por Anthony Ling

Ostentar, no uso comum da palavra, não é apenas se exibir, mas principalmente uma sinalização de status social, normalmente associada a riqueza e poder. A partir da periferia (em particular a Baixada Santista, conforme o ótimo documentário abaixo), a ostentação material explodiu no mundo da música brasileira: o “funk ostentação” surge cantando como o (ou a) vocalista tem produtos de grife e esbanja seu dinheiro sem cuidado, com letras carregadas com nomes das marcas que normalmente são falsificadas – justamente com o propósito de ostentar

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Muitos dissecam esse “fenômeno social” como um retrato do consumismo brasileiro que, embora país pobre, teria sido dominado por uma ideologia capitalista capaz de destruir nossos sentimentos morais em troca de supérfluos bens materiais. O retrato dessa nova periferia é o de uma nova classe média destruída pela imposição de um mundo onde o que vale é dinheiro como um fim em si mesmo.

Essas teorias me parecem mal direcionadas quando olhamos para trás, não só para sociedades que passaram mas para todo universo de seres vivos, onde sinalizar poder e status é uma atividade constante. Lembra das aulas de biologia, daquela história de que as penas do pavão servem para sinalizar sua capacidade reprodutiva? A natureza ostenta, sinalizando poder e status, muito antes do homem.

Até mesmo “sinais desonestos”, como um morador da periferia que se esforça ao ponto de se endividar arriscadamente para sinalizar riqueza, tem traços que facilmente podem ser encontrados na natureza. Existem espécies de caranguejos que, após perderem suas garras, são capazes de crescê-las novamente apenas visualmente, sem força suficiente para caçar ou se defender, mas para sinalizar “desonestamente” seu poder a predadores ou para a finalidade de reprodução.

Nas sociedades humanas a sinalização estética – ou ostentação material – tem suas origens tão cedo quanto a capacidade humana de poder fabricá-la, além das características físicas naturais de casa um. Artefatos arqueológicos e evidências antropológicas de tribos caçadoras-coletoras que sobrevivem com poucas alterações até hoje mostram que humanos sempre tiveram o costume de criar formas estéticas de representação de poder, mesmo sendo simples ornamentos com pintura corporal ou ossos de animais.

“O dele é lata, o meu é ouro” – MC Daleste

Com a evolução dessas técnicas e da capacidade humana de transformação dos recursos ao seu redor surgiram novos tipos de ornamentos ostentativos a partir da manipulação do ouro e da lapidação de pedras raras, a forma mais comum até hoje. Jóias em ouro tem suas primeiras aparições já na Mesopotâmia, chamada de “berço da civilização”, onde já ocorria a divisão do trabalho e relações de trocas, principalmente na forma de escambo, mas muito antes de qualquer forma de sociedade que podemos chamar de capitalista.

Se achamos que Mc Daleste é um exemplo de ostentação, o que deveríamos falar dos imperadores egípcios, que ostentavam até na morte, levando riquezas ao túmulo? Apesar disso, a qualidade de vida dessas pessoas, a despeito de serem imperadores, era muito inferior ao que os MC’s da ostentação possuem hoje. Era uma época com expectativa de vida pior que as regiões mais pobres do Brasil, mortalidade infantil altíssima e onde saneamento “básico” era considerado o maior dos luxos. Mesmo assim, ostentação era tão significativo no Egito antigo que a quantidade de recursos gastos pelos imperadores para essa finalidade era absurdamente maior em termos relativos à riqueza existente na época.

Desde então nossa sociedade evoluiu de forma não só a criar diversos tipos de “tribos”, com formas diferentes de sinalizar status dentro de cada microcosmo social, mas também de popularizar o acesso às formas de ostentação que a humanidade tinha no passado, então restrita a um punhado de governantes que detinham controle total do poder e dos recursos. A mera possibilidade de ostentação com joias equivalentes a imperadores do passado nas periferias de cidades brasileiras é um sinal de que a humanidade andou um longo caminho na ampliação do acesso a recursos, resultado não da redistribuição de o que existia mas em saltos astronômicos na produção de recursos e serviços, sendo distribuídos através do comércio, chame ou não isso de sistema capitalista.

A moda contemporânea surge a partir do filtro dessas diferentes formas de sinalização em meio à infinidade de diferentes estilos que são criados diariamente por cada cidadão que decide sinalizar algo diferente quando se olha no espelho pela manhã. Enquanto no passado existia dicotomias rígidas de padrões sociais em uma determinada sociedade, o aumento de acessibilidade à informação, a globalização de culturas e a acessibilidade a qualquer estilo em virtualmente qualquer lugar do mundo possibilita que status seja adquirido entre pares das mais variadas formas, não necessariamente ostentando riquezas materiais.

É exatamente nesse momento de abundância de recursos que a elite toma uma nova posição e começa a se distanciar dessas formas “banais” de ostentação, apesar da permanência da vontade humana de sinalizar e se destacar, parte da nossa natureza que não vai mudar muito cedo.A empreendedora africana Magatte Wade, em artigo recentemente publicado na African Business Review, coloca a questão em perspectiva. Ela comenta que, com centenas de milhões de pessoas sendo capazes de comprar bolsas da Louis Vuitton, uma marca há décadas considerada cara e ostentativa, esses objetos já não são mais atraentes para a elite. Os “novos ricos” dos quais eles tentam se distanciar hoje consomem e ostentam com aquilo que sempre entenderam como uma sinalização de riqueza e poder. Para as elites, é algo, sem dúvida, brega e “sem gosto”. Magatte, que possui uma linha de produtos de beleza que usa receitas tradicionais do Senegal, seu país natal, e cuja produção ajuda no desenvolvimento de comunidades carentes na África afirma: “significado é o novo luxo”.

Hoje os jovens profissionais da elite, também chamada de “classe cultural” ou “classe criativa”, que já corresponde a 30% do mercado consumidor dos EUA, buscam a sua sinalização e posicionamento social não no preço pago por um determinado produto mas pelos valores que a fabricante possui ou representa. É cada vez mais frequente a pesquisa sobre as práticas empresariais não só para consumo, mas inclusive para a busca de uma carreira profissional em uma determinada empresa.

A sustentabilidade e o consumo consciente estão gradualmente se tornando a regra no mercado, sendo socialmente mal visto nessas tribos pelas vias tradicionais. Se deslocar de bicicleta, por exemplo, virou símbolo de uma geração consciente com questões globais, relacionadas à emissão de poluentes na atmosfera, questões locais, diminuindo o trânsito da cidade, e com saúde, onde o meio de transporte é, ao mesmo tempo, esporte. Mas com metrópoles espraiadas, com enormes periferias segregadas dos centros produtivos, são poucos os brasileiros que tem condições de morar a distâncias próximas das suas atividades a ponto de permitir o uso da bicicleta como principal meio de transporte.

Assim como o funk ostentação da periferia, o reflexo da nova ostentação aparece nas músicas preferidas por essa elite jovem. Um dos maiores sucessos musicais de 2013 nos EUA que agora estoura nas rádios brasileiras foi o cantor de rap Macklemore. Visto que hip-hop nos EUA é também uma gênero que surgiu nos bairros mais pobres dos guetos americanos – o paralelo do nosso funk – o ritmo normalmente agrada os jovens de todas as classes, mas com letras não longe do funk ostentação brasileiro. A genialidade de Macklemore, que lhe rendeu quatro Grammys, foi justamente usar o gênero para abordar questões sociais como o casamento gay (“Same Love”), ou mostrar como pode ser cool comprar roupas em um brechó gastando apenas U$20 (“Thrift Shop”).

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Na era da abundância, quando a humanidade se acostuma a ter suas necessidades básicas atendidas, a ostentação – ou sinalização em busca de status – se torna moral, não material, mas permanece parte da nossa natureza. A visão da ostentação – tanto de forma positiva quanto negativa – como um subproduto do capitalismo, acaba se tornando limitada ao observar que são várias as ações, na maioria delas inconscientes, que fazem seres humanos tentarem se destacar em seus meios. Justamente por fazer parte da nossa humanidade, não deveríamos sentir vergonha desse comportamento, mas tentar entendê-lo para conseguirmos traduzir o mundo ao nosso redor e o comportamento de nós mesmos.

 

anthonyAntony Ling é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele edita o blogue Rendering Freedom, gerencia projetos no Instituto Ling e está escrevendo o livro Caos Planejado.

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