Por Jeffrey Tucker e Cathy Reisenwitz

Ludwig von Mises é amplamente conhecido como um revolucionário no campo da economia, mas seus esforços empreendidos em revolucionar também o perfil dos economistas é menos conhecido. Ele tentou disseminar a ideia de que a participação das mulheres era essencial para melhorar o estudo da alocação dos recursos escassos, embora em sua época elas fossem excluídas e denegridas na Academia.

Seu mundo era a Viena do entreguerras, um dos ambientes mais vibrantes e revolucionários no mundo. Desta mistura cultural saíram alguns dos mais importantes pensadores do século vinte, bem como diversos movimentos intelectuais que viriam a transformar nosso mundo. Freud, Mahler, Spann, Machlup, Wittgenstein, Neurath, Schumpeter, Morgenstern, Mises, Hayek, Weber, Weiser, Popper . . . seus nomes e legados continuam reverberando até os dias de hoje.

Essa mistura interdisciplinar de ideias e influências nos deu o marginalismo na economia, a inclusão da matemática nas ciências sociais, o modernismo na música, o positivismo na metodologia, a psicoterapia na psicologia e preservou o espírito do liberalismo em uma era em que ele se dissipava em praticamente todas as outras partes do mundo. Lá, o liberalismo era uma um tema central em todas as esferas: economia, artes, ciências, política e relações entre os sexos. Nenhuma área era deixada de lado e os avanços em uma área passavam a influenciar as outras áreas.

Mas um fato se destacava nesse cenário de ebulição acadêmica: mulheres não eram bem aceitas na Academia. Somente em 1897 mulheres passaram a ser aceitas como estudantes na Faculdade de Filosofia da Universidade de Viena. Medicina e Direito somente viriam mais tarde. Mas isso era somente a autorização para que elas fossem estudantes de graduação. Cursos de pós-graduação ainda eram tabu. Se tornar professora, então, era uma missão impossível.

Embora mulheres fizessem sucesso na literatura popular e na música, barreiras continuaram a existir em instituições oficiais. Naquela época, como hoje, o mercado pavimentou o caminho para uma sociedade mais inclusiva. A Academia, contudo, ainda estava a quilômetros de distância de tais novidades culturais. Isso implicava no fato de serem negadas as credenciais acadêmicas às mulheres, o que impedia sua participação como contribuintes sérias no mundo das ideias.

O grande empreendedor cultural Ludwig von Mises estava decidido a mudar isso. Ele compreendia plenamente o que era ser excluído socialmente. A despeito de seus grandes feitos acadêmicos e contato com as grandes mentes de seu tempo, Mises nunca conseguiu uma cátedra universitária – e ele estava longe de ser uma exceção. Somente após terminar um tratado sobre economia monetária, em 1912, ele conseguiu um emprego não-remunerado numa Universidade. Entrementes, ele tinha de pagar suas contas. Inicialmente, ele trabalhou em um escritório de advocacia e posteriormente na Câmera de Comércio.

Mesmo antes de mulheres serem admitidas nos cursos de economia, em 1919, Mises lecionou um curso sobre o sistema financeiro em que a maioria dos estudantes eram mulheres da faculdade de filosofia. Era, ali, o professor excluído ensinando as estudantes marginalizadas. Essa experiência seguramente teve amplo impacto sobre Mises. Naquela época, ele começou a escrever seu livro Socialismo, no qual ele descreveu (dentre outras coisas) a forma como o Capitalismo se tornou uma força motriz na liberação de mulheres da violência, assim como rebateu os argumentos socialistas de que coletivismo era o única caminho para a liberação feminina.

Ao invés de deixar para os coletivistas a temática fundamental de como superar o machismo cultural e institucionalizado, Mises tomou este problema com seriedade e ofereceu suas próprias soluções para ele. Os argumentos miseanos para a igualdade de gênero soam revolucionários até mesmo nos dias de hoje.

“A luta feminina para a preservação de sua personalidade no casamento é parte da luta pela preservação da integridade pessoal que caracteriza uma sociedade baseada na razão, com uma ordem econômica baseada na propriedade privada dos meios de produção (…) Toda a humanidade sofreria se as mulheres não desenvolvessem seus egos e fossem incapazes de se unir com os homens como parceiros livres e iguais.”

 Sua reconstrução da história das relações sexuais delineia com precisão o que o princípio da violência contra as mulheres significava para o status feminino na história. Aqui ele soa Friedaniano (ver The Feminine Mystique, por Betty Friedan, escrito em 1963):

 “O domínio masculino absoluto caracteriza as relações familiares onde reina o princípio da violência. A agressividade masculina, que está implícita na própria natureza das relações sexuais, é ali levada ao extremo. O homem toma propriedade da mulher e a detém esta como objeto sexual, da mesma forma que detém outros bens. Neste contexto, mulheres se tornam plenamente um objeto. Ela é roubada e comprada. Ela é doada e vendida. Em suma, ela é como um escravo que vive dentro de casa. Durante sua vida, o homem é seu juiz. Depois da morte dele, ela vai ser enterrada em sua cova, junto com todas as suas outras posses. A história legal mostra que, em quase a totalidade dos nações, este foi, no passado, uma situação considerada legítima.”

Sob a lei da violência, diz Mises, o resultado é subjugação.

“O princípio da violência reconhece somente o homem. Somente ele detém o poder – e portanto somente ele tem direitos. A mulher é simplesmente um objeto sexual. Nenhuma mulher pode existir sem um Senhor – seja este seu pai, guardião, marido ou empregador. Mesmo prostitutas não são livres; elas pertencem ao dono do bordel. Os que buscam serviços sexuais fazem seus contratos com este e não com aquelas. A mulher da vida é usada por qualquer um para o livre exercício dos prazeres masculinos. Mas o direito de escolher um homem para si não pertence à mulher. Ela é cedida a seu marido e por ele tomada. É seu dever amá-lo, talvez também sua virtude – e tal sentimento vai definir o prazer que cada homem deriva do casamento. Mas à mulher não se pergunta qual é sua opinião. O homem tem o direito de repudiá-la e dela se divorciar; ela própria não tem tal direito.”

Essa é uma crítica devastadora de todas as formas de poder estatal, mas do socialismo em particular. Em termos práticos, o socialismo não significa o empoderamento dos trabalhadores ou a propriedade coletiva dos meios de produção. Ele significa o papel central do Estado na organização de todas as esferas sócio-econômicas. E, como Mises explicou por muitas vezes, o Estado só tem um método a sua disposição: a violência contra as pessoas e suas propriedades. Portanto, promover o socialismo como uma política significa eleger a violência como princípio e, de tal sorte, indiretamente restaurar as relações entre homens e mulheres a uma situação pré-capitalista, quando a violência (e não o contrato) era a base das associações.

Em outras palavras, era precisamente porque o capitalismo ajuda a libertar as mulheres das relações violentas, como um princípio social, que ele favorecia esse sistema econômico. O capitalismo é, na prática, a forma de implementar os objetivos feministas na realidade. Por tal motivo, Mises diz, “tanto quanto o feminismo busque equalizar os direitos legais das mulheres àqueles dos homens e tanto quanto ele busque oferecer àquelas a liberdade legal e econômica para se desenvolver conforme suas inclinações, desejos e circunstâncias econômicas, ele não é senão um braço do grande movimento liberal, que advoga a mudança livre e pacífica”.

Para Mises, tal profunda convicção não era somente uma teoria, mas algo a ser posto em prática. Por isso, quando ele podia fazê-lo, Mises promovia ativamente os interesses das mulheres na academia. O biógrafo Jorg Guido Hulsman explica: Mises era um dos poucos homens que, quando em uma posição de liderança, promoveu jovens intelectuais mulheres. Lene Lieser, Marianne Herzfeld e outras escreveram suas teses de doutorado sob sua supervisão. Lieser, Herzfeld, Ilse Mintz, Martha Stephanie Braun, Elisabeth Ephrussi e outras eram membras ativas de seu seminário privado. É verdade que ele não conseguiu dar a nenhuma delas uma cátedra – mas ele tampouco conseguiu fazê-lo para seus estudantes homens, ou mesmo para si. Mas ele conseguiu ajudá-las a conseguir empregos em que se pode ganhar algum dinheiro enquanto se permite desenvolver seus interesses intelectuais. Este foi o caso de Herzfeld e Liser, que foram ambas contratadas pela Associação Austríaca de Bancos e Banqueiros.

Cada uma dessas mulheres se tornou bem sucedida em um campo de estudo – economia, tradução, arte, história – e seu valor profissional era visto e cultivado por Mises, desafiando as antigas tradições que fechavam às mulheres as portas para essas carreiras.

Veja que irônico. Hoje em dia, se você perguntar a qualquer pessoa de esquerda sobre  o que ela pensa sobre Ludwig von Mises, ela vai ter uma resposta na ponta da língua. Ele é um velho reacionário de Viena que importou a ideologia capitalista para os EUA no pós-guerra; um homem que olhava para o passado com o desejo de trazer de volta as instituições e cultura do século dezenove. Mas a realidade é diferente. Em Viena, o núcleo de ideias progressistas dos anos 1920, ele se destacava como um progressista em direitos femininos: “um dos poucos homens em um papel de liderança que pró-ativamente promovia intelectuais mulheres”.

Claro, os tipos que trabalham pra FEE [NT: acrônimo de Fundação para Educação Econômica, um centro de pesquisas liberal nos EUA] entendem que Mises foi mentor de diversas mulheres. Uma das relações mais profundas veio de sua orientação de Bettina Bien Greaves, que escreveu e editou um grande número de livros revolucionários, inclusive diversas edições de Ação Humana, e trabalhou para a FEE durante sua longa carreira.

Agora, considere a atual controvérsia sobre leis de não-discriminação e a chamada ação afirmativa, que buscam impor os interesses femininos sobre os masculinos. Esta parece ser um revés contra o feminismo e um estímulo para ativistas conservadores. Estava Mises praticando ação afirmativa como a gente contemporaneamente a compreende? Não, pois ele não favorecia os interesses femininos puramente com base no gênero. Na realidade, ele via as intelectuais mulheres de Viena como um recurso humano subvalorizado. Isso não é “tratamento privilegiado”, mas um ato de empreendedorismo: descobrir valor onde a sociedade ainda não o encontrou. É isso que empreendedores fazem todos os dias no mundo de recursos naturais. Mises aplicou a mesma lógica ao mundo das ideias.

Vejamos agora um exemplo contemporâneo do que significa ser feminista: superar preconceitos históricos advindos da era da violência e seguir rumo ao avanço das liberdades de associação e de contrato como um princípio da ordem social. Esse esforço requer empreendedorismo – isto é, a descoberta de valor onde este tem sido ignorado? Sim, e não somente quanto a recursos materiais, mas também quanto a um certo tipo de pessoas que tradicionalmente tem sido subvalorizado como recurso humano – isto é, como colegas que podem participar de parcerias produtivas em busca de um fim comum.

O fato de Mises ter se preocupado de forma genuína com como a sociedade pode ser tolhida das contribuições femininas por causa do machismo deveria ser um sinal para todos os individualistas contemporâneos. Mises criticava não somente o Estado se imiscuindo com a liberdade feminina, mas também aquelas formas de opressão emergentes da cultura. Ele corretamente denunciou como um impedimento à liberação feminina a objetificação sexual, mesmo aquelas privadas e não levadas à cabo pelo Estado, que estão incrustadas na cultura, leis e tradições.

Seu exemplo indica o caminho de um correto entendimento do feminismo hoje. Como podemos, como defensores do livre mercado, argumentar que o mercado é a grande fonte de prosperidade através de inovação e, logo em seguida, ficarmos inertes frente a seus efeitos sendo limitados por expectativas de gênero, em especial aquelas incrustadas na violência da lei ou aquelas inerentes a preconceitos socio-culturais?

Como podemos ignorar a violação de direitos humanos incrustadas nas leis que proíbem serviços de natalidade remunerados, impõem violência contra trocas sexuais pacíficas e banem ou limitam vocações como a de parteira? Deixando de lado discordâncias morais sobre aborto, como podemos afirmar e apoiar a liberdade individual e, ao mesmo tempo, apoiar políticos que buscam ganhos políticos ao cinicamente flertar com a nacionalização dos filhos, das relações sexuais, e, em particular, da decisão das mulheres sobre a função biológica de seus corpos?

A era do contrato ainda não chegou, não para todos. Ainda há muito trabalho a ser feito. Quanto mais valor vai ser descoberto ao derrubarmos as barreiras à livre associação e ao superarmos os preconceitos históricos? E quem está mais apto a alcançar tais metas: burocratas ou empreendedores?

Mises sabia que deixar para os socialistas a missão de retificar os erros do machismo seria um pecado capital para os defensores do livre mercado. E ainda o é. Mas ele também lamentava, pessoalmente, a subrepresentação das mulheres na Academia – tanto o é que ele lutou para corrigir esses erros o tanto quanto pôde.

Vamos responder seu chamado à consideração da situação das mulheres de forma séria. Vamos descobrir valor onde este foi ignorado. Mises era um feminista antes disso ser “cool”. Todos os defensores do livre mercado também deveriam sê-lo.

Publicado originalmente pela FEE. Traduzido por Carlos Góes.
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