Por Victor Lacerda

Desde o final do ano passado a Ucrânia vem sendo assolada por uma onda de protestos e pela desordem civil. No dia 21 de novembro de 2013 ocorreram as primeiras manifestações em Kiev, a capital ucraniana. O que levou essas pessoas a saírem de suas casas? O anúncio de que o governo ucraniano, personalizado no presidente Viktor Yanukovich, suspendera as negociações de acordos de livre-comércio e de associação com a União Europeia, preferindo estreitar relações com a Rússia, país que tradicionalmente manteve a Ucrânia em sua esfera de influência ao longo dos anos.

As manifestações tornaram-se sangrentas com a intensificação da repressão policial e logo ganharam mais força. Estima-se que no começo de dezembro do ano passado uma manifestação em Kiev chegou a contar com o apoio de quase oitocentas mil pessoas. Após prolongada resistência e combates contra a Berkut (polícia especial ucraniana que atirou contra manifestantes, caracterizada por seu uniforme azul), que deixaram cerca de 104 mortos e centenas de feridos, o presidente Yanukovich foi deposto e iniciaram-se os preparativos para re-organizar e estabilizar a situação política no país, que teria eleições em maio deste ano.

No entanto, quando as coisas pareciam dar sinais de normalidade, uma notícia pegou todos de surpresa: homens armados e em uniformes militares tomaram de assalto o Parlamento da Crimeia em Simferopol, capital da província autônoma, no dia 27 de fevereiro, e estenderam uma bandeira russa no topo do prédio. Nenhum dos soldados portava qualquer insígnia de identificação, mas uma coisa os uniu e impulsionou seus atos: o sentimento pró-Rússia.

Península da Crimeia, uma história conturbada

A origem dos conflitos entre a Rússia e a Crimeia tem data muito anterior à da conhecida Guerra da Crimeia (1853-1856) e começa na segunda metade do século XV, com o controle dos tártaros de parte do atual território russo e sua subsequente retirada à península. Já no século XVI, o Grão-Ducado de Moscou e o Canato da Crimeia figuraram num conflito pelo controle de uma região do Rio Volga. O exército tártaro invadiu o território russo e chegou até mesmo a incendiar a capital russa. A situação na região só piorou: durante dois séculos, tártaros e russos se engalfinharam em incursões militares até a anexação da Crimeia pelo Império Russo em 1783, época em que foi fundada a Frota do Mar Negro, abrigada na base de Sebastopol.

Entre 1853 e 1856, a Crimeia foi palco de uma nova guerra que envolveu a Rússia contra a França, a Inglaterra e a Turquia. De um lado, o czar Nicolau I desejava aumentar a influência russa no Mar Negro e conquistar os estreitos de Bósforos e Dardanelos, além de Constantinopla, e do outro, a França (principal vetor para o início da guerra) desejava quebrar a Santa Aliança, compostapa por Rússia, Áustria e Prússia. A guerra terminou com a derrota da Rússia e cerca de quinhentos mil mortos.

Em 1921 a Crimeia tornou-se parte da União Soviética e foi um dos teatros mais sangrentos da Segunda Guerra Mundial. Em 1945 o ditador comunista Joseph Stalin acusou os tártaros de terem colaborado com as forças nazistas e os deportou para a ásia central. Estima-se que cerca de 46% dos deportados morreram de fome ou por doenças. Gregos, búlgaros e armenos também foram deportados e acelerou-se o processo conhecido como “russificação” da Crimeia, que até hoje deixa suas marcas: em pesquisa de maio de 2013, constatou-se que 59% da população local se declarava etnicamente russa, 20% ucraniana, 15% tártara e 6% de outros.

Para marcar o aniversário de trezentos anos da incorporação da Ucrânia ao Império Russo, em 1954, Nikita Kruscshev transferiu o Oblasto da Crimeia da República Soviética Russa para a República Soviética Ucraniana. À época, o gesto foi meramente simbólico e não representou uma grande diferença administrativa. No entanto, com a queda da União Soviética, a histórica base naval russa em Sebastopol passou para território ucraniano independente. A solução? Em 1997 foi assinado um tratado entre as duas nações que garantia a existência intacta da frota em mãos russas, que conta com a presença de quinze mil funcionários, em sua maioria integrantes das forças armadas, em solo ucraniano.

A compreensão do pano-de-fundo histórico que une a Rússia à Crimeia é vital para uma análise das motivações de Putin em anexar a região. Em um post recente aqui no Mercado Popular discutiu-se que obras constituem o embasamento teórico do presidente russo. O expansionismo russo ligado a um sentimento nacionalista é algo que permeia a história da Rússia, e não só em relação a Crimeia. O próprio Secretário de Estado americano, John Kerry, disse que a Rússia “está se comportando como se fosse o século XIX”.

A invasão prossegue

Desde a tomada do parlamento por manifestantes e homens armados pró-Rússia, diversos incidentes tem marcado a Crimeia. Soldados portando armamento russo, uniformes russos, equipamento russo, dirigindo veículos russos e defendendo interesses nacionais russos (porém sem insígnias de identificação) cercaram bases militares ucranianas; estabeleceram pontos de controle ao longo das estradas e ferrovias; atacaram jornalistas internacionais; afundaram o navio russo Ochakov na Baía de Donuzlav para impedir o acesso de navios ucranianos ao Mar negro; reformaram a polícia Berkut, que havia passado por um processo de dissolução em razão de seu comportamento extremamente agressivo (Vídeo em que um jornalista americano e um cinegrafista britânico são atacados pela Berkut ao tentarem passar por um checkpoint russo); fomentaram a criação de milícias locais compostas por russos étnicos e contaram até mesmo com a ajuda de Chetniks para “manter a ordem e assegurar a proteção dos residentes russos na península”.

Esses soldados não-identificados praticaram um curioso método de provocação: ao pularem os muros de uma base militar ucraniana, ameaçaram atirar e avançaram em direção aos soldados ucranianos que guardavam a base. No entanto, os ucranianos não cederam à provocação e não reagiram. Os soldados não-identificados fizeram o oficial encarregado da base de refém e negociaram uma trégua. Ao saírem, ilesos, da base, o que fizeram? Espancaram jornalistas que presenciavam a cena. Passado o incidente, o oficial que foi feito de refém assertou, sobre o comentário de Putin de que não havia presença de soldados russos na Crimeia: “uma mentira total – esses soldados são da República Federativa da Rússia”. E qual foi o propósito de tão curiosa invasão “pacífica” de tais soldados aparentemente russos? Tentar forçar uma agressão por parte dos ucranianos e escalar ainda mais o conflito, usando tal prerrogativa para alegar uma pretensa legítima defesa.

A Crimeia foi invadida em plena luz do dia e nada pôde fazer contra seu agressor não-assumido. Como lidar com uma invasão que, apesar de não contar com uma declaração formal conseguiu ser plenamente vitoriosa em seus desígnios materiais? A chegada dos soldados não-identificados coincidiu orquestralmente com o pedido do recém-empossado ministro de relações exteriores da Crimeia, de membros do Parlamento da Crimeia pedindo com urgência a “estabilização” da região por Putin e uma autorização parlamentar para uso de força estrangeira na região. O primeiro movimento desse concerto foi concluído perfeitamente: a Crimeia foi tomada de fato, mas ainda faltava um elemento para dar vestes oficiais à anexação.

Segundo movimento: a roupagem do Direito

Nada mais justo do que perguntar aos cidadãos, justamente aqueles que serão mais afetados pela mudança de soberania qual o rumo a ser tomado, certo? Para legitimar suas ações, um referendo foi realizado no dia 16 de março para decidir o não-tão-incerto futuro da Crimeia.

A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, organização internacional defensora dos direitos humanos, liberdade de imprensa, controle de armas e justiça eleitoral emitiu parecer no sentido de que o referendo seria inconstitucional e recusou-se a atuar como supervisora das eleições. O artigo terceiro da Constituição da Ucrânia estabelece que mudanças territoriais só podem ser aprovadas via um referendo acessível à toda população ucraniana, e não somente os que moram na área a ser afetada. Não obstante, o Parlamento da Crimeia foi em frente com seu plano inicial de restringir a área de votação e argumentou, junto com a Rússia, que há possibilidade de proclamação de independência sob o direito de auto-determinação, consagrado na carta da ONU. A Organização das Nações Unidas chamou uma votação para condenar a realização do referendo, operação frustrada pelo poder de veto exercido pelo Estado russo. A China absteve-se.

Diante do quadro crítico, um dos líderes da população tártara clamou por um boicote ao referendo por ter um “resultado predeterminado”. Importante salientar que muitos tártaros estão deixando suas casas por medo de que a população local russa, inflamada pelo nacionalismo, tente eliminá-los e promover uma limpeza étnica.

Mas, antes de falarmos das inúmeras infrações cometidas  que poderiam comprometer a idoneidade da votação, um apontamento curioso: não havia opção para manter o statu quo. Isso mesmo, os ucranianos não podiam votar para que as coisas permanecessem do jeito que estavam. Ou eles votavam pela integração imediata à Rússia ou escolhiam voltar ao regime jurídico da antiga Constituição da Crimeia, que garantia independência e o poder político para que a península fosse posteriormente ligada à federação russa.

No decorrer das votações, a mídia internacional relatou a existência de diversos incidentes eleitorais que violam qualquer preceito de eleições justas. Várias crianças foram flagradas votando; a CNN gravou um homem colocando dois papéis em uma urna; agentes eleitorais carregaram urnas para a casa de cidadãos pró-Rússia, para que votassem de lá mesmo; o papel-modelo da votação tinha uma grande marcação em vermelho na opção de integração imediata à Federação Russa; etc. Os erros e transgressões deliberadas no processo eleitoral sem dúvida deveriam comprometer a validade do referendo, mas com um impressionante resultado de 97% dos votos, o resultado foi de anexação imediata à Rússia. O Parlamento crimeano aprovou o resultado e Putin já reconheceu a independência da Crimeia em relação à Ucrânia e prepara-se para transformar uma ocupação de facto em uma ocupação de jure.

E qual foi um dos primeiros feitos do governo independente da Crimeia? Anunciar a nacionalização de empresas de gás de nacionalidade ucraniana.

Terceiro movimento: o que está por vir

O concerto ainda não acabou. Um terceiro movimento ainda está para ser executado e nós seremos sua plateia. Diante da ocupação da Crimeia, a Ucrânia agora teme a perda de seus territórios ao leste. Historicamente russos, a maioria dos votos que apoiaram Yanukovitch (que apesar de deposto ainda declara ser o presidente legítimo) vieram desses territórios. A comunidade internacional condena os atos da Rússia, que tinha como Estados apoiadores, até o dia 14 de março, a Coreia do Norte e a Síria. Não, não é brincadeira.

Os próximos dias irão confirmar ou frustrar as expectativas de muitos. O futuro da Ucrânia permanece obscuro para nós que podemos apenas observar à distância o desenvolvimento da diplomacia no leste europeu. Os Estados Unidos e a União Europeia anunciaram sanções contra particulares russos e ucranianos – que riram da situação. O Ocidente não parece estar disposto a criar um conflito militar pela Ucrânia e insiste em sanções econômicas de menor porte. Putin mostra-se irresoluto em sua campanha de financiar e incitar nacionalismo em antigos territórios da União Soviética. Age ativamente financiando forças ufanistas violentas para que tomem controle da região e vilipendia a soberania de um Estado para aglutinar territórios como se estivesse numa partida de War: tudo isso sem dar um tiro sequer. Nessa contenda entre Leste e Oeste, que já é a maior desde o fim da Guerra Fria, Putin parece sair de cabeça erguida e o Ocidente, desmoralizado.

O que pode ter motivado a invasão da Crimeia?

É difícil especular com exatidão o que levou Moscou a agir energicamente na Crimeia, mas alguns motivos podem ser apontados. Não cuido aqui de dar uma explicação exaustiva ou de pretender dar certeza quanto à natureza da intervenção russa, mas tão somente mostrar alguns dados para que o leitor possa ter uma visão aérea da conjuntura política e econômica da Rússia e ponderar sobre as razões para a ocupação.

A questão da União Euroasiática

Em 2010 foi criada a união aduaneira da Rússia-Bielorússia-Cazaquistão. O acordo prevê a instauração de uma zona de livre comércio com uma tarifa externa comum e além dos benefícios econômicos, serve também para aumentar a integração cultural e política entre seus Estados-membros. Em um importante discurso proferido em julho de 2012 em que o presidente Vladimir Putin discutiu as diretrizes oficiais da política externa russa, foi dito que a Rússia “lamenta muito que a fraternal Ucrânia não tenha se juntado a este processo de integração” e apontou que “as mais independentes e objetivas análises feitas por experts mostram que a Ucrânia iria indiscutivelmente beneficiar-se ao fazer parte da união, assim como todos os outros países que compõem a união aduaneira”.

Em 2010 o presidente deposto ucraniano Viktor Yanukovich afirmou que a Ucrânia poderia juntar-se à União aduaneira no futuro, mas que a Constituição da Ucrânia não permitia tal integração e que o departamento jurídico do governo estava buscando mecanismos legais para aumentar a cooperação com a Rússia sem criar conflitos com as outras obrigações legais, incluindo o Acordo de Associação com a União Europeia, que estava sendo negociado mas que foi suspenso (e ocasionou os protestos que varreram a Ucrânia). Na época das discussões, o líder da oposição Arseniy Yatsenyuk (atual Ministro de Assuntos Domésticos do governo provisório ucraniano) comentou que “A entrada da Ucrânia na União aduaneira significa a restauração da União Soviética em uma forma ligeiramente diferente e sob outro nome. Mas que isso assinalaria que o país iria novamente fazer parte do Império Russo”. Do outro lado do espectro político, o Partido Comunista Ucraniano era favorável à junção da Ucrânia à União aduaneira.

Está claro que Putin almeja a integração das antigas repúblicas soviéticas e que a deposição de Yanukovich foi um golpe fatal às suas ambições. A oposição é claramente a favor da candidatura da Ucrânia à União Europeia e tem a esperança de sair da órbita de Moscou. A União aduaneira é o primeiro passo para o estabelecimento da União Euroasiática, uma organização supranacional aos moldes da União Europeia, mas envolvendo apenas países da antiga União Soviética como o Quirguistão, Tajiquistão, Bielorússia, Geórgia etc. O eurasianismo é uma corrente de pensamento russa que tem hoje Aleksandr Dugin como seu maior teórico. Dugin foi um dos idealizadores do Partido Nacional-Bolchevista, do Fronte Bolchevique Nacional e do partido Euroasiático. Apesar das dissidências entre os grupos, todos tem um forte sentimento anti-ocidente, anti-capitalismo e anti-liberalismo. Aleksandr Dugin, atualmente filiado ao Partido Euroasiático, é uma espécie de Rasputin moderno: não tem qualquer poder direto, mas exerce influência nas pessoas certas. Vladimir Putin disse certa vez que “o povo russo diz que aqueles que não lamentam o colapso da União Sovíetica não tem coração, e aqueles que o lamentam não tem cérebro. Nós não lamentamos tal queda, nós simplesmente assertamos que precisamos olhar para frente, não para trás. Não deixaremos o passado nos arrastar para baixo e nos impedir de avançar”.

Mais do que uma reconfiguração da União Soviética, Putin parece procurar algo novo. Uma maior identificação com a Ásia e o abandono da cultura europeia. Seria o neo-eurasianismo a força propulsora dos atuais acontecimentos? Se a resposta for positiva, o conflito na Crimeia é muito maior do que um conflito contra a Ucrânia e toma a forma de uma agressão contra o mundo ocidental como um todo.

E agora, José? Intervenção ou isolacionismo?

Finalizo o artigo com um questionamento: qual o posicionamento de vocês, enquanto liberais, sobre a perspectiva de uma possível intervenção militar? Concordam com Ron Paul quando ele estabelece o total isolacionismo como única opção a ser perseguida ou não concebem que a Rússia possa realizar tal manobra e não sofrer qualquer consequência?

 

Victor Lacerda é estudante na Faculdade de Direito do Recife/UFPE.

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