Esse texto pretende criticar os caminhos tomados pelo discurso liberal no Brasil e oferecer uma proposta que talvez provoque estranhamento entre os frequentadores mais antigos do movimento. Ocorre que um dos principais pressupostos presentes nas ideias de liberdade é o chamado individualismo metodológico. Por curioso que possa parecer, creio que o modo de enunciação desse importante pressuposto liberal tem gerado ruídos que muitas vezes redundam em conclusões e posicionamentos radicalmente antiliberais. Como diria Mises, um ato que provoca o efeito contrário ao que ele próprio pretende é um ato claramente equivocado. Assim, bons admiradores do Mercado que somos, devemos fazer um exercício de alteridade em prol do diálogo e da ampliação da cooperação social: qual o valor de nos prendermos à defesa do termo “individualismo” se as pessoas entenderão, com isso, ideias opostas a que defendemos?
Erguendo a lupa sobre a raiz da questão (e deixando de lado as atuais evidências quanto a suas consequências discursivas), trata-se de um problema meramente linguístico. A gênese do individualismo metodológico está na concepção de que a origem das ações cognitivas reside no indivíduo, e não em entes coletivos. Isso não significa que todas as ações são conscientes, ou que todas as escolhas humanas decorrem do ego, para usar uma expressão da psicanálise. O ponto é que as ações e escolhas partem da individualidade – e não de grupos, da família, da cultura ou da sociedade.
Em nenhum momento, tampouco, isso quer dizer que grupos, família, cultura e sociedade não existam ou não interfiram nas escolhas individuais. Em muitos aspectos, grupos, família, cultura e sociedade constituem o indivíduo, no sentido de que a afirmação de uma identidade perpassa necessariamente pelo processo de negação do que lhe é alheio e reconhecimento do que lhe é comum – além do saudável sentimento de pertença a coletividades. O ponto é que sempre haverá, por trás de todas as influências, uma individualidade que as gerencia e concretiza. Em outras palavras, a coletividade só se expressa mediada através do(s) indivíduo(s) – e o indivíduo se constitui através de sua relação com a sociedade. É o que diz Adam Smith no clássico Teoria dos Sentimentos Morais, escrito em 1759:
“Se fosse possível que uma criatura vivesse em algum lugar solitário até alcançar a idade madura, sem qualquer comunicação com sua espécie, não poderia pensar em seu próprio caráter, a conveniência ou demérito de seus próprios sentimentos e conduta, a beleza ou deformidade de seu próprio espírito, mais do que na beleza ou deformidade de seu próprio rosto. (…) Tragam-no para a sociedade, e será imediatamente provido do espelho de que antes carecia.”
Assim também considerou Mises, em Ação Humana, onde dedica um subcapítulo especialmente à elucidação sobre esse conceito:
“Não se contesta que, na esfera da ação humana, as entidades sociais têm existência real. Ninguém se atreveria a negar que nações estados, municipalidades, partidos, comunidades religiosas são fatores reais determinantes do curso dos eventos humanos. O individualismo metodológico longe de contestar o significado desses conjuntos coletivos, considera como uma de suas principais tarefas descreverem e analisar o seu surgimento e o seu desaparecimento, as mudanças em suas estruturas e em seu funcionamento. E escolhe o único método capaz de resolver este problema satisfatoriamente. Inicialmente, devemos dar-nos conta de que todas as ações são realizadas por indivíduos. Um conjunto opera sempre por intermédio de um ou de alguns indivíduos.”
A ideia permanece consistente – e não é dela que devemos abrir mão -, mas sejamos claros: a imagem evocada quando as pessoas escutam “individualismo” é aquele clichê bem difundido do indivíduo isolacionista, egocêntrico, anti-social e que acredita ser auto-suficiente. Pior: essa visão tem sido reforçada por grupos de brutalistas (para usar a expressão do Jeffrey Tucker) que se autodenominam liberais, mas que parecem buscar somente a completa afirmação do próprio Eu, procurando justificações discursivas para suas convicções egóicas e seus velhos preconceitos que ignoram ou desprezam a importância do respeito ao outro.
Tenho uma teoria sobre o crescimento dessa perspectiva. Ao longo do século XX assistimos a grandes tragédias causadas pela instalação de regimes coletivistas, como o socialismo, o nazismo e o fascismo. No coletivismo há um esforço de homogenização dos diferentes e padronização dos comportamentos, promovendo um verdadeiro apagamento do sujeito, uma anulação da individualidade. No coletivismo pessoas não significam nada por si, não possuem valor por sua existência, mas apenas a partir dos grupos que integram. É a mentalidade nazista que homogeniza e apaga o [indivíduo] judeu; a racista que homogeniza e apaga o [indivíduo] negro; a homofóbica que homogeniza e apaga o [indivíduo] homossexual. Creio que, então, como uma espécie de reatividade à força desse autoritarismo que promovia um intenso apagamento do sujeito, houve a formatação de seu completo oposto por meio da intensa afirmação egóica. Esse ressentimento – essencialmente reacionário – sequestrou o sentido original do termo individualismo, apropriou-se quase por completo da palavra e, assim, comprometeu o entendimento do conceito no contexto do liberalismo.
Um aspecto curioso desse fenômeno é que, diante do abafamento coletivista, essa reação egóica não necessariamente nega o coletivismo enquanto estrutura de pensamento. Pelo contrário: muitas vezes até o reforça, só que com sinal trocado em relação à tendência cultural inicial, que lhe abafa. Como explicava Popper, a postura coletivista que configura a sociedade fechada – aquela dominada por uma cultura autoritária e repressiva – é basicamente o resultado de uma mentalidade tribalista, ou seja, pautada por preconceitos mágicos. São crenças que não precisam de sentido lógico: gays são doentes, negros são inferiores, neoliberais são a encarnação do mal, etc. Em paralelo, a modificação do conteúdo desse preconceito não necessariamente extingue a sua essência preconceituosa (quem não defende a criminalização da homofobia é homofóbico, quem se opõe a cotas é racista, quem não é liberal é comunista-comedor-de-criancinhas, etc.). Parece ser o que tem ocorrido nesse contexto: a forte afirmação do Ego rejeita a auto-criticidade, redundando a expressão de uma mentalidade igualmente tribalista, porém com outro conteúdo específico, permeado de um outro imaginário. Em outras palavras e trazendo o exemplo para mais próximo da realidade que tento descrever, ao tom repressivo da atual tendência pelo politicamente correto (que muitas vezes se transforma em mantra acrítico e ataca a liberdade de expressão), o brutalista responde com tendência politicamente incorreta e igualmente antiliberal (imerso em racismo, machismo e homofobia, por exemplo).
Nesse contexto, a defesa da liberdade de expressão, mal feita ou mal interpretada, muitas vezes acaba se confundindo com uma defesa do conteúdo expressado. Desse modo, ao longo do tempo, em função de um enfoque reacionário pautado na oposição ao discurso hegemônico, o movimento liberal acabou se configurando enquanto um ambiente de receptividade a discursos radicalmente anti-liberais, atraindo desde conservadores até simples desarrazoados sem a mínima consistência ideológica. O resultado desse arranjo foi um cenário curioso – para não dizer trágico:
1. brutalistas se sentiram tão à vontade no movimento liberal que começaram a se enunciar como liberais;
2. a imagem estereotipada dos liberais insensíveis foi reforçada por essa presença constante de brutalistas;
3. muitas pessoas genuinamente liberais – conscientes ou não de suas convergências com as ideias de liberdade -, indignadas com esse tom brutalista, se afastaram do movimento.
Meu ponto é que esse fenômeno, além dos pontos contingenciais, também foi propiciado por alguns elementos discursivos do próprio liberalismo – dentre os quais destaco o apego ao termo individualismo. Hoje assistimos um claro movimento de reafirmação identitária do liberalismo no Brasil a partir de iniciativas dispersas como grupos da rede Estudantes Pela Liberdade – dentre os quais destaco o Coletivo Nabuco e o mais emblemático EPLGBT -, além deste próprio Mercado Popular.
É nessa toada que localizo a importância de defendermos um pós-individualismo liberal, evidenciando o valor das influências culturais que recaem por sobre os sujeitos, para além do indivíduo. Um pós-individualismo que identifique as ideias da liberdade não com os interesses mesquinhos e auto-centrados (que muitas vezes levam ao corporativismo), mas com o clássico valor da simpatia, de Adam Smith, na defesa do Outro, da alteridade, do diferente. Um pós-individualismo que evoque Nabuco e afirme categoricamente que o amor à própria liberdade só é possível através do amor à liberdade alheia.