Por Valdenor Júnior

Um dos maiores equívocos propagados sobre a visão darwiniana do ser humano advém de achar que essa é uma concepção que serve a ideias reacionárias e conservadoras, tendentes a manter o status quo e de legitimar injustiças sociais.

Isso não é correto. Para entendermos a melhor forma de combater males sociais, precisamos ter uma visão adequada do fenômeno à luz de suas potenciais raízes evolucionárias, exatamente para que seja possível alguma ação para neutralizar esses efeitos. Além disso, temos de promover o esclarecimento científico sobre questões mal divulgadas para o público acerca dos resultados da ciência comportamental, como a falsa noção de que a psicologia evolucionária defende que homens preferem mais o sexo que as mulheres ou que mulheres correspondem ao estereótipo moderno ocidental de castidade e recato, má interpretação que serve a interesses conservadores.

Mas uma das melhores maneiras de perceber que isso não está correto é visualizar que é possível ser de esquerda (em algum sentido) e defender uma visão darwiniana sobre o ser humano, em linha com as principais ciências comportamentais e cognitivas: psicologia evolucionária, genética comportamental, antropologia evolucionária, psicologia cognitiva e neurociência.

Por exemplo, dois dos maiores expoentes da sociobiologia, Edward O. Wilson e Robert Trivers tinham visões de esquerda na política: Edward O. Wilson é muito conhecido por levantar bandeiras ambientalistas e conservacionistas, bem como por ser um democrata liberal; Trivers chegou a juntar-se aos Panteras Negras e afirmou o caráter progressista da sociobiologia:

“Trivers afirmara que a sociobiologia, na verdade, é uma força para o progresso político. Ela se baseia na ideia de que os organismos não evoluíram para beneficiar sua família, grupo ou espécie, pois os indivíduos componentes desses grupos têm conflitos de interesses genéticos uns com os outros e são selecionados conforme defendem esses interesses. Isso imediatamente subverte a reconfortante crença de que os que estão no poder governam pelo bem de todos, e põe em evidência atores ocultos no mundo social, como as mulheres e a geração mais nova. Além disso, encontrando uma base evolucionária para o altruísmo, a sociobiologia nos mostra que o senso de justiça tem raízes profundas na mente das pessoas e não precisa contrariar nossa natureza orgânica. E mostrando que o auto-engano tem probabilidade de evoluir (porque o melhor mentiroso é o que acredita nas próprias mentiras), a sociobiologia incentiva o auto-exame e ajuda a minar a hipocrisia e a corrupção” (PINKER, Steven; Tabula Rasa; 2004, p. 161)

Curiosamente, alguns dos maiores pesquisadores em genética comportamental são cidadãos de países como Suécia e Finlândia, e a herdabilidade de traços comportamentais e do Q.I é atestada em estudos de gêmeos e de adoção realizados nesses países. Países nórdicos tiveram e têm um papel importante nesse tipo de pesquisa. Países que dificilmente poderiam ser considerados atrasados em consciência social (ainda que tenham algumas políticas questionáveis e não conducentes a este fim de forma consistente).

Mas a exposição mais sistemática da possibilidade de uma esquerda darwiniana foi feita por Peter Singer, com a publicação de A Darwinian Left. Para que o leitor possa ter uma ideia de como seria uma ‘esquerda darwiniana’, traduzi trecho do livro, capítulo A Darwinian Left for Today and Beyond. Eu concordo com praticamente tudo neste trecho, apesar de que eu e Singer divergirmos sobre a importância da liberdade econômica e de mercados livres nesse cenário. Abaixo segue a tradução:

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Uma esquerda darwiniana para hoje e além

Por Peter Singer

In: A Darwinian Left: Politics, Evolution and Cooperation, New Haven, 1999, pp. 60-63.

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Esse pequeno livro foi um esboço das maneiras pelas quais uma esquerda darwiniana diferiria da esquerda tradicional que temos vindo a conhecer nos dois séculos passados. Para fechar a ideia, eu poderia primeiro colocar juntas, em uma forma breve, algumas das características que eu penso distinguirem a esquerda darwiniana de prévias versões da esquerda, tanto velha como nova; essas são as características que penso que um esquerdista darwiniano abraçaria hoje. Então, eu voltarei o olhar para perspectivas mais distantes.

Uma esquerda darwiniana não pode:

a) negar a existência da natureza humana, nem insistir que a natureza humana é inerentemente boa, nem que seja infinitamente maleável.

b) esperar acabar com todos os conflitos e disputas entre os seres humanos, seja por revolução política, mudança social ou melhor educação;

c) assumir que todas as desigualdades decorrem de discriminação, preconceito, opressão ou condicionamento social. Algumas serão, mas isso não pode ser pressuposto em qualquer caso;

Uma esquerda darwiniana pode:

a) aceitar que existe uma natureza humana, e buscar apurar mais sobre ela, de tal forma que as políticas possam basear-se na melhor evidência disponível de como os seres humanos são;

b) rejeitar qualquer inferência de que aquilo que é “natural” é o “certo”;

c) esperar que, sob diferentes sistemas socioeconômicos, muitas pessoas agirão competitivamente com o fim de fortalecer seu próprio status, ganhar uma posição de poder e/ou avançar seus interesses e aqueles de seus parentes;

d) esperar que, a despeito do sistema socioeconômico em que vivam, muitas pessoas responderão positivamente às oportunidades genuínas de entrar em formas mutuamente benéficas de cooperação;

e) promover estruturas que estimulem a cooperação ao invés da competição e tentem canalizar competição em objetivos socialmente desejáveis;

f) reconhecer que a maneira como exploramos os animais não-humanos é um legado de um passado pré-darwiniano que exagerou a distância entre humanos e outros animais, e, portanto, trabalhar em direção de um mais elevado status moral para animais não-humanos, e uma visão menos antropocêntrica de nossa dominância sobre a natureza;

g) manter os valores tradicionais da esquerda ao estar do lado dos fracos, pobres e oprimidos, mas pensar muito cuidadosamente sobre quais mudanças econômicas e sociais realmente funcionarão para beneficiá-los.

De algumas formas, isso é uma versão profundamente deflacionada da esquerda, onde suas ideias utópicas são  realocadas por uma visão friamente realista do que pode ser alcançado. Penso que isso é o melhor que podemos fazer hoje – e é ainda uma visão muito mais positiva do que muitos da esquerda tem assumido que seja implicado por um entendimento darwiniano da natureza humana.

Se nós levarmos em conta uma perspectiva de muito longo prazo, há perspectivas de restaurar ambições de mudança em larga escala. Nós não sabemos em que extensão nossa capacidade de razão pode, no longo prazo, levar-nos além dos convencionais limites darwinianos ao grau de altruísmo que uma sociedade possa ser capaz de promover. Nós somos seres racionais. Em outras palavras, tenho comparado razão a uma escada rolante, na qual, uma vez que comecemos a racionar, podemos ser compelidos a seguir uma cadeia de argumento para uma conclusão que não antecipamos quando começamos. A razão confere-nos a capacidade de reconhecer que cada um de nós é simplesmente um ser entre outros, todos os quais têm vontades e necessidades que importam para si mesmos, assim como nossas necessidades e vontades importam para nós mesmos. Poderia esse insight mesmo superar a atração de outros elementos em nossa natureza evoluída que agem contra a ideia de uma preocupação imparcial para com todos nossos companheiros humanos ou, melhor ainda, todos os seres sencientes?

Ninguém menos que um campeão do pensamento darwiniano como Richard Dawkins que ofereceu uma perspectiva de “deliberadamente cultivar e criar um altruísmo desinteressado, puro – algo que não tem lugar na natureza, algo que nunca existiu antes na inteira história do mundo”. Enquanto “nós somos construídos como máquinas de genes”, ele nos diz, “nós temos o poder de voltar-se contra nossos criadores”. Uma importante verdade reside aqui. Nós somos a primeira geração a entender não somente que nós temos evoluído, mas também os mecanismos pelos quais temos evoluído e como essa herança evolucionária influencia nosso comportamento. Em seu épico filosófico, A Fenomenologia da Mente, Hegel retratou a culminação da história como um estado de Conhecimento Absoluto, no qual a Mente conhece a si mesma pelo que ela é, e, assim, alcança sua própria liberdade. Nós não temos de comprar a metafísica de Hegel para perceber que algo similar realmente aconteceu nos últimos 50 anos. Pela primeira vez desde que a vida emergiu da sopa primitiva, existem seres que entendem como eles tem vindo a ser o que eles são. Para aqueles temerosos em aumentar o poder do governo e do establishment científico, isso parece mais um perigo que uma fonte de liberdade. Em um futuro mais distante, que podemos ainda vislumbrar vagamente, isso poderá vir a ser o pré-requisito para um novo tipo de liberdade.

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Publicado originalmente no Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart

junior

Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, genética comportamental, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.

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