Há mais de um ano e meio (24/01/2014), escrevi o texto “O Estado de Bem-Estar Social deixa miseráveis ainda mais pobres, famintos e desesperados“. Sua tese central foi a de que o Estado de Bem-Estar Social mais generoso de alguns países desenvolvidos (em especial os escandinavos: Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia) é comparável a um condomínio de luxo. Ao vetar a imigração por trabalhadores desqualificados, apenas está deixando pessoas pobres de fora. Meu objetivo era desmistificar o quão realmente esses países, por mais invejáveis que sejam os resultados que eles alcançaram para a população que neles nasceu (e aqueles que eventualmente puderam migrar legalmente para lá), realmente podem ser ditos como campeões da justiça social em escala global.
Como todo texto que suscita um tema polêmico, ele recebeu muitas críticas, muitas delas podem ser acompanhadas nos comentários no blog. São essas críticas justificáveis? Resolvi após esse um ano e meio reler meu texto, e considero que seu argumento geral é persuasivo sim. O que eu mudaria apenas seriam o tom em um ou outro parágrafo, que poderia dar a entender que eu estaria tentando demonizar os países escandinavos (alguém nos comentários criticou meu uso da expressão “pecado”). Esse não era o objetivo, pois eu também poderia mencionar os pontos que considero bastante positivos neles (e de fato mencionei-os duas vezes ao longo do texto, com foco na Dinamarca, mas poderia mencionar mais).
Então vou responder às principais críticas levantadas e mostrar suas falhas.
Resposta:
O texto não afirma isso em nenhum momento, e o modo como a renda per capita elevada desses países (o que os tornam países desenvolvidos) foi obtida é irrelevante para o argumento esposado aqui. O argumento apenas presume que esses países têm maiores oportunidades de renda e emprego, por terem maior renda per capita que a maioria dos países do mundo, e que essas oportunidades são tornadas inacessíveis pela política imigratória para muitos dos trabalhadores desqualificados mais pobres do mundo. Afinal, estes não podem mover-se para lá e tentar obter essas oportunidades; ao contrário, são mantidos em países onde as oportunidades são muito menores. Onde esse argumento pressupõe alguma tese sobre a causação dessa maior renda/riqueza?
Mas o crítico poderia ter lido mais atentamente o texto e notado que, apesar de não necessário para o argumento, eu fiz um comentário sobre como isso foi causado que justamente mostra como a crítica advém de uma leitura apressada. Cito do texto: “a Dinamarca por exemplo é uma economia de mercado vibrante e bastante liberal, inclusive quanto ao mercado de trabalho, e isso é que gerou a enorme renda per capita que serve para redistribuição”.
O argumento do crítico poderia ter sido melhor se ele tivesse dito que minha tese era que os indicadores sociais dos países desenvolvidos são melhores do que deveriam ser, porque eles impedem as pessoas de migrar para lá. Eu estou comprometido com essa tese de fato. Se você deixa pessoas mais pobres e desqualificadas entrarem em seu país, é claro que os indicadores sociais devam sofrer alguma piora em algum nível: seja porque essas pessoas residiriam em moradias não tão boas quanto o do resto da população já mais rica, seja porque elas teriam um nível educacional menor, etc.
É uma questão trivial que advém de como os indicadores sociais são mensurados. Você apenas pode assumir que os indicadores sociais estarem melhorando significa necessariamente que todos estão melhorando de vida se levar em conta uma população que permanece a mesma ao longo do tempo em dado território. Mas, se é permitido influxo de fora, é possível que os indicadores sociais piorem mesmo que do ponto de vista dos migrantes sua situação de vida tenha melhorado em relação à situação em que estavam em uma população anterior. Logo: se você impedir pessoas mais pobres que a média da população (ou mesmo que a média dos 5% mais pobres daquela população mais rica) de entrarem, você as estará prejudicando em melhorar de vida, ao mesmo tempo que poderá manter os indicadores sociais estáveis ou melhorando.
Essa forma de medir sem levar em conta a imigração é absolutamente questionável de um ponto de vista imparcial em relação ao bem-estar de todas as pessoas da humanidade. Ela presume que devemos dar preferência aos nacionais sobre os estrangeiros mesmo que os estrangeiros sejam mais empobrecidos e os nacionais mais abastados, mas comentaremos mais sobre isso mais abaixo.
Resposta:
O mais curioso desse argumento é que no segundo parágrafo do texto eu menciono que os EUA tem uma política imigratória restritiva: “Elysium já existe. Talvez você tenha imaginado os EUA (pela semelhança com a imigração ilegal mexicana)”. Como o foco do texto não era analisar esse tipo de situação que era mais intuitivamente associado à analogia com o filme Elysium, e sim fazer o enfoque mais contraintuitivo de associá-lo aos países de Estado de Bem-Estar Social mais generoso, mencionei isso tangencialmente.
O crítico sugere que estou comprometido com a tese de que apenas Estados de Bem-Estar Social forte têm política imigratória restritiva. Se existe um país como os Estados Unidos onde o Estado de Bem-Estar Social não é forte (não tão generoso quanto os escandinavos), segue-se que aquela tese é falsa.
Mas eu não estou comprometido com aquela tese, e pensar isso advém de uma leitura apressada do texto. A tese que defendo é a de que, tudo o mais igual, ter um Estado de Bem-Estar Social mais forte torna mais difícil a abertura de fronteiras para imigrantes desqualificados. Ou seja, possuir um Estado de Bem-Estar Social dessa natureza é uma variável a mais que dificulta a aceitação da livre imigração, mas isso não significa que seja a única variável relevante.
Como os países em geral não são tudo o mais igual apenas variando em níveis de Estado de Bem-Estar Social implementado, isso significa que, em dado momento do tempo ou por certas circunstâncias constantes historicamente, um país com um Estado de Bem-Estar Social mais fraco pode ter uma política imigratória mais restritiva do que um país com um Estado de Bem-Estar Social mais forte.
É por isso que você não me encontrará em nenhum momento do texto argumentando que os países escandinavos têm as políticas de imigração mais restritivas entre os países desenvolvidos. Esse argumento não era e nunca foi necessário. Meu argumento foi de que eles efetivamente restringem, que isso tem uma relação causal com a existência de um Estado de Bem-Estar Social forte que é incompatível com uma maior imigração livre de trabalhadores desqualificados. E que isso torna questionável moralmente aceitar um modelo que privilegia nacionais relativamente mais abastados (consideravelmente mais abastados em média, inclusive entre os 5% mais pobres entre os nacionais) em detrimento de estrangeiros relativamente mais empobrecidos.
Mas podemos fazer um comentário aqui sobre os Estados Unidos em comparação aos escandinavos, uma vez que o crítico suscitou a questão. Um dos motivos dos Estados Unidos terem adotado medidas mais draconianas em tempos recentes em relação à imigração ilegal principalmente via fronteira com o México é o fato de que é mais fácil entrar especificamente nesse país desenvolvido em comparação com outros. Os Estados Unidos são um país enorme, fazem fronteira com um país subdesenvolvido (México), já têm muitos imigrantes legais e ilegais estabelecidos ali. Isso significa que nesse caso uma política imigratória mais draconiana pode significar não que eles estejam recebendo poucos imigrantes, mas sim que eles estejam recebendo muitos imigrantes e por isso eles estão tentando impedir a entrada de mais. Ou seja, a análise prima facie da legislação deles nesse sentido ser mais draconiana que a escandinava pode ser enganadora se a levarmos em seu valor de face (isto é, literalmente). Ela pode ser, afinal, a consequência de ser um país que historicamente recebeu mais imigrantes e que pela localização geográfica e dimensões geográficas (entre outros fatores) é um destino para um contingente populacional grande de migrantes.
Suponha que um país seja rico, mas é distante geograficamente, seu clima é austero em relação à temperatura, sua língua é universalmente desconhecida, suas populações são pequenas – o que implica que a população de imigrantes já existentes também é proporcionalmente pequena, e pode afetar quais comunidades linguísticas estão representadas entre os imigrantes -, etc. Esses são obstáculos fáticos à imigração, principalmente a de trabalhadores desqualificados. E eles se enquadram bem em como os países escandinavos são comparados a outros desenvolvidos, como Estados Unidos e França, que historicamente (ao longo de décadas) já haviam recebido muita imigração. Se um país com tais obstáculos fáticos à imigração adota uma política mais liberal em relação à imigração pode ser uma consequência de ele ser faticamente menos receptivo à imigração (não necessariamente por responsabilidade do governo, mas por fatores linguísticos, geográficos, etc. como mencionados) e, logo, de ele ter recebido menos imigração historicamente.
Resposta:
Essa é uma variante da crítica 2, mas dessa vez o crítico sugere que estou comprometido com a tese (mais fraca) de que Estados de Bem-Estar Social forte têm política imigratória restritiva em qualquer momento dado do tempo. (Note: a tese que o crítico erroneamente me imputou na crítica 2 era a de que apenas Estados de Bem-Estar Social fortes têm políticas imigratórias restritivas). Se existe um país como a Suécia onde a política imigratória foi relativamente mais aberta em determinado período mesmo sendo um Estado de Bem-Estar Social forte (e que inclusive em consequência deste acolhe os imigrantes no welfare), segue-se que aquela tese é falsa.
Mas novamente: não estou comprometido com essa tese, que advém de mais uma leitura apressada do texto, relacionada com a leitura apressada que levou à crítica 2.
Vou reafirmar: A tese que defendo é a de que, tudo o mais igual, ter um Estado de Bem-Estar Social mais forte torna mais difícil a abertura de fronteiras para imigrantes desqualificados. Possuir um Estado de Bem-Estar Social dessa natureza é uma variável a mais que dificulta a aceitação da livre imigração, mas isso não significa que seja a única variável relevante. Como os países em geral não variam entre si apenas em níveis de Estado de Bem-Estar Social, isso significa que, em dado momento do tempo ou por certas circunstâncias constantes historicamente, um país com um Estado de Bem-Estar Social mais fraco pode ter uma política imigratória mais restritiva do que um país com um Estado de Bem-Estar Social mais forte. Reafirmo também minha exposição mais acima sobre países com obstáculos fáticos à imigração que historicamente receberam, por isso, menos imigrantes.
Uma questão em relação à real política de imigração da Suécia que deve ser suscitada também é que ela já foi (e ainda é em grande parte) bastante generosa principalmente com uma classe de pessoas muito empobrecidas: aquelas que também são refugiados. Isso certamente é bastante louvável. Também é bastante aberta aos trabalhadores qualificados (como outros países europeus também são). Mas seria um equívoco considerá-la como uma política de fronteiras abertas em relação a qualquer tipo de trabalhador desqualificado sem o status especial de refugiado sob o direito internacional. Sobre a relação entre a política imigratória e os refugiados, leia aqui.
Ou seja, o crítico nos afirma que a imigração já foi mais aberta (ou ainda é mais aberta relativamente em certos aspectos) e que uma parcela considerável (estimada em 14%) de sua população é nascida no estrangeiro, mas ele esquece que nosso argumento foca em trabalhadores desqualificados. Dessa forma, apontar a receptividade sueca nada nos diz sobre: 1) para quem a imigração era aberta? 2) quanto da população nascida no estrangeiro é composta por trabalhadores desqualificados e de países muito pobres do “Terceiro Mundo”?
O que fez a Suécia ser elogiada, com razão, era sua receptividade aos refugiados, mas isso não pode ser confundido com aceitar indiscriminadamente qualquer trabalhador desqualificado que para lá quisesse emigrar. E sua receptividade maior tem relação não só com orientações políticas internas, como também pelo fato de que historicamente foi um país que recebeu contingentes menores de migrantes em comparação a outros desenvolvidos, como já explicado acima.
Resposta:
Um aspecto interessante que surgiu das críticas é como, em certos momentos, argumentos mais conservadores e argumentos mais esquerdistas convergiram para essa crítica. A ideia subjacente é a de que esses países de Estado de Bem-Estar Social forte fizeram o “dever de casa” e melhoraram as vidas de suas populações, sem impor nenhum ônus a ninguém de nenhum outro país (ou talvez tenham compensado esses ônus, e assim por diante; no caso dos escandinavos, estes nunca foram países colonialistas e/ou suas empreitadas colonialistas foram limitadas). Segue-se, para o argumento conservador, que o meu texto era “vitimista” e quer injustificadamente que as pessoas dos países desenvolvidos dividam suas riquezas com as dos subdesenvolvidos. Para o argumento esquerdista, segue-se que o meu texto exige injustificadamente que as pessoas dos países desenvolvidos sacrifiquem suas conquistas sociais.
Ambos os argumentos são comprometidos com uma premissa elitista subjacente. Aqui usarei um exemplo oferecido pelo filósofo Derek Parfit em um de seus interessantíssimos trabalhos em ética da população (o denominado Paradoxo da Mera Adição), para demonstrar isso.
Observe a figura abaixo:
(PARFIT, Derek. Overpopulation and the Quality of Life. 2004, p. 11.)
Suponha que cada retângulo desses corresponda a uma população. O comprimento corresponde ao número de pessoas da população envolvida, a altura corresponde à felicidade de cada pessoa da população, e a área (multiplicando comprimento e altura) corresponde à felicidade total (a soma das felicidades de todos os indivíduos). Como no exemplo toda pessoa tem igual felicidade a todas as outras na mesma população, isso significa que, quanto maior a altura do retângulo, maior a felicidade média (felicidade total/número de pessoas).
Compare A e B. O retângulo A claramente tem maior felicidade média que B (cada pessoa em A é mais feliz que cada pessoa em B), mas tem uma população menor (há menos pessoas felizes em A do que em B). Muitas pessoas observam isso, e apontam que o retângulo A representa uma situação melhor que a representada por B, pois é o resultado que maximiza a felicidade de cada pessoa, mesmo que seja uma população menor de pessoas envolvidas. Mas será que isso não conflita com outras intuições morais?
Analise agora a situação retratada por A+. Ali temos o mesmo retângulo A, com idêntica felicidade média elevada, mas temos também presente um retângulo menor, com a mesma quantidade de população, mas com felicidade média consideravelmente menor. Ou seja, em A+, cada pessoa na população representada pelo retângulo da esquerda é (um pouco mais de duas vezes) mais feliz que cada pessoa representada pelo retângulo da direita, sendo que há igual número de pessoas em ambas as populações.
Suponha ainda que a desigualdade em A+ é “natural”, não o resultado de qualquer injustiça social. Talvez essa população cujos habitantes sejam menos felizes tenha sido recentemente descoberta do outro lado do Atlântico ou do Pacífico. Enquanto A+ é a situação onde esse continente recém-descoberto era habitado, o que leva à existência ao mesmo tempo dessas duas populações, A representaria a situação onde esse continente recém-descoberto era desabitado e por isso só havia uma população, digamos.
Pergunta: o cenário de A+ é pior que o de A? Note que a pergunta não é se é melhor, mas se é pior. Ou para colocar de outra forma: seria melhor que a população extra em A+ nunca tivesse existido? Talvez você ache ruim que exista essa desigualdade em A+, mas achar ruim essa desigualdade justificaria que essa população extra nunca tivesse existido? Acredito que o leitor certamente responderá que a simples desigualdade de A+ não nos deveria levar a concluir que A+ é pior que A. Lembre que a população extra de A+ não é composta por pessoas infelizes cujas vidas fossem piores que sequer existir. Nosso argumento presume que são pessoas felizes, cujas vidas valem a pena viver, mas com menor felicidade que a outra população.
Agora compare A+ com o cenário dividido em B+. Em B+, ambas as populações têm o mesmo número de pessoas e têm a mesma felicidade média, que é maior que a felicidade média na população do retângulo à direita em A+ mas menor que a felicidade média na população do retângulo à esquerda em A+. Ou seja, cada pessoa em B+ tem mais felicidade que cada pessoa no retângulo à direita em A+, e cada pessoa em B+ tem menos felicidade que cada pessoa no retângulo à esquerda em A+. (Note que somando as duas populações em B+ temos a população retratada em B, com maior felicidade total que a de A, mas menor felicidade média que a de A, portanto).
Sob os princípios morais que muitos de nós aceitamos, B+ é melhor que A+.
Sob o princípio da maximização da utilidade, é melhor que haja a maior soma de benefícios menos perdas. Logo, B+ é melhor que A+ porque os benefícios das pessoas que ganham são maiores que as perdas das pessoas que perdem.
Sob o princípio da igualdade, é melhor se houver menos desigualdade entre diferentes pessoas. Logo, B+ é melhor que A+ porque os benefícios foram redistribuídos de quem já tinha muita felicidade para quem tinha menos, ou seja, daqueles em melhor condição para aqueles na pior condição.
Aqui Derek Parfit é bem incisivo:
“Como podemos nós negar que uma mudança de A+ para o B dividido [B+] pode ser uma mudança para melhor? Nós teríamos de defender que a perda das pessoas em melhores condições em A+ importa mais que o maior ganho para as igualmente numerosas pessoas em piores condições. Isso parece-nos comprometer para uma Visão Elitista segundo a qual o que importa mais é a condição das pessoas em melhores condições. Isso é o oposto da famosa visão de Rawls de que o que importa mais é a condição das pessoas em piores condições. Muitos de nós rejeitaríamos a Visão Elitista. Muitos de nós, portanto, concordaríamos que B dividido [B+] seria melhor que A+.” (PARFIT, Derek; 2004, p. 12)
Disso se sucede trivialmente que, se B+ é melhor que A+, e A+ é tão bom quanto A, que B+ é melhor que A. Como B+ é equivalente a B em todos os aspectos, B é melhor que A, ao contrário da intuição original onde A seria melhor que B. (De modo que se chega ao Paradoxo da Mera Adição mencionado mais acima).
Já deve ter ficado claro onde pretendo chegar com esse exemplo. Apenas uma visão elitista, onde o que importa é a condição de quem já está em melhores condições, poderia justificar que A+ fosse melhor que B+. Só que A+ é um exemplo hipotético cuja aproximação maior ao mundo real seria o atual cenário de fronteiras fechadas e B+ é um exemplo hipotético cuja aproximação maior ao mundo real seria um cenário de fronteiras abertas.
Se a livre imigração fosse adotada no mundo, no curto prazo, indicadores sociais nos países desenvolvidos piorariam (inclusive indicadores de pobreza absoluta e relativa). Isso é comparável à diminuição da felicidade média ao passar de B+ para A+. Porém, note que as pessoas que mais ganhariam com esse processo seriam os novos habitantes desses países advindos de países do “Terceiro Mundo” e que são trabalhadores desqualificados, pois teriam acesso a mais oportunidades, renda e benefícios sociais. Isso é comparável ao modo como os habitantes da população “extra” ganham felicidade ao passarem de A+ para B+. A renda total aumentaria, pois como mostrado em meu artigo original o PIB mundial dobraria nesse cenário. Por fim, isso é comparável ao aumento da felicidade total ao passar de A+ para B+.
E quanto à diminuição da felicidade da população do retângulo à esquerda em A+ ao passar de A+ para B+, como ela se compararia nesse nosso cenário aplicado ao mundo real de abertura de fronteiras?
Não precisamos presumir que a renda dos habitantes dos países desenvolvidos vá necessariamente diminuir. Isso poderia ocorrer por maior competição no mercado de trabalho, mas, por já estarem em melhor condição, possíveis perdas em renda aqui seriam pequenas em comparação aos ganhos de renda auferidos pelas pessoas mais pobres do mundo.
Na verdade, boa parte do que é comparável a essa diminuição da felicidade no exemplo hipotético estaria mais vinculada no mundo real a questões como maiores congestionamentos, uma menor estrutura de bem-estar social governamental, maior visibilidade da pobreza. São perdas que, novamente, são bem menores em relação aos ganhos de renda e acesso a uma série de benefícios auferidos pelas pessoas mais pobres do mundo. (Lembre que estas ganham não só considerando os migrantes, mas também considerando as famílias dos migrantes, e as economias dos países subdesenvolvidos que se beneficiam tanto de maiores remessas para famílias como de um PIB mundial dobrado que significa maior volume de transações, gerando emprego e renda).
Curiosamente, um filósofo sueco denominado Torbjörn Tännsjö, afiliado a um partido de esquerda de seu país (conhecido por ser um partido de viés socialista) e que trabalha questões de ética da população em seu trabalho acadêmico, recentemente apresentou posição favorável a que estou apresentando aqui, sob bases similares, em um debate filosófico. Para ele, talvez os suecos devessem simplesmente abrir suas fronteiras, deixando quem quiser vir, mesmo que isso inviabilize manter o Estado de Bem-Estar Social tal como existe no país hoje. Afinal, mesmo isso diminuindo condições sociais, maximizaria o bem-estar do mundo, e era o que ele estava inclinado a acreditar que é o que deveria ser feito. (Veja transcrição em sueco e o vídeo da fala dele aqui, e a transcrição em inglês aqui).
A questão é até mais fundamental que a sobre desigualdade, e eu a colocaria em termos de uma visão prioritarista de justiça distributiva: a quem devemos dar prioridade em relação à maximização do seu bem-estar, aos menos favorecidos ou os mais favorecidos? Se as pessoas mais pobres do mundo poderiam melhorar de vida sob um cenário de fronteiras abertas, teriam os escandinavos, comparativamente muito mais abastados em relação ao resto do mundo, uma real objeção moral a isso?
É possível que o crítico queira afirmar que essas pequenas perdas das pessoas em melhor condição no curto prazo importem mais que os grandes ganhos das pessoas em pior condição em escala global, mas aí ele já endossou a Visão Elitista e rejeitou John Rawls.
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Por fim, gostaria de deixar para o leitor a reflexão trazida nesse texto escrito pelo Martin Andersson, sueco radicado no Brasil, o qual transcrevo aqui:
“A maioria dos europeus se aterroriza ao pensar em ter pobreza na sua própria vizinhança. Como um exemplo disso, o recente aumento de pedintes romenos na Europa Ocidental é visto como falha da sociedade, ao invés de um sinal de que esta tem solidariedade o suficiente para atrair pedintes, e que, portanto, deveria ser uma fonte de orgulho.
A consequência dessa recusa de se ver rodeado de pobreza e pessoas desesperadas é que o Estado de Bem-Estar Social (welfare state), junto com a legislação trabalhista, impõe um teto ao número de imigrantes que um país pode receber. A maioria dos debates políticos se centram na questão de se esse teto foi alcançado ou não, mas enquanto existem requisitos mínimos para algo ser considerado “condições decentes” de viver/trabalhar, esses limites de fato existem.
Mesmo que a insistência em um certo padrão de vida dentro de um território dado de fato melhore as condições de vida para muitas pessoas, sua consequência natural é que ele impede que um número ainda maior de pessoas se salvem de perseguição, miséria, violência estatal e outras atrocidades, todas muito piores do que viver com toda a família em um flat com só um quarto, comer macarrão instantâneo todos os dias, trabalhar turnos de 12 horas ou não conseguir pagar cuidados dentais.
Recusar ajuda a alguém em necessidade pode ser uma coisa ruim. Mas é algo que fazemos todos os dias. Todo sorvete que compramos é uma despesa que poderia ser usada para alimentar crianças pobres no Terceiro Mundo. Toda tarde que se usa pra ler um livro ou comentar no Facebook poderia ter sido usada para cozinhar sopa para os sem-teto ou trabalhar extra para dar dinheiro à caridade. Talvez teríamos que nos perdoar nossa falta de humanidade ao dar um passeio no parque enquanto pessoas morrem.
Mas impedir que alguém pacificamente cruze uma fronteira ou restringir o que é um emprego decente (e portanto reduzindo a quantidade de emprego disponível) não é recusar ajuda aos necessitados. É ativamente dificultar que pessoas se salvem de perseguição ou pobreza. É um crime contra a humanidade. Às vezes é até assassinato.”