Como o empreendedorismo popular combate a pobreza na Guatemala

Sou brasileiro e estudo economia na Universidade de São Paulo, mas passei o último mês vivendo em uma das regiões mais pobres da Cidade da Guatemala. Lá, me surpreendi com o cenário da economia informal, que se repete em diversos vizinhos da América Central. São milhões de pessoas que trabalham em empresas não-reconhecidas pelo governo. Sua dimensão é assustadoramente grande e se reflete nos principais dados econômicos sobre a América Central.

As empresas informais se integram intensamente ao modo de vida e ao cotidiano locais, especialmente nos bairros mais pobres. Os bairros mais ricos, por sua vez, possuem as mesmas lojas e redes de fast food encontradas em qualquer metrópole, comandadas por grandes empresários que conseguem arcar com o custo de manter um empreendimento regular no país.

As ruas guatemaltecas, em especial nos bairros mais densos e pobres, são marcadas pela presença impressionante de pequenos estabelecimentos – entre tiendas, tortillerias, farmácias, “pacas” (venda de roupas usadas) entre outras, das mais variadas vendas para distintas necessidades. No bairro onde fiquei, os negócios são familiares e localizados num quarto das casas que fique virado para a rua. Quando falo sobre empreendedorismo, não me refiro a food trucks ou um ponto comercial no shopping. São empreendimentos rudimentares, informais, incontroláveis constituições de pontos comerciais por pessoas comuns, sem capital significativo ou cursos de gestão.

A proliferação do comércio informal certamente é um sintoma do alto nível de pobreza no país, mas esconde uma face interessante: a vitalidade empreendedora da população, que ajuda a amenizar os efeitos danosos da pobreza. Desde meados dos anos 90, quando houve o fim da Guerra Civil na Guatemala e algumas reformas de abertura econômica, o país cresce em ritmo consistente e superior a diversos vizinhos do sul, como o Brasil.

Ainda que permaneça sufocada por um nível chocante de corrupção (o país ocupa o 123^o lugar no ranking da Transparência Internacional; o Brasil, que certamente não é um bom exemplo, ocupa a 76^a posição), a sociedade guatemalteca vem dando demonstrações significativas de rejeição à classe política, que certamente não contribui para um real desenvolvimento do país. Esta rejeição chegou a um auge histórico nas últimas eleições à Presidência, vencidas por um comediante sem experiência política, que concorreu principalmente em protesto contra os outros candidatos do estabilishment partidário, envolvidos em casos passados de corrupção.

As empresas não-reconhecidas pelo governo causam grandes problemas para a arrecadação dos governos na América Central. A economia informal centro-americana é responsável por cerca de 60,8% dos empregos. Quase metade do PIB da América Central é gerado por empresas do setor informal e esse padrão se repete na Guatemala.

Por outro lado, vale refletir se é justo que o governo abocanhe uma fatia maior da renda das pequenas empresas informais. Essa reflexão ganha ainda mais força quando lembramos do Brasil, onde um poder político corrupto – embora menos corrupto do que o guatemalteco, acreditem se quiser – domina um Estado que se agiganta sobre 46% da renda dos brasileiros (quando incluímos o déficit). Apesar de termos um dos governos mais pesados do mundo, como proporção do PIB, a qualidade dos serviços ofertados nem precisa ser comentada, dado que o leitor conhece muito bem.

Sendo assim, será que devemos pensar nas empresas informais da Guatemala apenas pensando nos impostos que elas dariam para o governo se estivessem regularizadas?

A maior parte dos novos negócios na Guatemala se origina de forma autônoma, sem registros oficiais ou profissionalização. Criminalizar estas empresas levaria ao fim dos meios de subsistência, desenvolvimento e riqueza de cerca de 12,3 milhões de famílias centro-americanas – entre tantas que sofrem com a repressão ao comércio “desregrado” ao redor do mundo. Os empregados do setor informal incluem 72,7% dos setores sociais sem educação formal e 63,6% dos que não possuem primeiro nível educacional incompleto. Mesmo dentre os que possuem um diploma universitário, 19% estão no setor informal.

São pequenos empresários que, embora raramente se intitulem de tal forma, estão fomentando um mecanismo virtuoso de autonomia econômica que rompe com os círculos viciosos de pobreza e dependência tão comuns na América Latina. Perdem os governantes, que sofrem mais para privatizar as instituições públicas quando a população possui mais renda.

Ter o próprio negócio se estabelece como uma forma de fugir da rota circular. A miséria se reproduz com instituições fechadas, mas estas são desafiadas por um grande contingente de pequenos empreendedores não-reconhecidos. Assim, problemas como a pobreza, baixa escolaridade formal e falta de oportunidades são de certa forma combatidos pela própria população, que tem seus esforços mitigados por instituições capturadas e corrompidas.

O rompimento com a pobreza crônica se dá de distintas formas, e em muitas delas os comércios locais são fortes catalisadores da mudança. Ao ter um meio de subsistência autônomo, o pequeno empresário deixa de necessitar de ajudas de curto prazo e de favores de terceiros. Ao fazê-lo com sucesso, empodera toda sua família, que agora passa a não prescindir de entes externos para sua educação, saúde ou nutrição. Isto abre possibilidade para que indivíduos vejam no próprio trabalho um caminho viável e sustentável para melhorar suas condições de vida.

Os comércios locais estimulam a atividade econômica em toda a população ao redor, dado que geram renda e empregos no seio das próprias comunidades – aumentando a distribuição de renda local e revertendo riqueza de comércio para comércio nas regiões, favorecendo aos poucos uns aos outros.

É possível perceber os efeitos disso ao se comparar as diferenças entre zonais pobres e as mais pobres do pais – em geral mais afastadas da capital, como os estados de Huehuetenango e Alta Verapaz, onde o poder aquisitivo é menor e não há os empregados no emergente setor de serviços (em especial telemarketing). Em zonas não-urbanas, os bairros são mais pobres e os comércios mais fracos – algo que se repete na vizinha El Salvador.

Os meios de se fugir da pobreza são menos presentes, pois não existem tanta oferta de bons salários, e a questão passa a ser mais subsistir do que se desenvolver. Essas regiões da Guatemala são também marcadas por uma presença forte de anúncios políticos e igrejas evangélicas. Isto também se observa dentro das próprias comunidades – as aldeias mais pobres tem menos comércio, e as ruas com mais comércio em geral apresentam casas mais bem acabadas e maior quantidade de construções.

Nestes estabelecimentos, a confiança da vida em comunidade permite compras “a fiado” ou mesmo a troca de itens, prática muito comum. Ao conhecer outros moradores da região – e por vezes ter conexões pessoais com muitos deles – o vendedor, ao lucrar e ofertar, também preenche distintas demandas, fornecendo produtos de acordo com as necessidades locais, com uma flexibilidade que dificilmente seria igualada por uma empresa grande e impessoal. Isto fomenta uma rede de apoio local, entre moradores e comerciantes, diminuindo a dependência dos moradores.

Em países onde os sistemas de preços (e, por conseqüência, as regras implícitas nas transações de compra e venda) foram destruídos – como Venezuela bolivariana ou na antiga União Soviética – é vital a disseminação e diversificação de uma rede comercial informal para o bem-estar e segurança nutricional da população. Neste sentido, as tiendas guatemaltecas agem no aumento da oferta local, prescindindo do uso de transporte (caótico no pais, diga-se de passagem) para adquirir materiais básicos, bem como aumentando a concorrência e pressionando preços para baixo.

Sobretudo nas periferias de grandes concentrações urbanas como a Cidade da Guatemala, onde se encontram as mais altas taxas de criminalidade locais, isto aumenta, parafraseando Jane Jacobs, os “olhos nas ruas”. Com maior circulação de compradores, e presença de vendedores interessados em proteger seus estoques, aumenta também a segurança na região como um todo.

Sob outra ótica, o comércio local também se torna ponto de encontro e convívio em comunidades, algo importantíssimo para o estreitamento de laços e o fortalecimento do capital humano na região, algo imprescindível para melhorar os níveis de empregabilidade e atratividade econômica dessas populações, como apontado por diferentes especialistas. Como analisou Francis Fukuyama em A Grande Ruptura, um maior convívio comunitário parece reduzir os níveis de deterioração social e aumentar a confiança entre as populações.

Uma outra faceta que me surpreendeu nas comunidades pobres da Região Metropolitana da capital guatemalteca foi a propagação de escolas particulares. Em um país de escolas públicas de péssima qualidade – com a maior parte das crianças na terceira série analfabetas – a popularidade dos liceos e academias cobrando preços populares é um indicador importante da preocupação da população com os níveis educacionais de seus filhos – algo indispensável para reverter a relativamente alta porcentagem de crianças e adolescentes fora da escola, com apenas 79% das crianças concluindo o ciclo básico (UNESCO) prática ainda aceita e vista como normal em algumas comunidades, como constatado pelo autor.

Além disso, as redes educacionais privadas são importante fonte de renda e emprego regionais, sendo outro contribuinte para a autonomia econômica destas populações hoje mais fragilizadas. Complementarmente, também me deparei com escolas de informática, inglês e tecnologia da informação mesmo em bastiões mais rurais, como Aldea el Carmen – indicando um caminho mais concreto para dilatar o acesso às oportunidades hoje existentes na Guatemala, bem como potencializá-las, já que refletem em maior capital humano regional.

As ruas de pueblos como os de Santa Catalina Pinula, Escuintla, Villa Canales e tantas outras são mais fascinantes quanto mais diversificado e rico é seu comércio. Por ele se analisa um modo de vida, o cotidiano, a realidade da população local. Na Guatemala de hoje, esta realidade significa trabalho duro e contínuo – mas também a constituição de um mecanismo incrível que rompe com os tradicionais cadeados do populismo.

Este texto só foi possível com a contribuição de dezenas de moradores da Guatemala e de El Salvador, por meio de seus depoimentos cotidianos – e seus mercados, obviamente.