Passado o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, duas narrativas opostas se confrontam. A primeira diz que o processo foi primordialmente político e que as acusações sobre a ex-Presidenta são diminutas – uma “tecnicalidade”. Uma outra enfatiza que, em termos puramente jurídicos, as provas materiais de crime de responsabilidade são ainda mais presentes no processo de impedimento de Dilma Rousseff do que o eram durante o impedimento de Fernando Collor de Mello.
O que essas narrativas ignoram é que elas não são, necessariamente, mutuamente excludentes. Um processo de impedimento é, por sua própria natureza, tanto político quanto jurídico. Embora tenha sacramentado a necessidade de um crime de responsabilidade para o impedimento, não foi por acaso que o Constituinte deu ao Congresso o papel de processar e julgar o Presidente.
Este dispositivo, na verdade, é um reconhecimento de que esse processo tem de ser tanto jurídico quanto político. Fosse ele puramente jurídico, este deveria ficar a cargo do Ministério Público e do Judiciário. Já se ele fosse puramente político, não haveria necessidade de comprovação de crime de responsabilidade e seria necessário simplesmente uma moção de desconfiança do parlamento, como acontece nos regimes parlamentaristas.
Mas como política e direito se relacionam num processo de impeachment? Este texto faz um esboço de uma teoria que tenta deixar essas relações mais claras. Com isso, com alguma ajuda da estatística, podemos pensar sobre tudo isso de forma mais sistemática.
Uma maneira interessante de pensar sobre o impeachment é pensar que a probabilidade de um impeachment (que vai de zero – quando a probabilidade é nula – a um – quando a probabilidade é de 100%), é uma função de duas variáveis: (a) a circunstância política; e (b) a justificativa jurídica.
Na equação abaixo, o termo que está à esquerda do sinal de igual é uma função dos termos que estão do lado direito[1]:
Como os termos na equação acima se multiplicam, se qualquer um deles tender a zero, a probabilidade de impeachment também tende a zero – e o Presidente não cai.
Isso é bem intuitivo. Por exemplo, tudo o mais constante, se o Brasil não tivesse passado pelo confisco da poupança antes do impeachment de Collor, a probabilidade de que ele tivesse sido removido de seu cargo seria menor, porque as circunstâncias políticas seriam menos favoráveis. Igualmente, quanto mais frágil a justificativa jurídica, menor a probabilidade de impeachment.
É interessante a gente pensar que a relação entre a justificativa jurídica e a circunstância política não é fixa. Ela é fraca quando qualquer um dos termos é muito baixo, mas ela passa a ser forte quando eles são muito altos.
Há um modo bem simples de entender isso.
Caso a justificativa jurídica seja muito forte (pense no exemplo da publicização de um vídeo que mostra um político distribuíndo dinheiro de propina, como foi o caso do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda), ela tende a criar a circunstância política necessária a um impeachment.
Do mesmo modo, quando há uma predisposição política para se retirar um governante do poder, seus opositores vão ter mais incentivos para buscar justificativas jurídicas que fundamentem sua retirada. Esse foi o caso de Collor e Dilma: uma vez que as circunstâncias políticas estavam presentes, os opositores dos presidentes passaram a investir muito tempo em investigações para buscar justificativas jurídicas para um possível impedimento – e as encontraram.
Se isso for verdade, a relação seria mais ou menos como a expressa no gráfico abaixo. O gráfico presume que a gente possa medir a justificativa jurídica e a circunstância política entre um mínimo de zero e um máximo de um – mas isso é puramente ilustrativo. No gráfico, há uma relação muito fraca entre as variáveis quando seus valores são próximos a zero e uma relação progressivamente mais forte à medida em que elas se aproximam de seu valor máximo, resultando nesse formato cônico.[2]
É plausível que a relação entre impeachment e circunstância política ou justificativa jurídica não evolua de forma constante. Na verdade, o mais razoável é imaginar que a probabilidade de impeachment é baixa até determinado ponto e, a partir de determinado limiar, ela rapidamente aumenta, se aproximando de 100%[3]. Entretanto, como a circunstância política e a justificativa jurídica não são perfeitamente correlacionadas, em muitos casos a probabilidade de impeachment é menor do que o seu ponto máximo. Em determinado momento, contudo, o impeachment passa a ser quase certo.
Uma teoria completa sobre o impeachment significa ir além das narrativas simplistas e levar em consideração tanto direito quanto política. Além disso, significa considerar também a relação entre essas duas variáveis que podem causar um impeachment, de modo interativo e complexo.
Na maior parte do tempo, a probabilidade de um impeachment é muito baixa. Mas, quando as circunstâncias políticas e as justificativas jurídicas se combinam e se reforçam mutuamente, ele se torna quase inevitável. Isso é exemplificado por Collor, Dilma, Arruda e tantos outros na história brasileira.
Pensar nessas variáveis de forma sistemática, com a ajuda da estatística, pode tornar uma teoria mais clara e suas interações mais bem sistematizadas. Essa é a contribuição desse pequeno esboço, que tenta ir além das narrativas partidárias.
O código em Python que foi utilizado para essa simulação pode ser baixado no GitHub do IMP.
[1] Em termos mais formais, a probabilidade de impeachment seria a multiplicação de duas funções [probabilidade de impeachment = f(circunstância política) * g(justificativa jurídica)] que podem ter um resultado específico.
[2] Para produzir esse gráfico abaixo, foi utilizada a Cópula de Joe. Para tanto, eu segui os seguintes passos: (a) eu gerei dois vetores com 10 mil valores aleatórios que variam de zero a um, respectivamente x (que representa a circunstância política) e k (um vetor auxiliar); (b) eu calculei um vetor intermediário w = 1 – ( 1 – [ 1 – ( 1 – x ) ^ theta ) ^ (1/k) ) ^ (1 / theta), em que theta é o parâmetro que determina a dispersão dos dados; (c) eu calculei um vetor final, z = 1 – ( 1 – ( 1 – ( 1 – w ) ^ theta ) ^ (1 – k ) ) ^ (1 / theta ), que representa a justificativa jurídica. O gráfico abaixo é um gráfico de dispersão entre x (circunstância política) e z (justificativa jurídica).
[3] Neste caso, eu assumi que ambas as funções marginais seguem uma distribuição logística com média (mu) igual a 0,5 e desvio padrão (s) igual a 0,05. Neste caso f(circunstância política) = ( 1 / (1 + e ^ ( – ( ( x – mu) / s) ) ) ) e g(justificativa jurídica) = ( 1 / (1 + e ^ ( – ( ( z – mu) / s) ) ) ). Como mencionado acima, probabilidade de impeachment = f(circunstância política) * g(justificativa jurídica).