O texto abaixo foi extraído do livro “Pare de Acreditar no Governo!” de Bruno Garschagen, com a devida autorização do autor. Para ter o livro completo em sua estante (ou no seu e-reader, caso o leitor seja um moderninho incorrigível), basta escolher uma das opções listadas aqui ou ir à livraria mais próxima da sua casa.
A chegada ao território foi registrada pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, que lavrou a certidão de nascimento do Brasil. O docu‐ mento histórico inaugurou em prosa aquilo que posteriormente seria identificado como uma unívoca relação do brasileiro com a política, com o poder político e com os políticos, e destes com a sociedade brasileira, um vínculo sobretudo de interesse, paterna‐ lismo, dependência, servidão, troca de favores antes mesmo de haver país, brasileiros nativos, capitalismo de laços, empresários amigos, partidos políticos, os fundos de pensão e o BNDES.
A necessidade de agradar o governante para obter algum favor, benesse ou privilégio, e a sua concordância em fazê‐lo em troca de vassalagem estão expostas exemplarmente no nosso registro de nascimento. Antes Caminha tivesse terminado a missiva com uma receita do pastel de Belém, de fofos de Belas ou de biscoitos de Bucelas.
Mesmo sem ter sido oficialmente escolhido para relatar a via‐ gem para o rei de Portugal, D. Manuel, Caminha descreveu a terra recém‐descoberta e o que lá fez parte da tripulação ao desembarcar e ter contato com os índios, que se aproximaram devidamente “pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. Séculos depois, a prática das vergonhas descobertas seria batizada de naturismo.
Sendo Caminha um beneficiário direto de uma benesse estatal, pois herdara do pai, Vasco Fernandes de Caminha, o cargo de mestre de balança da moeda da cidade do Porto, tinha na função uma boa fonte de renda ao deter poderes exclusivos de cobrar pelos serviços de pesagem obrigatória.
Privilégios políticos costumam gravar no espírito de todo e qualquer beneficiário a marca do servidor sempre fiel ao detentor do poder. Se for para garantir uma sinecura, alguma vantagem para si e para os seus, não há que medir esforços para agradar, bajular e atender pedidos e ordens, não importa de quem, nem de como venha. E talvez não seja uma coincidência o fato de o sobre‐ nome Caminha significar, segundo um desses sites nada confiáveis dedicados a pais curiosos e pouco criativos, “jovem criada”.
A relação peculiar entre quem detém o poder político e quem busca favores pressupõe a célebre expressão de certa polícia militar carioca: “Quem quer rir tem que fazer rir.” Não é sem fundamento, portanto, que Caminha encerre assim a sua des‐ critiva (e pedinte) missiva: “E pois que, Senhor, é certo que assi neste cargo que levo como em outro qualquer outra cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza ha de ser de mim mui bem servido, a ella peço que por me fazer singular mercê mande vir da ilha de São Thomé Jorge d’Osouro, meu genro, o que della receberei em muita mercê”.5
Caminha ratificou habilmente a dedicação ao rei mencionando a sua função de escrivão e aproveitou para cavar para si próprio um futuro cargo, o que chamaríamos hoje de uma boquinha, além de pedir um favor singular, excêntrico, familiar: que o rei permitisse o retorno a Portugal do seu genro Jorge d’Osouro, que, condenado por roubar pão, vinho e galinhas de uma igreja, e de ferir um clérigo, fora degredado para a ilha de São Tomé. Tudo indica que o rei atendeu o pedido, mas não se sabe se d’Osouro voltou para o Porto ou morreu.
O pedido de Caminha, o verdadeiro motivo para a elaboração da carta na qual a narrativa do descobrimento foi um mero pre‐ texto, inaugurou a nossa excêntrica característica cultural de pedir favores ao governo para conseguir cargos e privilégios, especial‐ mente em se tratando de parentes.
Dizia eu que Caminha herdara do pai o cargo de mestre de balança da cidade do Porto, do qual se afastou para embarcar rumo ao território que hoje conhecemos como Brasil. Sua história é a história de portugueses daquela época e a de brasileiros de épocas posteriores.
A nomeação de Caminha para o cargo de mestre de balança da moeda permite entender um hábito que, adotado na colônia e desen‐ volvido ao longo da história, tornou‐se parte da cultura brasileira, como o samba, o futebol, políticos suscetíveis à venda de seus prés‐ timos e empresários dispostos a comprá‐los em troca de benesses.
A concessão dos ofícios (tabelião, escrivão, mestre de balança) e de outros privilégios (cartórios, monopólios comerciais, adminis‐ tração de alfândega) em Portugal (a metrópole) era de responsa‐ bilidade do rei, das câmaras e dos conselhos. No Brasil e na Índia, concedê‐los, vendê‐los ou arrendá‐los eram atos de competência do rei, do governador‐geral, do governador de capitania (pertencente à coroa portuguesa ou hereditária) e das câmaras municipais.
As benesses eram distribuídas a quem tivesse sido útil ao rei. Como o próprio Caminha, que, assim como tantos outros, foi beneficiado “em troca de graça, favor, serviço do rei, que podia ser re‐ munerado pelo próprio ofício, cuja paga estava nos emolumentos e contratos de dízimos, alfândegas e monopólios, entre muitas formas de privilégios privatizados, ou pela concessão de mercês, títulos de nobreza, geralmente acompanhados de tenças e moradias”. Era o início da parceria público‐privada que hoje provoca frêmitos nos decotes de certos políticos e determinados empresários.
Os custos com a concessão desses benefícios eram “de tal monta que, num levantamento de 1607, os gastos do reino nessa rubrica chegavam a 190 contos. Para efeito de comparação, no mesmo ano, o Estado português, vinculado ao rei da Espanha, mas com admi‐ nistração própria, teve 167 contos de receita advinda do império Atlântico (ilhas, Brasil, África Ocidental)”.8
É a velha história (bom, nem tão velha) das consequências desse tipo de incentivo para os beneficiados e para a grande maioria não beneficiada. Se os cargos cobiçados e um sortilégio de regalias es‐ tavam à disposição dos políticos para serem concedidos de forma a atender interesses circunstanciais, não era de causar espanto o fato de parte da sociedade se aproximar de quem pudesse fazê‐lo a fim de obter vantagens e oferecer algo em troca. Qualquer seme‐ lhança com a contemporânea orientação do governo brasileiro para conceder empréstimos subsidiados para empresas seletivamente escolhidas é mera coincidência.
O resultado dessa relação é o estímulo para os privilegiados preservarem e restringirem para si mesmos esse sistema de bar‐ ganha e o desestímulo de parte dos desprivilegiados para fazer algo diferente do que se associar ao poder político em busca de algum privilégio.
Lapidou‐se no Brasil um sistema desenvolvido em Portugal cuja prova é o exemplo pessoal de Pero Vaz Caminha e o conteúdo da sua carta. A economia das mercês, um modelo no qual o Estado distribuía privilégios e concessões a partir de acordos pactuados entre o rei, o poder local e os seus súditos, é a versão medieval do capitalismo de compadrio, capitalismo de Estado ou capitalismo de laços, que teve aqui uma terra fértil e gentil, pátria amada, Brasil.
Já perdi a conta de quantas vezes ouvi histórias pouco edifican tes sobre a necessidade de prestar submissão voluntária a pessoas investidas em determinado cargo ou função no governo para obter algum ganho, um contrato, uma licitação, uma promoção, uma transferência.
E se o detentor do poder político for um familiar, tanto me lhor. É possível construir uma carreira meteórica com ganhos volumosos, diria até mesmo pornográficos. À guisa de exemplo meramente hipotético, é plenamente possível ser escolhido de sembargador de um tribunal federal se seu pai for ministro do Supremo Tribunal Federal (tanto melhor se sua mãe for desem bargadora), ou dormir como (não com) monitor de zoológico e acordar sócio de uma grande empresa de telefonia. Neste caso, é preciso ser filho do presidente da República. Isto, obviamente, jamais aconteceu no Brasil.