A quarta-feira da semana passada foi um dia fértil para o movimento estudantil. Esse texto será um pouco longo, mas pretende explicar o motivo.
A Faculdade de Direito do Recife, mais tradicional instituição de ensino superior do país, realizou eleições para o seu Diretório Acadêmico, disputa sempre intensa e movimentada. Três grupos concorreram ao pleito. Exatamente o número de motivos que me trouxeram alegria com o resultado. O Grupo Contestação, mais antigo entre todos e ligado à UJS – o braço estudantil do PCdoB que comanda a UNE há mais de 25 anos – amargou a terceira posição pela primeira vez em sua história. O Ateneu Pernambucano, grupo surgido há apenas três eleições, apresentou amadurecimento em comparação aos anos anteriores e dá sinais de que em breve pode vir a, finalmente, superar a crise existencial (e fusionista) que o mantém em relação ambígua com as ideias de liberdade (não se engane: o conservadorismo é oposto ao liberalismo). Por último, mas talvez o mais importante, a feliz vitória do Movimento Zoada, que superou há algum tempo o aparelhamento petista e tem consolidado uma identidade firme, constante e extremamente meritória no combate às opressões. Adianto: é essa última frase a razão pela qual escrevo esse texto.
Não é de hoje que este Mercado Popular defende a necessidade de um aprofundamento das ideias liberais no combate a todas as formas de opressão. Os colegas Carlos Góes e Valdenor Júnior já escreveram importantes propostas para o futuro do movimento liberal e a necessidade de fazer uma opção preferencial pelos mais pobres através de um liberalismo progressista, inclusivo, libertador e humanitário. Eu mesmo já propus aqui a formulação de um princípio da não opressão, semelhante ao princípio da não agressão (que sistematiza a defesa da liberdade no âmbito da força física – ou das vias formais do estado), só que no âmbito da construção de uma sociedade aberta. Em palestra para o grupo Frei Caneca, do EPL, também problematizei essa questão sob o prisma da liberdade de expressão.
Todo esse esforço elencado tem duas raízes. A primeira é o fato de que a melhor tradição das ideias de liberdade – de Smith a Popper, de Mill a Hayek, de Caneca a Nabuco – se preocupa verdadeira e profundamente com a liberdade das pessoas, e o combate a opressões, apesar do termo ser relativamente recente se comparado ao liberalismo, está intimamente ligado à liberdade das pessoas. A segunda é que o movimento liberal contemporâneo tem sido extremamente ineficiente no trato da questão – em parte, pela ausência de uma continuidade apropriada na evolução do estudo e do ativismo em defesa das liberdades civis e sociais sob uma perspectiva liberal; em parte, por condições históricas contextuais que, malogradamente, empestaram o movimento “liberal” – para remeter ao amigo Erick Vasconcellos – de reacionarismo e pensamento conservador.
Essa condição histórica – é válido ressaltar – não deve ser encarada como um imperativo de vergonha.
“O liberalismo é uma doutrina viva, atual, relevante e revolucionária. Vale muito à pena defendê-lo, mais ainda assumir o seu legado, sua história e suas vitórias” (Respeite quem pode chegar onde a gente chegou)
Mas o liberalismo é também uma filosofia de humildade. É, portanto, reconhecendo esse contexto de demandas e dificuldades que os liberais precisam revogar as barreiras alfandegárias do discurso. Temos muito a aprender com estudos e pensadores de epistemologias diferentes. Para isso ser possível, precisamos de um esforço de alteridade para superar conflitos de linguagem, compreender verdadeiramente os conceitos trabalhados e, então – só então -, tentar enriquecer a reflexão com as contribuições da perspectiva liberal.
É por isso que tomei a liberdade de tentar estabelecer um diálogo franco com a perspectiva apresentada pelo Movimento Zoada a respeito do combate às opressões. Perspectiva essa que – acredito – mescla tons de anarquismo e marxismo. A seguir apresentarei um texto do grupo e, depois, tentando compreendê-lo, tecerei alguns comentários.
Separar por completo a pauta do combate às opressões da luta de classes pode nos levar a uma leitura imprecisa. A luta do combate às opressões verdadeiramente libertária busca findar todas as condutas que, baseadas em conceitos hegemônicos, transformem diferenças em desigualdades. Diante disso, buscamos encampar essa luta conscientes de que a opressão atinge cada pessoa de maneira diferente. Neste sentido, resta evidente a inquestionável necessidade de não criarmos hierarquia entre feminismo e outras lutas, combate à lgbtfobia e outras lutas, combate ao racismo e outras lutas, como muito nos é atribuído; mas de percebermos que, antes de mais nada, essas lutas estão intrinsecamente relacionadas e, portanto, o combate a elas também deve se dar em conjunto. Do contrário, estaríamos lutando somente por privilégios, lutando pela manutenção de uma ordem que sabemos ser tão importante para as forças conservadoras.
Dessa forma, não há como disassociar o machismo, o racismo e a lgbtfobia do classismo. É inegável, por exemplo, o quanto as mulheres negras sofrem desde a fetichização de seus corpos até a descriminação de religiões de matizes africanas, como recentemente evidenciado dentro da própria FDR. São elas que compõem majoritariamente a mão de obra doméstica, são esquecidas em jornadas equiparadas ao trabalho escravo e muitas vezes assediadas sexualmente, além de agredidas por seus companheiros.
Muito próximo. Um dos aspectos mais gritantes sofridos por elas e por todas as mulheres de baixa renda diz respeito à criminalização do aborto. Pois são essas mulheres as que mais sofrem pelo tratamento errado da questão, uma vez que não é tratada como questão de saúde e autonomia de corpos. É clamado o poder punitivo. São submetidas às condições mais cruéis e subumanas possíveis, deixando sequelas físicas e emocionais, e muitas vezes matando-as. Assim, onde se encontra, então, algum traço de liberdade em condenar tantas mulheres ao destino fatal, negando a elas a disposição do próprio corpo frente à coerção estatal?
Ser negro não é um adjetivo. Minha cor não está à minha disposição. Eu não posso usá-la quando eu quero, não posso retirá-la quando eu quero. Ela está em mim, ela faz parte da minha história, da minha luta. Dizer-lhe adjetivo é dizer que eu posso reivindicar ou apenas esquecer que sou negro. Não: a minha cor está quando gritam “lá vem o negrinho!”. A minha cor está quando me olham quando eu entro em algum espaço público. Ou quando me negam um trabalho por causa do meu cabelo. Ser negro, em si, é ser uma célula revolucionária. É apontar para o capitalismo e dizer: eu não devo ser objetificado! Eu não devo ser condenado para fazer com que o seu sistema funcione. Não é à toa que a prisão tem uma cor. Não é à toa que a prisão é totalmente negra. A prisão existe e ela funciona. Ela funciona pra retirar da sociedade aquelas pessoas que incomodam. Essas pessoas têm cor, têm classe. Não esqueçamos de interseccionalizar as opressões. Elas existem para uma só finalidade: manter as pessoas brancas, heterossexuais e cisgêneras no poder. Digamos não e não esqueçamos: somos sujeitos da história, temos que lutar e trazer legitimidade à nossa cor, à nossa subjetividade. Digamos não à mortificação da subjetividade negra.
A lgbtfobia não é somente uma agressão à nossa liberdade sexual ou de gênero. É principalmente um mecanismo de controle, que mortifica as nossas subjetividades diariamente. Para combatê-la, é preciso inicialmente que compreendamos que não somente homens, gays, cisgêneros e brancos protagonizam essa pauta. Ela é uma pauta pela diversidade e pela erradicação da invisibilização de lésbicas, travestis, transsexuais não binárias, crossdressers, intergêneros e todas as possibilidades.
Buscamos romper com padrões comportamentais que nos são impostos e, diante disso, faz-se inevitável o combate à lógica individualista alimentada pelo capitalismo. Essa lógica não emancipa verdadeiramente oprimidos e oprimidas. Ela nos dá a falsa impressão de aceitação através da ascenção social pelo capital, ou seja, pelo consumo. Ou através da invisibilização de quem somos, nos enquadrando em padrões socialmente “aceitos”. Essa defesa liberal da comunidade LGBT esconde a perversidade intrínseca a esse modelo social, no qual justifica-se pela meritocracia cis-hétero-normativa um verdadeiro massacre de milhares em prol da tolerância estéril a poucos. Poucos, homens. Poucos, que se enquadram no comportamento que não é o que queremos enquanto comunidade. As bichas passivas e pintosas, as travestis, as transexuais, as lésbicas masculinizadas não são aceitas por esse modelo. E é por isso que precisamos romper urgentemente com esse modelo de comportamento. Esse modelo que nos enquadra em padrões de homens e de mulheres que não nos representa. Precisamos nos unir e fazer uma revolução verdadeira no campo sexual e no campo do gênero.
Considero esse texto brilhante, pois expõe com uma clareza imagética os problemas sociais que pretende abordar: ao lê-lo, visualizamos com cores e nuances as infelicidades cotidianas que acometem a tantas vidas.
Dois pontos particularmente me emocionam: a defesa da subjetividade única, pessoal, individual, intransferível; e a compreensão da ligação estrutural entre as diversas formas de opressão. Eu arrisco dizer que os dois pontos se fundem, de tão importantes: a estrutura da opressão é justamente a negação da individualidade, a negação da condição de sujeito.
Como escrevi em outra oportunidade:
A negação da condição de sujeito ocorre quando sua possibilidade de agir ou sua complexidade identitária são negadas sem a voluntariedade do sujeito em questão, gerando uma objetificação da pessoa.
Essa objetificação não voluntária, quando concretizada com efeitos relevantes, reflete uma relação na qual há uma incongruência de poderes tão violenta que agride o princípio fundamental da igualdade de condição humana. Nas palavras do Zoada, é quando ocorre “a transformação de diferenças em desigualdades”. Como diz nosso Manifesto:
A verdadeira liberdade é uma crença na dignidade humana, de que todo indivíduo tem o direito inalienável de escolher seu próprio destino.
A objetificação não voluntária – é fácil perceber – dificulta que as pessoas escolham o seu próprio destino. Parece uma obviedade, mas é válido colocar: essa objetificação é um fenômeno social, ocorre na sociedade, é uma construção – mesmo que por vezes (ou quase sempre) se reproduza de maneira inconsciente. Isso quer dizer que a opressão não se trata de um dado da natureza, e que ela é realizada por alguém, um sujeito. No âmbito de uma relação, a objetificação com efeitos relevantes é realizada pelo sujeito que possui maior concentração de poder. É importante notar as sutilezas: as relações são complexas e as relações de poder não são necessariamente estáveis, de modo que um sujeito pode estar desfavorecido em um momento e favorecido em outro – as posições são flúidas.
Por se tratar de uma relação, também é importante notar que uma ação – inclusive de objetificação – só se concretiza quando recebida. Em outras palavras, trata-se de um fenômeno interativo, não absoluto e não essencialista. A objetificação não depende apenas de um sujeito, mas da relação estabelecida. É por isso que o antídoto mais recorrentemente evocado da opressão é o empoderamento: porque o aumento do poder de um pólo desfavorecido numa relação é capaz de neutralizar esse desfavorecimento, equilibrar as forças e cessar os efeitos de uma opressão.
Falamos até agora de aplicações da opressão em contextos micro, específicos. Mas a ideia de que a objetificação é um fenômeno social também repercute num âmbito macro, na necessidade de contextualização de cada relação no âmbito da sociedade e das suas diferentes redes de interação. Contextos importam porque o modo com que os indivíduos se sentem e se identificam também se relaciona com os contextos em que eles se inserem. Cada relação se situa de uma maneira. Há aspectos identitários que possuem desfavorecimentos estruturalmente diferenciados, porque contextualmente mais relevantes. É fácil perceber essa questão no âmbito do racismo: é possível que uma pessoa branca seja discriminada em algum determinado contexto – e essa é uma opressão terrível, que deve ser condenada; mas, na sociedade, a discriminação sofrida por pessoas negras é incomparavelmente mais relevante, porque é estrutural, evoca acúmulos históricos muito mais disseminados e muito mais sentidos.
Como sustentar a ideia de luta de classes diante das nuances?
Quando colocamos que o entendimento das condições estruturais da sociedade são fundamentais para o combate às opressões fica mais fácil compreendermos o significado atribuído pelo Movimento Zoada à luta de classes. Creio que o termo se refere à ocupação estrutural dos pólos de poder entre aqueles que desfrutam de privilégio e aqueles que possuem um desfavorecimento de poderes. Ainda assim, acho que a utilização dessa expressão entoa um sentido de inércia às classes e dificulta a compreensão do caráter flúido e multifacetado das relações humanas. Como dissemos, cada individualidade é intransferível e a expressão da identidade é múltipla e em constante transformação, de modo que cada sujeito se situa num lugar ao mesmo tempo exclusivo e dinâmico. Na prática, sob diferentes perspectivas, um sujeito pode estar ao mesmo tempo num pólo de privilégio e num pólo de desfavorecimento. Para ficar em exemplos simples, é o caso do homossexual branco, do negro homem, da travesti rica, da maconheira deputada. Como manter a eficiência da imagem de luta de classes diante dessas nuances?
Por outro lado, parece claro a existência de um padrão majoritário na elite. Como diz o Zoada, são “as pessoas brancas, heterossexuais e cisgêneras”. Mas poderíamos acrescentar outras classificações. Eu diria que a mais importante dentre as ausentes é a das pessoas próximas ao poder incomparável do estado. Aquelas que se utilizam do punho de ferro atrás da mão invisível, como diz Kevin Carson. Ao longo da história, o estado tem sido a principal ferramenta de disseminação da opressão e de controle e cerceamento das subjetividades. É o estado que criminaliza o aborto. É o estado que proíbe o casamento gay. Foi o estado que impôs a escravidão negra – e que continua até hoje impondo o cárcere. É o estado que criminaliza os camelôs e que faz com que pedaços de papéis valham mais do que a vida. É o estado que expropria as riquezas dos pobres para nutrir o insustentável capitalismo de compadrio.
Existe uma diferença conceitual relevante entre luta de classes e classismo. A luta de classes é a aposição binarista entre oprimidos e opressores. Classismo é a discriminação baseada em classes sociais, uma forma de coletivismo das mais terríveis, que marginaliza os pobres e despossuídos. Por vezes, essa marginalização ocorre com a classificação pejorativa do acesso ao consumo pelas classes mais pobres. Nesse ponto, creio que precisamos ouvir o Preto Zezé, presidente da Central Única das Favelas:
temos uma autonomeada ‘esquerda’ que vulgariza o acesso das camadas mais pobres ao universo do consumo. Para esses críticos, trata-se de alienação e paternalismo dominador. Não enxergam, por exemplo, utilidade do smartphone na mão do habitante da comunidade.
Se por um lado é importante estar vigilante quanto à possibilidade de fetichização de produtos, fenômeno no qual as subjetividades são reduzidas a marcas e apetrechos que se sobrepõem às individualidades, por outro lado não podemos demonizar o consumo e esquecer de sua necessidade. Comer é consumir. Vestir é consumir. Maquear é consumir. Fotografar é consumir. Viajar é consumir. Tudo isso também pode ser expressão de subjetividade. Geralmente não abrimos mão do consumo para nós mesmos, então por que desdenhar da roupa do favelado ou da sua TV de última geração, reduzindo-as a amuletos da alienação?
Creio que a defesa costumeira da meritocracia se constitui como uma expressão cristalina do classismo: é a ideia de que a atual configuração social se baseia – ou pelo menos pode se basear – no mérito. A conclusão óbvia seria que os pobres são os culpados da própria pobreza e que sua ausência de posses é proporcional à ausência de méritos. O problema dessa ideia está na capacidade de avaliar méritos, especialmente quando os pontos de partida são tão estruturalmente desiguais como em nossa sociedade.
Creio que a palavra individualismo evoca a uma tendência de impor sobre os demais condições que lhe são únicas. É a distorcida visão de que a sociedade inteira é um espelho de si mesmo, como se a única realidade existente fosse a do sujeito em questão. É uma incapacidade de perceber o outro e de praticar alteridade. Essa é exatamente a raiz da meritocracia acima problematizada. Justamente por isso é que propomos a defesa do pós-individualismo:
evidenciando o valor das influências culturais que recaem por sobre os sujeitos, para além do indivíduo. Um pós-individualismo que identifique as ideias da liberdade não com os interesses mesquinhos e auto-centrados (que muitas vezes levam ao corporativismo), mas com o clássico valor da simpatia, de Adam Smith, na defesa do Outro, da alteridade, do diferente. Um pós-individualismo que evoque Nabuco e afirme categoricamente que o amor à própria liberdade só é possível através do amor à liberdade alheia.
E é justamente por amor à liberdade alheia que defendo a continuidade desse diálogo aqui iniciado. É por amor à liberdade alheia que agradeço ao Movimento Zoada por sua existência, o parabenizo pela vitória e desejo uma sincera abertura ao encontro de perspectivas. É por amor à liberdade alheia que espero que o movimento liberal amadureça a urgente reflexão sobre opressões – e também a participação nas ações diretas de empoderamento dos sujeitos. É por isso que quarta-feira foi um dia fértil: por conta do amor à liberdade alheia.