por Carlos Góes
Seguramente você já ouviu sua avó ou professora de jardim de infância dizer: “liberdade não é libertinagem”. Mais recentemente, essa frase canônica passou a ser repetida como mantra de um blogueiro conservador de Veja.
Mas, afinal, o que é libertinagem?
O termo surgiu para denominar os oponentes de João Calvino na política de Genebra do Século XVI. Calvino, o ministro religioso que foi um dos líderes da Reforma Protestante, era também uma importante figura política. A moralidade sob o calvinismo era um assunto social, não algo individual e privado – devendo portanto ser regulada pelas autoridades políticas. Calvino, conhecido por seu estrito e austero código moral, utilizou seu capital político para fazer avançar os poderes eclesiásticos sobre os mais particulares elementos da vida das pessoas.
William Gilbert relata algumas das proibições morais que foram levadas a cabo por Calvino:
Era proibido dar nomes não-bíblicos às crianças. … As casas dos cidadãos eram visitadas para garantir que a moral das famílias estivesse em bom estado. … Em 1546, o carteado e o jogo de dados foram proibidos. As tavernas foram banidas. … Essas [as tavernas] deveriam ser substituídas por lugares para comes e bebes em que estivesse disponível uma Bíblia e as conversas religiosas fossem estimuladas enquanto a bebida em excesso, as músicas indecentes, os palavrões, o carteado, os dados e a dança estivessem proibidos.
Mas nem todos aceitaram os avanços teocráticos de Calvino calados. Esses foram opostos por Ami Perrin, o lider dos… Libertinos! Os Libertinos defendiam que a moralidade e religiosidade não deveriam ser impostas pelo governo – ao menos não no nível tão minucioso imposto por Calvino. A resposta dos teocratas, naturalmente, foi a de associar todos aqueles que se opunham politicamente à regulação da moral aos vícios e imoralidades que os calvinistas viam como pecaminosos. Daí surgiu a associação entre o termo “libertinagem” e tudo aquilo que se opõe à moral majoritária.
O que os conservadores de hoje (como Calvino há 500 anos) não percebem é que ter a escolha entre seguir ou não a moral majoritária é um aspecto fundamental da liberdade.
Por um lado, as transformações sociais espontâneas, que emergem de baixo para cima, dependem daqueles que decidem transgredir a ordem e o status quo. Muitas vezes esses transgressores, tão importantes para as constantes revoluções e transformações sociais, são tachados de “libertinos” num momento inicial.
Por outro, mesmo aqueles que não concordam com determinadas opções podem valorizar a liberdade de escolher ser (ou não ser) um libertino. Você não precisa concordar com determinada conduta para saber da importância de poder decidir o que você quer fazer com sua própria vida. Ainda que você ache que algo é errado, o poder de escolha é fundamental.
Um bom exemplo de como libertinagem é liberdade pode ser encontrado numa história real. Nos anos 1970, o americano Larry Flynt, dono da revista adulta Hustler, foi censurado porque sua revista continha material “indecente” e “imoral” – isto é, que feria a moral pública. Os procuradores que atuaram no caso, em nome dessa moral coletiva, argumentavam que as liberdades civis não abrangiam a libertinagem de Larry Flynt, enquanto o advogado de Flynt afirmava que a liberdade de expressão protegia seu cliente. Um dos casos acabou chegando à suprema corte americana, e Flynt foi absolvido – mas não antes de sofrer um atentado de um fanático religioso que o deixou paralítico.
No filme que conta essa história (O povo contra Larry Flynt, 1996), o advogado de Flynt faz um discurso bem interessante. Ele diz que pessoalmente não gosta de revistas pornográficas, mas ele gosta de viver em um país que lhe dê o direito de lê-las ou então jogá-las no lixo. Ele gosta de ter o direito de expressar sua opinião sobre o conteúdo da revista ao escolher comprar ou não a revista. Se a revista for proibida, esse direito de manifestação é tolhido de todos – inclusive dos que dela desgostam.
[Veja o magnífico discurso abaixo]
De fato, só existe virtude na boa escolha se a escolha ruim também for uma opção. Se eu for obrigado a fazer a escolha que eu considero “boa”, eu não tenho nenhum mérito em fazê-la. Mas se eu puder parar e julgar aquilo que é moralmente certo e o que é moralmente errado, aí sim vou poder me regozijar em fazer, livremente, a decisão certa.
Sem a possibilidade de errar ou de transgredir a moral social – de ser um libertino! – não há liberdadade. Gandhi expressou essa relação de forma singular:
A liberdade que não inclui a liberdade de errar de nada vale. Nunca conseguirei compreender como [alguns] seres humanos, muitas vezes tão experientes e capazes, possam se maravilhar em negar a outros seres humanos esse direito tão precioso.
O que Gandhi diz nas entrelinhas é que esses seres humanos “experientes e capazes”, sob a desculpa de não deixar os outros “errar”, na verdade acham que sabem como todos os outros devem viver suas vidas. Tal julgamento pouco humilde de si mesmo é, muitas vezes, refletido em prepotência e desejo de cercear a liberdade alheia.
Essa prepotência pode ser encontrada por todo o espectro político. Ela se encontra na lei escrita pelo Deputado Rui Falcão (PT-SP), que objetivava proibir a propaganda de alimentos “não-saudáveis”. E pode ser vista na recusa de Rodrigo Constantino de dar aos outros a oportunidade de formar arranjos familiares que ele considera imorais em igualdade jurídica aos que ele considera morais. Em ambos os casos, os proponentes julgam saber o que é o “correto” e, com base em seu julgamento absoluto, procuram moldar o comportamento alheio conforme sua imagem e semelhança.
Prepotências de esquerda e de direita à parte, a realidade é que, na maioria das vezes, a mais humilde das donas de casa no interior do Maranhão sabe cuidar melhor da sua vida do que os doutores que querem controlá-la a partir de uma torre de marfim. Ela que conhece sua realidade, seus desejos e seus sonhos. A celebração da liberdade de escolha deriva do reconhecimento de nossa própria incapacidade de saber como os outros devem viver suas vidas, porque não temos capacidade de conhecer todas as especificidades das circunstâncias particulares. Ela deriva do reconhecimento de nossa própria ignorância.
Aqueles que acreditam em uma sociedade livre fazem, antes de tudo, um exercício de humildade.
Manuel Bandeira sabia disso – e por isso começou seu livro Libertinagem com um poema que tem os seguintes versos:
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça
É a dengue nos olhos que cria a “libertinagem”.
Os que acreditam numa sociedade livre reconhecem que não podem ter certeza de que sua percepção do correto é perfeita – e por isso não podem impor sua visão aos outros, ainda que eles achem que ela é acertada. Não fazem como Calvino e não reivindicam para si o monopólio da verdade e da moral. Não se intrometem em relações pacíficas e voluntárias entre adultos. Não têm dengue nos olhos.
E assim percebem que liberdade sem possibilidade de escolher ser libertino não é liberdade. Libertinagem é liberdade, sim! – não importa o que diga sua avó, sua professora de jardim ou os blogueiros de Veja.