Por Leonel Caraciki

O título do presente artigo é uma brincadeira com um famoso livro do diplomata, ensaísta, crítico literário, sociólogo e historiador José Guilherme Merquior (1941-1991), mas expressa perfeitamente o momento que vive o pensamento liberal em terra brasilis.

Enquanto nos Estados Unidos o movimento libertário discute abertamente questões como legalização das drogas, casamento homoafetivo e aborto, no Brasil boa parte dos que se intitulam “liberais” se empolgam com candidatos que rigorosamente não se importam com liberdades civis e individuais. Seu entusiástico apoio a figuras públicas que prometem investir em uma maior militarização da polícia para combater o crime e as drogas, ou que defendem a remoção forçada de favelas, felizmente é limitado a postar “memes” em redes sociais, o que encurta tremendamente seu alcance.

Nesse sentido, ter saudades da figura de José Guilherme Merquior é um imperativo moral. Nascido no Rio de Janeiro em uma família abastada do bairro da Tijuca, José Guilherme foi um fenômeno da intelectualidade brasileira. Conta-se que ainda na adolescência já era um ávido leitor de obras de assuntos diversos. Antes dos vinte anos de idade, já contribuía regularmente para a coluna de cultura do Jornal do Brasil. Estas primeiras reflexões sobre a estética e a produção literária nacional geraram seu livro “Razão do Poema – Ensaios de Crítica e de Cultura” (1965). Entrou na faculdade de Direito. Nesta época, Merquior já ministrava palestras e aulas sobre estética em seu apartamento no bairro de Santa Teresa, mas rejeitando o caminho natural da docência universitária, JGM preferiu ingressar no Ministério de Relações Exteriores e ser um diplomata de carreira.

Dentre as muitas repartições públicas e autarquias tremendamente morosas da república, o MRE sempre foi um reduto de excelência e agregador de letrados. O fato de ser um ministério um tanto quanto menos importante para a maioria dos presidentes, permitia que o ambiente fosse propício para o debate intelectual. O alto nível das provas de admissão e a perspectiva de uma carreira repleta de viagens internacionais atraía uma classe média alta letrada que era minoria no serviço público. Como diplomata, JGM serviu na França, Inglaterra, Alemanha e em outros postos. Em meio a suas viagens, se tornou um nome conhecido nos meios acadêmicos internacionais ao concluir um de seus doutorados, este sob a orientação de Ernest Gellner na London School of Economics. Estudou também com Claude Levi-Strauss, Raymond Aron e Arnaldo Momigliano. Ocupou também a cadeira trinta e seis da Academia Brasileira de Letras.

Tais referências impecáveis geraram obras marcantes no campo da crítica literária e em muitos outros. Em certo momento, José Guilherme passou a refletir sobre a tradição liberal. Ao escrever “Liberalismo – Antigo e Moderno” (1991), que considero um dos maiores clássicos sobre trajetória e teoria do liberalismo, o autor deixa evidente que sua erudição dava conta não somente de citar a exaustão trechos de Ludwig von Mises e F.A Hayek para fundamentar sua defesa do argumento liberal.

Em um meticuloso trabalho de reconstrução e articulação da história das ideias, o autor traça as origens dos conceitos e formulações teóricas que erigiram o vasto campo do pensamento liberal e de suas vertentes. Desde Roma, passando pelos debates escolásticos da Idade Média e desembocando nos liberais modernos, a densidade da obra impressiona ainda mais quando sabemos que foi escrita em quatro meses, pouco antes de sua morte em decorrência do câncer.

Nesta obra, assim como em “O Argumento Liberal” (1983) e em suas entrevistas e colunas de jornal, fica claro que Merquior não era um adepto das variantes mais anárquicas do liberalismo. Roberto Campos, na introdução de “Liberalismo” diz que Merquior estava cada vez mais próximo do “liberismo” que na definição do próprio Campos “é aquele que acredita que, se não houver liberdade econômica, as outras liberdades — a civil e a política — desaparecem.

Dentre os conceitos mil das tipologias do pensamento político, J.G.M era um liberal clássico, próximo do social liberalismo. Em entrevista ao jornal Última Hora, Merquior diria que:

“O liberalismo moderno é um social-liberalismo, é um liberalismo que não tem mais aquela ingenuidade, aquela inocência diante da complexidade do fenômeno social, e em particular do chamado problema social, que o liberalismo clássico tinha. O liberalismo moderno não possui complexos frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalismo que eu me filio.”.

Mesmo prevendo um certo papel para o Estado – próximo ao modelo de ‘vigia noturno’, que seria um Estado garantidor das liberdades fundamentais mas com a manutenção de programas de renda básica devido as condições históricas e as disparidades socioeconômicas gritantes do Brasil – , algo que certamente provavelmente lhe renderia rótulos de esquerdista por parte de muitos dos nossos atuais liberais, Merquior era profundamente consciente que o patrimonialismo brasileiro e as relações promíscuas entre o público e o privado geravam um ambiente contraproducente para a liberdade. Cito mais uma vez:

(…) antes de verter lágrimas de crocodilo ante a perspectiva de emagrecimento do Estado, nossa esquerda bem pensante deveria compreender que, além de ser bastante ineficiente como amo e senhor da economia, o Estado latino-americano típico, e o brasileiro em particular, está longe de ser filantrópico. Nosso Estado “social” na verdade reproduz privilégios, ao mesmo tempo em que cerceia a dinâmica de crescimento por alimentar a inflação crônica, interminavelmente reabastecida pelas atitudes e demandas cartoriais de grupos sociais particularistas.”

O trecho originalmente de uma coluna publicada no Jornal O Globo, ia de encontro aos intelectuais de esquerda que denunciavam a “infiltração neoliberal” no discurso político brasileiro, cerceando qualquer discussão sobre a desestatização da sociedade, ainda inchada pelos resquícios do estatismo da Ditadura Militar e do Governo Sarney.

Sem medo de se engajar no debate público, comprou uma briga com a filósofa Marilena Chauí, na época em que a filósofa era considerada como uma boa intelectual pelo seu livro “A Nervura do Real”, sobre a obra de Baruch Espinosa. Merquior a acusou de plagiar um livro do autor francês Claude Lefort, o que o levou a travar debates com quase todo o establishment da esquerda brasileira. É importante perceber que para com seus interlocutores ele tinha “a calma para ver e a honestidade para informar”, virtudes que ele atribuía a Stuart Mill, ao invés de simplesmente tratar seus opositores como inimigos mortais. O respeito que adquiriu de homens da esquerda como Leandro Konder, a quem dedica o livro “O Marxismo Ocidental” (1987), era fruto de seu compromisso com o debate civil e a exposição de ideias de forma respeitosa. Isto não o impedia de ser um crítico ferrenho dos intelectuais socialistas, dos quais dizia que

não são párias de nossa sociedade, nem pela renda nem pelo status. Se disserem que são, eu respondo com uma gargalhada. Eles se beneficiaram do progresso econômico, subiram socialmente nos últimos anos como o resto da classe média. Por isso, têm uma retórica muito radical. Fingem que são uma intelligentsia. Mas, na prática, se comportam como um setor do salariado, têm impulsos corporativistas.”

O “esgrimista conservador”, como foi tachado por seus críticos, não tinha problemas de publicar um texto, dividido em seis partes, sobre a Revolução Francesa e suas contribuições para o pensamento político ocidental. O detalhe é que o texto figurava nas primeiras páginas d’O Globo em meio aos debates políticos de 1989, momento em que a mídia estava atenta para a disputa presidencial entre Lula e Collor. Neste momento também há um descompasso da carreira de José Guilherme: acreditou que podia influenciar positivamente o candidato Fernando Collor de Melo, inserindo em seu plano de governo uma agenda social-liberal. Hoje em dia sabemos que não foi uma experiência bem sucedida.

A morte precoce de Merquior com certeza piorou, e muito, o cenário intelectual brasileiro. Diferentemente de Roberto Campos, que se pendurou na corda do liberalismo após anos e anos dando sustentação as políticas intervencionistas da Ditadura, Merquior foi constantemente firme em seus princípios. Sua presença e seus textos davam “um bom nome” ao liberalismo brasileiro, notadamente carente de grandes discussões ou de grande vigor intelectual. Nos dias de hoje, os “garotos-propaganda” do liberalismo de Pindorama flertam com elementos autoritários e antidemocráticos da direita política, que nunca fez questão alguma de ter respeito ao império da Lei, a coisa pública ou as liberdades civis e individuais. Muitos são apologéticos da Ditadura, um período que marcou o ápice do intervencionismo estatal e de práticas obscenas de violação dos direitos dos cidadãos. A defesa vigorosa do livre-mercado, neste discurso, não tem o menor compromisso com todo o resto das premissas de liberdade.

Recuperar José Guilherme Merquior é importante para entender as ideias do liberalismo no Brasil. Em “Saudades do Carnaval: Introdução a Crise da Cultura” (1972), Merquior procurou ver como os intelectuais lidavam com o fenômeno de “decadência do Ocidente”. Sua conclusão é que o Brasil seria um terreno interessante para experimentos que procurassem reverter esta tendência mas avisava que “tanto o moralismo agressivo de certa classe média conservadora quanto a austeridade propugnada por alguns programas de esquerda abrigam legitimações comportamentais muito pouco tolerantes em relação ao espírito anárquico, libertino e libertário do nosso etos clássico.”. Considero um aviso importante tanto para a atmosfera política dos dias de hoje, quanto para aqueles que insistem na fusão do liberalismo com princípios antiliberais do conservadorismo.

Como um entusiasta da sua obra e do pensamento de José Guilherme Merquior, humildemente espero que este curto texto ajude a propagar um pouco de suas ideias pois “ideias, e somente ideias, podem iluminar a escuridão”.

Referências:

http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/ent_merquior.html

http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_17/rbcs17_resenhas.htm

http://www.academia.edu/7074496/Da_nostalgia_critica_a_apologia_do_progresso_o_pensamento_social_de_Jose_Guilherme_Merquior

PEREIRA, José Mario. “O Fenômeno Merquior” In: O Itamaraty na Cultura Brasileira.

caraciki

Leonel Caraciki é historiador. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ) e tem interesses em relações internacionais, história contemporânea e do Oriente Médio. Atualmente, dedica seus estudos a história do liberalismo e libertarianismo.

Compartilhar