que tomou conta da população e a imprensa começou a refletir sobre quem é o culpado pelo ocorrido. O “serviço de inteligência” dos presídios, bem como a precariedade de nosso sistema carcerário foram os primeiros culpados. De fato, representam uma parcela do problema. Mas não são a raiz do problema todo.

Posteriormente, peritos constataram a responsabilidade da empresa terceirizada que administra o Compaj. O massacre, portanto, teria sido uma consequência do distanciamento do governo da gestão do complexo – uma falha de fiscalização do estado que não acompanhou a empresa que venceu a licitação. Além disso, entendeu-se que a atuação da terceirizada é limitada diante de presos que se autogovernam. Ora, é de conhecimento geral a existência de um estado paralelo nos presídios e isso não é algo novo. Na prática, não há, dentro de nossos sistema carcerário, o monopólio da coerção por parte do estado, como deveria. As normas que regulam a vida do cidadão encarcerado são bem distintas daquelas que regem a vida do cidadão livre.

Discute-se agora até a mirabolante ideia de dividir os presos por facção, o que não está previsto na Lei de Execuções Penais e do que não se pode prever os resultados concretos. Anuncia-se a presença permanente (até passar alguns meses, claro) da Polícia Militar e a vinda para Manaus da Força Nacional de Segurança para colaborar na segurança dos presídios. O que aconteceu na cidade no primórdio de 2017, muito embora priorizemos o papel das facções criminosas, é, na verdade, culpa de uma política que o mundo gradualmente percebe ter sido um grande fracasso: a Guerra às Drogas.

Durante o ano de 2016, o Secretário de Segurança Pública Sérgio Fontes priorizou o combate ao tráfico de drogas, defendendo que este impulsiona os demais crimes. Por trás do bem intencionado discurso de combate às drogas, no entanto, o que vemos globalmente difundido há quase 50 anos são números assombrosos. Mortes crescentes, população carcerária em ascensão e a marginalização dos seus usuários são as principais consequências diretas dessa política equivocada.

Em Manaus, por exemplo, a “pena de morte” do tráfico ocorre todos os dias. A própria SSP-AM (Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas) estimou em 2016 que 70% dos homicídios em Manaus tinham relação com o tráfico de entorpecentes. Manaus é reconhecidamente uma das cidades mais violentas do país. O índice de homicídios cresceu bastante nos últimos dez anos por arma de fogo. Em 2015, uma ONG mexicana estimou que a capital do Amazonas seria a 23ª cidade mais violenta do mundo e, grande parte disso decorre de uma guerra que o estado perdeu. Assim, vidas continuam sendo destruídas, como consequência de uma política cada vez mais vista como um fracasso.

A falência múltipla dos órgãos públicos, aliados à combinação nefasta do Estatuto do Desarmamento com a Guerra às Drogas têm se mostrado cada vez mais cruel à população brasileira. Enquanto a proibição das drogas estimula o surgimento de narcotraficantes perigosos, priva-se assim também o cidadão comum de estar armado para se defender.

A cada tonelada de drogas detectada e incinerada pela polícia, passam-se outras dezenas e centenas de toneladas despercebidas pela fiscalização. O que talvez mais cause agonia naqueles que reconhecem o fracasso da política da Guerra às Drogas é o fato de o Estado do Amazonas ser vizinho de Colômbia e Peru, assim como é próximo da Bolívia. Estes países são reconhecidos internacionalmente como grandes produtores de drogas. Em decorrência de nossa própria geografia e de nossa precária infraestrutura, a fiscalização do que se transporta é praticamente inexistente. Toda vez que ficamos sabendo de estimativas do transporte, por exemplo, de madeira ilegal no Amazonas, também podemos ter noção da quantidade de droga que é transportada pela região e passa despercebida pelas autoridades competentes à fiscalização.

Enquanto evitamos “Carandiru 2”, estamos perpetrando uma verdadeira guerra civil – não só em Manaus, mas em todo o país – por causa de um vício privado. Tudo por conta de um crime que – a priori – não tem vítima. A ironia é que, por meio do estado, fazemos as vítimas gradativamente, todos os dias.

Fazemos as vítimas quando a única perspectiva que uma pessoa vê na vida é se tornar traficante de drogas, porque esta atividade tem status em seu meio. Há incentivos sociais para que se ingresse na função de aviãozinho ou mula do tráfico, até ascender na hierarquia do crime organizado.

Fazemos vítimas também quando aqueles que nada tem a ver com o tráfico são vítimas de bala perdida em conflitos entre polícia e facções criminosas. Estas são só consequências de um problema maior, que pode ser modificado pelos meios institucionais. Peguemos como exemplo o Art. 33. da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006): “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: (…)”.

No nosso caso, o que caracteriza a licitude de determinada substância é uma determinação regulamentação, de natureza infralegal, dependendo de ato do Secretário da Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde para ser modificada. Trata-se da Portaria 344/1998 da ANVISA. Seria possível, então, excluir determinadas substâncias do rol de “proibidas” por ato normativo infralegal da autoridade competente.

Ademais, também fazemos vítimas no próprio ato de comércio de drogas como ocorre atualmente. Em uma relação de consumo normal, há todas as garantias ao consumidor, e no caso de inadimplência deste, há os mecanismos institucionais necessários de cobrança, inscrição em lista de inadimplentes, lembrando não haver prisão civil por dívida no Brasil, exceto em caso de questões alimentícias. No comércio ilícito de entorpecentes, é de conhecimento geral o que acontece com aquele usuário que fica devendo ao traficante…

A Guerra às Drogas teve como precursora o Proibicionismo, que consistiu na proibição do consumo de bebidas alcoólicas nos EUA, que foi um fracasso e fez ascender figuras como Al Capone. A atual Guerra às Drogas, foi “declarada” em 1973 por Richard Nixon que até então só serviu para dar poder e reconhecimento a figuras como Pablo Escobar. Nesse contexto, a história também nos provou que o Plano Colômbia não deu muito certo.

Ademais, é válido ressaltar que a Guerra às Drogas coloca milhares de pessoas em um caminho sem volta. A persecução penal por um dos verbos naquele texto normativo mencionado acima acarreta à pessoa o fechamento de várias portas, de várias oportunidades em sua vida. Quem contratará alguém processado por tráfico de drogas? Estando a porta da vida lícita fechada, abre-se a janela para a vida irregular ou ilegal. Condena-se então a pessoa ou à informalidade ou a continuar subindo na hierarquia do tráfico, tornando-se alguém mais violento e de maior periculosidade para a sociedade.

O Supremo Tribunal Federal poderá decidir em breve sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal – Art. 28 da Lei 11.343/2006. Seria um avanço. Porém, o mais adequado em nosso entender seria se a resolução desta questão ocorresse na esfera legislativa, se não tivéssemos que dar à Suprema Corte tantas oportunidades de modificar a legislação por omissão da atividade parlamentar. A questão das drogas precisa ser rediscutida de maneira urgente caso queiramos cessar a matança e o encarceramento em massa nos locais mais afetados pela Guerra às Drogas. Não estamos defendendo o uso de Direito Alternativo como forma de se opor à Guerra às Drogas.  Porém, a discussão sobre o tema é urgente.

Mesmo nos EUA, o país com maior número de presos do mundo, grande parte das prisões tem ligação com as drogas. Considerando que o Brasil é o quarto país com mais encarcerados no mundo, como podemos ser um “país livre” com tantas pessoas privadas de sua liberdade por uma razão que se demonstra cada vez mais superada? Como que o nosso “estado-providência” poderá exercer o mínimo das funções que nos promete se executa tantos gastos “enxugando gelo”?

Vemos as empresas concorrendo por prestar seu serviço da maneira que mais satisfaça o consumidor, que passe a melhor imagem e mensagem ao consumidor, para melhor satisfazê-lo e financia a atividade empresarial. Mas no caso do tráfico de drogas, é certo que o consumidor também financia a atividade (todos lembram de Capitão Nascimento falando sobre isso no filme Tropa de Elite).

Porém, é o estado que faz do terror e do medo condições de existência para o exercício da atividade do comércio ilegal de drogas, trazendo a este mundo pessoas violentas, que entraram para o mundo do tráfico. Com isso, a guerra entre facções criminosas não visa satisfazer o consumidor, e sim mostrar ao estado que este é impotente em relação a elas. A Máfia italiana cresceu para demonstrar a fraqueza do estado perante ela. A lógica é a mesma. Quanto ao consumidor, como já mencionado anteriormente, não há por parte do traficante a mesma preocupação que há de uma empresa que exerce atividades atualmente lícitas. Há o que já sabemos que ocorre, sobretudo com o consumidor inadimplente.

Na guerra do tráfico, não há uma luta essencialmente pela maximização de riqueza. Esta também ocorre, evidentemente. Mas nunca poderá excluir a luta pela maximização de poder e pelo reconhecimento, como já descrevia Hegel desde o século XIX. Pessoas que não conseguem encontrar identidade, sentido para suas vidas também acabam se unindo ao tráfico, até pelo vazio existencial que lhes aflige na vida contemporânea. Há não só a vontade de auferir vantagens pecuniárias com o tráfico, mas de obter status, “respeito” (por medo, obviamente) e reconhecimento.

O tráfico ocasiona uma má alocação da inteligência humana. Emprega-se um alto grau de criatividade para se burlar a lei antidrogas, e estas mesmas pessoas, que possuem este grau de criatividade, poderiam alocar este seu recurso em atividades que melhorassem os indicadores do Brasil no que tange à inovação, por exemplo. Não é mais momento para conspirar que o consumo de drogas seria uma tática comunista para entorpecer o Ocidente.

Para especificar mais a questão, embarcamos na Guerra às Drogas com a Lei 6368/1976, editada durante um governo autoritário que priorizava os “interesses nacionais” em detrimento das liberdades individuais. Período este, também, que os Estados Unidos estavam influenciados pela política externa – realpolitik – de Henry Kissinger. Época em que parecia correto afirmar que enfrentávamos um trade-off entre “anos de chumbo ou rios de sangue”. Mas só parecia. Seja de direita ou de esquerda, quando as botas do governo pisam em sua garganta tal classificação não faz mais diferença.

Ao adentrar na barca furada da Guerra às Drogas, e após termos atualizado a Lei de Drogas com a Lei 11.343/06, continuamos adotando uma política que vem se demonstrando contraditória com nosso modelo de estado – o “Estado Democrático de Direito”, tão mal interpretado a ponto de ignorarmos os seus postulados no que tange aos direitos e garantias individuais. O que vemos, na realidade, é um estado que continua se intrometendo nas esferas pessoais em nome de uma suposta questão de saúde. Ocorre que, infelizmente, a Guerra às Drogas é fruto não de uma preocupação de saúde, mas sim uma espécie de cruzada moralista contra grupos socialmente vulneráveis em determinadas épocas e locais – tais como os mexicanos que habitavam os EUA e os negros brasileiros quando a política de proibição havia sido implementada [1].

Ainda que a real intenção fosse a questão da saúde pública, vemos que a consequência da política da Guerra às Drogas não corresponde ao que se almeja. Afinal, no desejo de atender ao interesse nacional – entre os quais a velha e conhecida “segurança nacional” -, em detrimento de liberdades individuais, acabamos ficando sem um nem outro. Os fatos nos remetem, afinal, a Benjamin Franklin, que nos ensinava que “aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança“. Se merecem ou não, não se sabe ao certo, mas que não a obtiveram é certeza no caso das drogas ilícitas.

No intuito de combater o comunismo, adquirimos o pacote completo daquela política externa norte-americana, inclusive a laranja podre da Guerra às Drogas. Esta é muito recente na história da humanidade. A antropologia nos mostra que o ser humano sempre tendeu ao uso de drogas, e muito dificilmente deixará de usá-las nos próximos séculos ou milênios. O proibicionismo de álcool se aproxima dos cem anos, e fracassou, tendo como solução a revogação da proibição, que quebrou os gângsters que se beneficiavam de tal arranjo institucional. Afinal, para competir com o poder coercitivo do estado e consequentemente realizar o comércio de drogas, é necessário que as facções criminosas se armem a ponto de criarem um exército paralelo, e, como resultado, um estado paralelo. A Guerra às Drogas, voltada àquelas substâncias que se convencionou chamar de entorpecentes, se aproxima dos cinquenta, e falta saber quando o estado irá declarar sua rendição e negociar os termos com a sociedade, principal vítima desta política fracassada.

Assim como não defendemos o Direito Alternativo acima, também não defendemos, por óbvio, a maximização da função sancionadora do estado. Seria antiliberal optar por isso. Seria antiliberal tolher nossas liberdades em decorrência de momentos efêmeros de pânico e medo. Thomas Hobbes já teorizava que um dos maiores temores do homem era o medo da morte violenta. O massacre do Compaj certamente intensificou este medo na população por um momento efêmero – afinal, já estamos acostumados com um elevado índice de homicídios e sabemos que, infelizmente, poderá ocorrer a qualquer momento com qualquer um de nós. Não obstante, não é desculpa para tirar a coleirinha do Leviatã para que este saia mordendo inocentes por aí. Não é, muito menos, justificativa para negar a responsabilização civil do estado para com as famílias dos encarcerados decapitados no massacre. Precisamos ter prudência em um momento destes e debater a real raiz do problema.

Os traficantes, diferentemente do que alguns podem pensar, não são crias do capitalismo, mas do estatismo. Sem a política estatista de proibição às drogas, os traficantes não precisariam existir e ser violentos a níveis equiparados ao estado para exercer suas atividades. Se dependesse do “capitalismo” (entre aspas porque o conceito possui seus vícios), estariam no lugar dos traficantes comerciantes de drogas dispostos a realizar trocas voluntárias por meios pacíficos – pois afinal, este passaria a ser reconhecido pelo estado. A descriminalização das drogas ilícitas, ou de algumas delas, seria tão somente reconhecer a licitude de um mercado que já existe e a legalização (notem bem, pois são termos distintos) teria como finalidade regular este comércio. Por fim, como já foi dito e reiteramos, a antropologia e a biologia nos demonstram que dificilmente esse mercado deixará de existir tão cedo.

Como se trata de uma atividade ilícita, é difícil apontar dados precisos, mas estimativas mostram que, há cerca de três anos, o Brasil era o segundo maior mercado de cocaína e correspondia a 20% do mercado de crack do mundo. Isso não é causado apenas porque a população brasileira é composta por duzentos milhões de pessoas, nem porque supostamente seríamos um povo entregue aos vícios. A população é importante, mas negar o fato de a proximidade geográfica do Brasil com os maiores produtores de cocaína e crack – afinal, este é produzido com o descarte da cocaína – ter influência no indicador é deixar de enxergar a questão sob as nossas circunstâncias. Ainda mais se levarmos em consideração o Amazonas, cujo povo foi a grande vítima da Guerra as Drogas durante a semana que se passou.

Quais drogas que devemos descriminalizar (ou legalizar) merece um debate mais aprofundado. Portugal, por exemplo, que descriminalizou o consumo de drogas, teve bons avanços em um intervalo de 14 anos na redução da violência relacionada às drogas e no tratamento de dependentes. É uma realidade um pouco distante da nossa, mas é uma referência. O Uruguai, que legalizou a maconha, não sofreu com aumento de consumo, e as mortes relacionadas ao tráfico chegaram a zero. Diante da experiência global, independemente de quais drogas foram descriminalizadas ou da maneira que foi feita, o que podemos concluir é que o Brasil está no caminho errado, com uma política equivocada e deve adotar uma nova direção.

Bernard de Mandeville, em sua Fábula das Abelhas, mostrou-nos que vícios privados poderiam nos trazer benefícios públicos. Pode não ser a comparação mais apropriada para o momento. Afinal, os vícios de que tratava eram os da inveja, ganância, vaidade, entre outros, e não o vício em drogas em específico. Porém, na tentativa de suprimir os comportamentos viciosos das pessoas no que tange às drogas, o estado não só contraria algo que a Antropologia demonstra ser praticamente corolário da existência humana – que é o consumo de drogas – como também cria um estado de coisas muito pior do que havia antes da proibição. É, certamente, momento de pensar em alternativas à Guerra às Drogas. É hora, mais do que nunca, que trazer de volta ao estado o monopólio de sua força coercitiva a partir de um ordenamento jurídico mais sensato com as demandas sociais mais urgentes. Caso contrário, continuaremos perpetrando uma crise de ilegitimidade com uma guerra que já foi perdida e na qual o estado reluta em se declarar derrotado.

[1] Pereira, Jessé Leonel. A ineficácia da Lei de Drogas / Jessé Leonel Pereira. 2015 (Trabalho de Conclusão de Curso)

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