Por Leonel Caraciki

 

Com o crescimento das idéias liberais e libertárias no Brasil é normal que tenhamos embates intelectuais entre seus membros e correntes. No libertarianismo americano, tais contendas são recorrentes: temos o caso de Tom Palmer criticando a aproximação de Hans-Hermann Hoppe com movimentos de supremacistas brancos [1], a crítica de Lew Rockwell a David Boaz, afirmando que Boaz não é um libertário de verdade ao apoiar medidas intervencionistas e elogiar o governo Clinton [2] ou um recente duelo entre Robert Wenzel e Steven Horwitz, com o primeiro criticando o segundo por distorcer a teoria austríaca [3].

Estes são os grandes debates, empreendidos pelos ícones do movimento libertário. É razoavelmente seguro dizer que no “subterrâneo” do movimento libertário os debates são muitos e certamente muito menos elegantes e educados do que entre membros do Mises Institute e do Cato. Em redes sociais e blogs, é frequente que as discussões recaiam para acusações pessoais, memes e meios discutíveis de expôr argumentos.

Recentemente o Mercado Popular traduziu e republicou o texto “O feminismo de Ludwig von Mises” de autoria de Jeffrey Tucker e Cathy Reisenwitz [4]. Originalmente publicado no site da Foundation for Economic Education [5], o curto trabalho tem como objetivo encontrar paralelos do pensamento de Mises com o feminismo, como bem explica seu título. Todavia, mesmo tendo um tema relativamente interessante, o texto foi extremamente criticado por setores conservadores ligados ao movimento libertário. No burburinho das redes sociais, não foram poucos os posts dizendo que o texto era uma distorção do pensamento de Mises para agradar os socialistas/marxistas culturais/petralhas ou outras denominações.

Até que no dia 22 de janeiro de 2014, uma das páginas que ultimamente se dedicam a fazer “shaming libertário”, ou em termos mais tupiniquins “fofoca, intriga e treta”, postou um curto intitulado “A Leitura Seletiva dos Left-Libs” [6]. Iremos lidar com a questão da seguinte forma: primeiramente, revendo as credenciais intelectuais dos autores originais do texto; segundo: iremos confrontar as críticas sobre o texto original de Mises para verificar se elas se sustentam; ao fim, algumas reflexões sobre a dificuldade do libertarianismo em relação a questão das minorias.

 

I – Jeffrey Tucker, marxista extraordinaire

Pouco após a postagem, perguntei aos autores se eles tinham visto o nome dos autores do texto. Afinal, são bem conhecidos. O primeiro, Jeffrey Tucker, é conhecido dos libertários brasileiros, presente em conferências do Instituto Mises Brasil e tem diversos de seus artigos na página do IMB [7].

jefftucker.fwExemplo de “marxismo cultural”? 

Duvido bastante que o Sr. Tucker tenha acordado um dia para demonstrar “como o liberalismo apoia as pautas de movimento (sic) sociais de esquerda”. Ninguém razoável afirmaria tal absurdo. Assim como nem acho que emprestaria seu nome para um texto falacioso [8]. Passemos para a co-autora. Cathy Reisenwitz, por sua vez, é um pouco menos conhecida. Procurei o nome no Google e encontrei seu site, “Sex and the State”, no qual ela se descreve como uma “libertária anarco-capitalista feminista sexualmente positiva”. Já escreveu pra Forbes, Chicago Tribune e Reason Magazine, dentre outras publicações [9]. Três de seus artigos foram publicados no Center for a Stateless Society, um site identificado com o libertarianismo de esquerda. Seus temas obviamente são o feminismo e o libertarianismo. Uma citação sua deixa bem clara a sua posição

A liberdade requer que ambos os lados do espectro [político] se tornem mais consistentes. Eu adoraria ver o dia em que a direita deixe de apoiar o uso da força governamental para limitar escolhas reprodutivas. E eu ansiosamente espero por um dia em que a esquerda afirme a liberdade reprodutiva, sexual e pessoal através de meios cooperativos e não coercitivos [10].

A posição é a clássica ideia de liberdade: não cabe ao Estado definir como o indivíduo dispõe de seus meios, seja as faculdades intelectuais, sua propriedade privada e nesse caso, o corpo e sua sexualidade. A condenação dos dois lados do espectro político me remete ao clássico texto de Karl Hess,  militante anarcocapitalista americano, que dizia que “tanto a esquerda quanto a direita são reacionárias e autoritárias. Ambas visam apenas revisar seus métodos de adquirir e se valer do poder” [11].

Reisenwitz, ao lembrar que nenhum dos lados do status quo estatista tem uma solução plausível para uma questão intrinsecamente individual, simplesmente coloca em evidência como o argumento libertário é coerente com os discursos das “minorias”. No mais, sua filiação ao ideario feminista é bem específica. Tal movimento “feminismo sexualmente positivo” tem um sólido ramo adepto do libertarianismo que é abertamente contra o Estado por sua promoção de leis que frequentemente limitam a sexualidade feminina [12]. Na defesa das liberdades individuais, citam Hayek e Friedman e em um de seus jornais mensais, lê-se o título “O Capitalismo é Amigo das Mulheres”. Se isso é alguma forma de “marxismo vulgar”, estou cego pois não consigo identificar. Cathy mostra posições perfeitamente razoáveis que se coadunam com uma filosofia política que preza pela propriedade privada e pelas trocas voluntárias: em um debate se universidades religiosas deveriam banir práticas como a distribuição gratuita de preservativos e outros métodos de contracepção em seus campii, ela é categórica em dizer que por ser propriedade privada, sim, a universidade pode banir a prática [13].

Todavia, avançando uma perspectiva mais sofisticada, diz que obviamente a medida viola a liberdade pessoal dos estudantes pois retira de seu leque de opções diversos métodos importantes de prevenção de doenças e de expressar sua vida sexual. Isso expressa de maneira cristalina as diferenças entre o feminismo libertário e as vertentes não-liberais: a expressão livre da sexualidade é uma prerrogativa individual, porém o respeito aos espaços privados é fundamental para a manutenção do arranjo social.

Obviamente para a canaille do conservadorismo vulgar, qualquer mudança é incômoda. A liberdade individual toca em assuntos que incomodam a mente reacionária como o aborto, a homossexualidade e qualquer comportamento percebido como “desviante”. O problema é que esquecem que tais atos são completamente voluntários. Em uma sociedade libertária não haveria nada que impedisse uma mulher de abortar, a não ser a consciência individual de um médico que se negasse a levar o procedimento a cabo ou qualquer outro prestador de serviço que por algum motivo não quisesse prestá-lo.

A mesma coisa se aplica à questão LGBT. Se um libertário por questões morais ou religiosas é contra homossexuais, ele pode expressar suas opiniões pessoais, mas nunca de maneira a agredir alguém e muito menos visando privar homossexuais do direito pleno à liberdade. Caso seja o casamento, por exemplo, não faz muito sentido que adultos que podem conscientemente assinar um contrato voluntário não possam fazê-lo por causa de sua orientação sexual. Uma das bandeiras mais virtuosas do liberalismo clássico é a questão da igualdade jurídica, destruindo um dos pilares do Antigo Regime que era a sociedade organizada em estamentos. Não tem porque darmos um passo para trás [14]. Em suma: se Cathy Reinsewitz é “de esquerda”, boa parte dos libertários também são. Pelo fato da jornalista ser vocal em um assunto tradicionalmente tomado pela esquerda, talvez isso incomode alguns libertários próximos da direita política. Todavia, vamos ao que interessa: o texto em si e sua crítica.

 

II – Mises, um feminista? Provavelmente não

Ludwig von Mises certamente não era um feminista. É preciso lembrar que o assunto não era o principal foco de seus estudos, nem o foco secundário e é notório que tenha mais do que uma nota de rodapé em suas obras. É difícil acreditar que devotava vastos períodos de tempo tentando ponderar sobre estudos de gênero – ainda mais em 1922, quando escreve o livro “Socialismo”, de onde se tira boa parte de sua análise sobre a condição feminina. Isso não quer dizer que ignorava o assunto por completo.

Por sua vasta erudição e atenção aos movimentos políticos de sua época, Mises provavelmente estava atento ao fato de que o movimento de emancipação das mulheres ganhava força no mundo todo, dos Estados Unidos até a China, passando pelo Irã [15]. Dificilmente todas estas mulheres estavam incensadas por uma vontade de fazer uma revolução comunista. Muitas das suffragetes americanas pediam a igualdade entre os gêneros não por ideias radicais mas por uma prerrogativa do movimento religioso quaker, que via as mulheres como iguais aos homens.

Antes do século XVII, já era permitido às mulheres exercer o sacerdócio, por exemplo [16]. Na atmosfera efervecente do século XIX, os quakers foram ativos também em outros movimentos como a abolição da escravidão, com a participação importante de diversas lideranças femininas encampando a bandeira abolicionista [17]. Mises vivia em Viena, uma cidade que passava por todas as transformações possíveis no período entre-guerras. Se antes a Áustria era o centro do poderoso Império Austro-Húngaro, em 1918 com o fim da Primeira Guerra Mundial, passou a ser uma peça menor dentre as nações da Europa. Socialistas, ultranacionalistas e outras facções tentavam convencer o povo de que detinham a chave para a solução dos problemas do país. Só que as mudanças não eram somente restritas à política ou economia.

A partir do final do século XVIII, mas se acelerando tremendamente da metade para o final do XIX, diversas mudanças sociais ocorreram em escala global. A família foi cada vez ficando mais reduzida: de uma imensa parentela, foi cada vez mais em direção ao modelo de família nuclear de hoje em dia. A ascensão da invididualidade passou a delimitar desde os cômodos da casa em quartos até os papéis do casal, pois a distinção público-privado se acentuava rapidamente. Um manual de bons modos entitulado “Usos do Mundo – regras do saber-viver na sociedade moderna”  escrito pela Baronesa Staffe em 1893 nos permite entrever os hábitos da sociedade média da época, explicando modos que para nós aparecem como obviedades tais quais “no trem ou em qualquer outro local público, as pessoas bem-educadas jamais travam conversa com desconhecidos” e menciona que não se deve tratar de assuntos íntimos na frente de estranhos [18].

As mulheres, inicialmente restritas ao espaço doméstico, naturalmente quiseram conquistar também o espaço público. Ressaltar o ponto de tais transformações é necessário para relembrar que as lutas de minorias não são uma expressão tentacular de uma organização comunista internacional que age nas sombras para solapar as liberdades individuais e os resquícios de livre-mercado do Ocidente. Uma de suas representantes mais expressivas foi Mary Woolstonecraft, uma inglesa do século XVIII que defendia a liberdade plena para as mulheres, deixando clara a necessidade de eliminar obstáculos para o desenvolvimento de suas potencialidades. Sua luta era simplesmente pela igualdade irrestrita entre gêneros, sem desvios coletivistas e pretensões autoritárias [19].

Ludwig von Mises sabia muito bem da existência de tal luta. Dificilmente poderíamos colocar o liberalismo como oposto à emancipação feminina quando alguns de seus ícones, como Stuart Mill [20] e Jeremy Bentham [21], defenderam tal causa com argumentos irrepreensivelmente liberais. Segundo a crítica da pagineca de Facebook, sobre o ato de reler autores liberais sob uma ótica “de esquerda”, o “exercício carrega em si uma fraude historiográfica. Na prática, em vez de compreender o passado em sua complexidade, os left-libs optam por selecionar fragmentos isolados que favorecem sua posição esquerdista com os grandes liberais”. Tal afirmação é um atestado monumental da ignorância do autor. É agressivamente acintoso que um movimento que preza a liberdade passaria ao largo da questão das mulheres. Mais ainda, que duzentos anos de desenvolvimento intelectual do liberalismo iriam tomar de maneira acrítica que homens e mulheres são desiguais por natureza.

Se o passado é complexo, indivíduos também o são. Mises, em relação as mulheres, alterna entre uma visão de liberdades individuais e de aceitação de diferenças relativas entre os gêneros. No capítulo IV do livro “Socialismo” vemos um Mises em sintonia com ideias modernas da psicanálise, em voga naquele início de século XX. Diz Mises que “a nova ciência da psicanálise construiu as fundações para uma teoria científica da vida sexual” e reconstrói uma história do matrimônio de maneira a atacar as teses socialistas que pregavam a destruição de tal instituição por ser uma “invenção burguesa” [22]. Para Mises é o casamento que interrompe a condição de violência da relação entre homem e mulher, em sua visão, condição natural da humanidade. Em sua visão

O homem toma posse da mulher e usa como objeto sexual no mesm sentido em que ele possui outros bens do mundo exterior. Aqui a mulher se torna uma coisa. Ela é roubada e comprada; ela é dada, vendida, expulsa; resumidamente, ela é como um escravo na casa. Durante a vida o homem é seu juiz; quando ele morre ela é enterrada juntamente com seus outros bens [23].

Mises explica claramente que uma sociedade onde a relação homem/mulher não é voluntária, nem o impulso do amor chega a frutificar. O que expurga tão atitude conflitiva é a natureza contratualista do casamento que “quebra o domínio do macho, e faz da mulher uma parceira com direitos iguais. De uma relação unilateral baseada na força, o casamento então se tonra um acordo mútuo [24]”. Aqui reside uma faceta mais conservadora de Mises, que aceita não uma diferenciação  hierárquica entre os sexos, mas sim uma dada pela biologia, onde certos impulsos seriam delimitados pelas funções sexuais. Nas suas palavras

A gravidez e o ato de cuidar das crianças tomam os melhores anos da vidade de uma mulher, os anos nos quais um homem pode gastar suas energias em grandes feitos. Pode-se acreditar que a distribuição desigual do fardo da reprodução é uma injustiça da natureza, ou que é indigno da mulher carregar uma criança e ser enfermeira, mas isso não altera o fato.

Esse trecho do texto é cuidadosamente extirpado de algumas frases na análise que respondo. o trecho é claro: não importa o julgamento ou análise social em cima do fato, o fato é que a reprodução atinge as mulheres de maneira diferenciada. LvM também deixa aparente acreditar em valores intrinsecamente masculinos e femininos. Segue em sua análise ao dizer:

Pode ser que a mulher seja capaz de escolher entre renunciar a mais profunda alegria feminina, a alegria da maternidade, ou o desenvolvimento mais masculino de sua personalidade através da ação e do empreendedorismo. Pode ser que ela não tenha essa escolha. Pode ser que ao suprimir seu ímpeto de maternidade, ela se faça um mal que irá refletir através de todas as outras funções de seu ser.

A frase final dá o tom: “Seja qual for a verdade, o fato que resta é que quando ela se torna uma mãe, com ou sem casamento, ela é impedida de continuar sua vida de maneira tão livre e independente quanto um homem”. De acordo com o paupérrimo intelecto do comentarista da rede social, de acordo com o trecho Mises “endossa o discurso de que o trabalho fora de casa é coisa de homem e o lar é coisa de mulher”. Evidentemente equivocado.

Acredito que seja necessário um esforço muito grande para não entender o nexo causal da frase que atesta claramente que a função da maternidade impede o desenvolvimento de outras faculdades da mulher, ainda mais quando a próxima sentença, habilmente ignorada, afirma que “Mulheres extraordinariamente dotadas [de intelecto] podem conseguir boas coisas apesar da maternidade; mas porque as funções do sexo tem a primazia sobre a mulher, a genialidade e grandes conquistas lhe horam negadas [25]”. A linha tênue entre o pensamento conservador, que ordena a sociedade em princípios mais claros de desigualdade natural e mesmo de imutabilidade da ordem devido à tradição e o pensamento liberal fica clara. Mises nega as soluções, segundo ele, radicais de equalizar os sexos na base da força. Todavia, não lhe parece justo que a mulher seja impedida de realizar suas potencialidades. Diz que

Tanto quanto o feminismo procura ajustar a posição legal da mulher a do homem, tanto quanto procura oferecê-la liberdade legal e econômica para devenvolver e agir de acordo com suas inclinações, desejos e circunstâncias econômicas – ele é nada mais do que um ramo do grande movimento liberal, que advoga a evolução livre e pacífica [26].

Mises obviamente se coloca contra os setores radicais do feminismo, que procuram derrubar a ordem estabelecida de maneira violenta. Como é possível afirmar que alguém que prega a liberdade aceite a existência de condições radicalmente diferentes entre gêneros? Ainda mais algo como “lar é coisa de mulher”? Mises mostra uma face mais tradicional ao considerar elementos tais quais o casamento, a maternidade e suas funções como inerentes à ordem na sociedade. Sua emancipação feminina seria dada dentro dos ideais de liberdade individual, sem pressões para o desmantelamento da estrutura vigente das relações entre homem e mulher.

Mises ainda explica que “constrastar os interesses do homem e da mulher, como as feministas extremadas tentam fazer, é bastante bobo. Toda a humanidade iria sofrer se a mulher falhar em desenvolver seu ego e for incapaz de se unir com o homem como companheiros nascidos livres, iguais e camaradas [27]”. Indo para além do texto, o biógrafo Jörg Guido Hülsman, autor de “Mises – Last Knight of Liberalism” diz com bastante clareza que Mises adota a postura de ser contra as vertentes radicais do feminismo não por “querer manter a mulher em seu lugar” mas pela sua integridade intelectual em ver que a opção socialista de abolir todas as estruturas iria oferecer uma falsa solução para o problema [28]. O texto de Cathy e Jeff Tucker menciona também que Mises promoveu a intelectualidade de diversas mulheres as quais ele via seus méritos intelectuais.

Era Ludwig von Mises um feminista, próximo ao radicalismo do FEMEN? É óbvio que não. Mises prezava por uma liberdade com alguma ordem, sem cair no autoritarismo. Sua visão sobre as mulheres vai de acordo com suas ideias sobre todo o resto. Porque é importante revisitá-lo então? Compreender as atitudes históricas do movimento liberal para as reivindicações contemporâneas mostra um amadurecimento intelectual. Se é necessário mostrar a atualidade do pensamento liberal, é fundamental revisitar os clássicos.

Se Mises se mostrasse como um machista, nada seria mais justo escrever um artigo mostrando tal problema. Afinal, indivíduos não são perfeitos. Até mesmo Rothbard fez um elogio incrivelmente simpático a Che Guevara, o mesmo Rothbard querido pelos anarco-capitalistas hoppeanos e outras variações da direita [29]. Diz o “crítico” que a leitura seletiva oculta fatos contrários. Em sua leitura, incorre duplamente no erro que certamente vêm acompanhado com uma boa dose de desonestidade: seleciona trechos convenientes, oculta outros e direciona a interpretação para algo completamente falso.

 

III – Do que eu falo quando falo de libertarianismo

Uma releitura da história para criar nexo para uma bandeira política não é novidade. A leitura marxista da história se ancora no “materialismo histórico” para explicar como se daria o processo de transição para o socialismo e depois para o comunismo. Liberais não tem um “dispositivo multi-uso” como são os múltiplos conceitos criados por Karl Marx e os diversos estudiosos que seguiram a tradição marxista. Precisam explicar passo a passo a influência nefasta do poder coercitivo do Estado, precisam reler a história dos direitos para explicar que eles não derivam de caprichos mas de necessidades reais do resguardo da personalidade individual e da garantia de segurança para acordos voluntários.

Isto sem considerar que dentre as categorias do movimento libertário, uns diriam que é necessário se resguardar um pouco de Estado, outros diriam que é necessário eliminá-lo por completo. Seja qual for a visão sobre a anarquia ou sobre a minarquia, a liberdade como princípio não é negociável. Na impossibilidade de que vivermos imediatamente em uma anarquia, penso que seja inevitável que uma bandeira liberal seja a defesa de um tratamento igual para todos os cidadãos, recuperando as origens da tradição clássica do liberalismo.

Nesse sentido sou contra o que Mises escreve: o direito do indivíduo não querer atender supostas “leis biológicas” é algo inalienável. Se uma mulher quiser se casar ou não, ter filhos ou não, ser heterossexual ou não, esse problema é somente dela. Não cabe ao Estado proibir e a mim, caso não goste,  que eu expresse minha opinião, sem violar a liberdade e a privacidade de outros, obviamente.

Se o corpo é inerentemente do indivíduo, qual é a autoridade do poder estatal em controlá-lo? Porque o casamento é concedido para alguns e não para outros, mesmo supostamente sendo civil, laico e republicano? Na impossibilidade de podermos celebrar estes contratos de maneira privada, garantir sua aplicação de maneira isonômica é  uma postura razoável e digna. Encampando a mesma ideia que os libertários americanos usam em seu slogan do Partido Libertário: “Legalize a liberdade”, dificilmente minorias iriam se debandar para o lado do coletivismo forçado do socialismo autoritário. O problema maior talvez seja os conservadores – friso que são os conservadores vulgares, assim como existem os libertários caricatos – tentando sequestrar o libertarianismo para o lado da reação e do obscurantismo.

 

Textos citados:


[1] Hans Hermann Hoppe and the German Extremist Nationalist Right: http://tomgpalmer.com/2005/07/01/hans-hermann-hoppe-and-the-german-extremist-nationalist-right/
[2] David Boaz is no libertarian: http://www.lewrockwell.com/lrc-blog/david-boaz-is-no-libertarian/
[3] Horror from Horwitz: http://www.economicpolicyjournal.com/2013/12/horror-from-horowitz.html
[4] O feminismo de Ludwig von Mises: https://mercadopopular.org/2014/01/o-feminismo-de-ludwig-von-mises/
[5] TUCKER, Jeffrey; REISENWITZ, Cathy. The Feminism of Ludwig von Mises: http://www.fee.org/the_freeman/detail/the-feminism-of-ludwig-von-mises#axzz2rFBVqevK
[6] Verificável no seguinte link. Após uma discussão nos comentários, a página de maneira bastante honesta resolveu apagar os comentários: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=253752831460572&set=a.236561583179697.1073741828.236557783180077&type=1&stream_ref=10
[7] Notas sobre a III Conferência de Escola Austríaca: http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=1315
[8] Mesmo porque os dois já se conheciam antes de escrever o texto, conforme podemos ver: http://www.youtube.com/watch?v=yPUnfmuNQhI
[9] http://sexandthestate.com/about-cathy/
[10] Cathy Reisenwitz in 10 great quotes: http://the-libertarian.co.uk/cathy-reisenwitz-10-great-quotes/
[11] HESS, Karl. The Death of Politics. Disponível em: http://mises.org/daily/3768
[12] http://www.alf.org/
[13] I’m Sex-Positive, and Boston College has the Right to ban Condoms in Campus: http://sexandthestate.com/im-sex-positive-and-boston-college-has-the-right-to-ban-condoms-on-campus/
[14] RAICO, Ralph. Gay Rights – A Libertarian Approach. Disponível em: http://stonewall-az-libertarians.info/content/Raico%20booklet%20on%20Gay%20Rights.pdf
[15] http://en.wikipedia.org/wiki/First-wave_feminism
[16] http://articles.latimes.com/1986-09-28/books/bk-9604_1_quaker-women
[17] NARLOCH, Leandro. Abolição da Escravidão: A Luz que veio da Inglaterra: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/abolicao-escravidao-luz-veio-inglaterra-435570.shtml
[18] ARIES, Philipe; DUBY, Georges (org.). História da Vida Privada, volume 5. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2009. Pp. 15-16
[19] Biografias: Mary Woolstonecraft: http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/biografias-mary-wollstonecraft/
[20] http://www.constitution.org/jsm/women.htm
[21] http://www.intriguing-history.com/jeremy-bentham-advocates-womens-suffrage/
[22] “Man and Women in the Age of Violence, trecho I.4.7” VON MISES, Ludwig. Socialism. Disponível em : http://www.econlib.org/library/Mises/msS2.html
[23] I.4.8
[24] I.4.20
[25] I.4.34
[26] I.4.35
[27] http://mises.org/quotes.aspx?action=subject&subject=Feminism
[28] HÜLSMAN, Jörg Guido. Mises – The Last Knight of Liberalism. P.417 Disponível em: http://mises.org/books/lastknight.pdf
[29] Che Guevara, RIP. Disponível em: http://mises.org/journals/lar/pdfs/3_3/3_3_1.pdf
    leonel-caraciki-96x96Leonel Caraciki é historiador. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ) e tem interesses em relações internacionais, história contemporânea e do Oriente Médio. Atualmente, dedica seus estudos a história do liberalismo e libertarianismo.
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