Até pouco tempo atrás eu residia em uma parte afastada da minha cidade e, por causa disso, sempre demorava muito para chegar em casa. O caminho era longo e quase antes de chegar em meu destino eu precisava pegar uma rotatória para mudar de pista. Nesta mesma rotatória havia vultos de garotas assustadoramente altas, e um exame mais atento permitiria dizer que eram travestis e mulheres trans que se prostituíam por lá.
Como a cena se repetiu diversas vezes durante o período em que morei por ali, com algum tempo eu parei de prestar tanta atenção. Certa noite, no entanto, cheguei em casa, fiz o que sempre faço, e na hora de dormir peguei um livro do economista indiano Amartya Sen, chamado Desenvolvimento como Liberdade.
Naquele livro, Sen explicava o porquê do desenvolvimento ser tão importante, especialmente para os mais necessitados. Segundo sua tese, um governo não repressor, aliado a um clima de tolerância e paz entre as pessoas, era fundamental para o desenvolvimento. Mas não somente isso: a possibilidade das pessoas trabalharem era também importante; geração de emprego e renda eram igualmente fundamentais.
Para embasar sua tese, Sen citou um episódio ocorrido em sua infância. O economista conheceu um rapaz de uma minoria étnica na Índia, que fazia pequenos bicos em seu bairro para sobreviver. Esta minoria era odiada pela maioria indiana e o rapaz conseguia míseros trocados para sustentar sua família crescente; o motivo pelo qual ele fazia esses pequenos trabalhos era porque sua minoria era proibida de trabalhar formalmente naquela época. Portanto, não lhe restava muito a não ser se contentar com a miséria e tentar sobreviver.
Uma tarde, este rapaz adentrou a casa de Sen ensangüentado, pois um grupo de indianos do bairro lhe atacara por ser de uma minoria. A família do autor lhe levou ao hospital, na tentativa de salvar sua vida, mas ele não resistiu e veio a falecer. Em seu livro, Sen diz que se o governo não fosse tão repressor e não interferisse na vida destas pessoas, proibindo-lhes de trabalhar, o rapaz talvez não tivesse que se arriscar todos os dias, trabalhando em um bairro indiano nobre e arraigado de ódio contra seu povo. Talvez, ele especula, o rapaz tivesse conseguido viver por muitos anos.
Quando terminei de ler esta passagem, lembrei-me imediatamente das garotas da rotatória. Se o nosso preconceito fosse menor, e o estado estivesse mais disposto a simplesmente reconhecer travestis e transexuais como sujeitos de direitos, talvez elas pudessem ter um trabalho que não lhes deixassem tão expostas à violência e degradação. Quantas daquelas moças não gostariam de trabalhar como professoras, médicas, advogadas ou engenheiras? Quantas tiveram a chance de conquistar essas metas? E o mais importante: quantas realmente receberam apoio da família, dos amigos ou do estado para assumirem quem são e viverem normalmente?
Eu aposto que nenhuma delas. Nossa sociedade ainda é arraigada de preconceitos e objetifica o corpo de travestis e transexuais como algo exótico, sexualizado e que não tem mais nenhuma utilidade além do sexo considerado profano e do escárnio.
Avançando um pouco mais no tempo, agora em uma fila de espera em um consultório, eu estava lendo O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek. A leitura era gostosa, fácil e proveitosa: Hayek destacava, assim como Sen, a importância dos mercados livres para concretizar a plena independência dos indivíduos.
Logo me veio à mente a figura das mulheres que passaram pela minha vida: fortes, empreendedoras, não dependiam de homens para satisfazer suas necessidades e caprichos materiais. Desde a funcionária doméstica que cuidou da minha casa quando eu era criança – e que sustentava os filhos sozinha, com a venda da sua força de trabalho; até as minhas professoras de faculdade – que podiam bancar uma viagem de férias bem bacana e uma festa de casamento com direito a bateria de escola de samba; todas elas me encheram de um orgulho silencioso e confirmaram a tese do economista austríaco.
No entanto, o orgulho se tornou tristeza ao me lembrar de um caso em que trabalhei em um programa de estágio. Mariana havia casado jovem com um militar e eles tiveram filhos, e muitas brigas. As brigas foram ficando piores até o ponto em que ela começou a apanhar dele e desenvolveu uma cardiopatia devido à violência das agressões. Mariana tentou sair de casa, pois tinha como se sustentar, já que trabalhava como cozinheira em uma banquinha de feira. Dizia ela que no período de meio dia até três da tarde ela não conseguia parar de trabalhar, pois sua comida era muito boa e requisitada pelos feirantes, e que ganhava dinheiro suficiente para sustentar a si e aos filhos sem ajuda de mais ninguém.
Só que o ex-marido agressor lhe sabotou e conseguiu fazer que ela perdesse a barraca na feira. Desempregada, sem ter como se sustentar, Mariana vivia de doações e corria o risco de ser despejada a qualquer momento, já que não conseguia pagar o aluguel do quartinho em que residia. Ela me disse que havia procurado emprego em outros lugares, mas, por ser uma mulher bonita, os patrões a assediavam. Antes de encaminhar o caso dela para o setor competente, ela me disse: “Tudo que eu não quero nessa vida é mendigar”.
Nunca mais vi Mariana. Mas sei que se não houvesse uma cultura de assédio tão forte contra as mulheres, talvez ela pudesse voltar a trabalhar para um patrão. Ou se o estado não impusesse tantas barreiras para se ter uma banquinha na feira (como, por exemplo, um cadastro com documentação, uma licença de funcionamento, a inspeção da vigilância sanitária e mais o aluguel do espaço), haveria uma chance maior dela trabalhar por si só e conseguir se reestruturar financeira e pessoalmente. Se o mercado fosse mais livre, em suma.
Então, quando alguém lhe disser que os mercados são importantes, não pense em corporações e empresas multinacionais. Pense nas minorias: elas são as que mais precisam de um mercado livre e de um estado menos opressor.