Por Valdenor Júnior
Se você acompanha minhas postagens aqui do Mercado Popular, ou meu blog pessoal, sabe que eu sou um libertário bleeding heart de carteirinha, mais precisamente um “liberal neoclássico do Arizona“. Isso significa que eu defendo liberdade individual (incluindo livre mercado) e justiça social, ao mesmo tempo. Justiça social não significa igualdade ou socialismo, mas sim a ideia de que as instituições de uma sociedade devem ser aceitáveis para todas as pessoas que a compõem, de modo que nenhuma seja deixada para trás, nessa grande cooperação em mútuo benefício que a sociedade deve ser. Matt Zwolinski bem explica isso:
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=LLkXK5WDGeg[/youtube]
Isso significa que, na distribuição da renda gerada por meio de arranjos contratuais em uma economia de mercado moderna, aquelas pessoas que estão na base, os trabalhadores de menor remuneração/renda/riqueza, também devem ser beneficiados. Uma sociedade não é socialmente justa se beneficia apenas os 1% mais ricos. Nós precisamos prestar atenção à vida do homem comum, às condições dos trabalhadores que ganham menos, à estimulação mental e à renda material que são proporcionadas aos mais desfavorecidos. Ao contrário da crença popular, uma economia livre, movida por inovação rumo a um futuro aberto e desconhecido, é a melhor forma de alcançar justiça social para os mais pobres. É verdade que uma rede de segurança social limitada pode também contribuir; mas o grosso quem faz é a geração de renda, emprego e oportunidades por intermédio do livre mercado (que não pode ser confundido com o capitalismo de compadrio!).
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=DHQL_rUm7oE[/youtube]
Contudo, o pensamento libertário bleeding heart (em sentido estrito, excluindo os left-libertarians que se consideram sob esse rótulo) não é geralmente associado com a ideia de desmonopolização da jurisdição do Estado, ou com a abolição do Estado, ou qualquer dessas ideias que encontramos no liberalismo radical. Entre os liberais neoclássicos do Arizona, aparentemente apenas Kevin Vallier flerta com o anarquismo de mercado, pois já defendeu que um corpo político policêntrico liberal poderia, ao menos em abstrato, gerar um Direito publicamente justificado no sentido da razão pública, que os Estados não são nem obrigatórios, nem proibidos pela justiça, mas sim permitidos, e que fundamentos políticos liberais justificariam a possibilidade da experimentação anarquista de mercado.
Eu gostaria de convidar mais libertários bleeding heart a refletirem sobre as possibilidades da experimentação em matéria de “provisão privada do Direito”. Escrevi um texto para o blog coletivo Liberzone, denominado “Concorrência entre provedores públicos e privados do Direito e da segurança“, onde defendo que devemos tomar três passos para tirar o monopólio do Direito das mãos do Estado e obter um sistema “misto” de concorrência entre provedores públicos e privados do sistema legal:
1) direito de secessão das comunidades locais em relação ao Estado, como já existe no Liechteinstein (veja o texto de Armando Martins aqui no Mercado Popular, e esse texto meu em meu blog), de modo que o Estado não possa forçar que comunidades fiquem sob sua jurisdição;
2) direito de criar “cidades livres” (free cities, charter cities, seasteading), para provisão do Direito seja por uma organização pública (um Estado “convidado”, no modelo de Paul Roemer), ou por uma empresa/associação privada (o modelo favorecido por muitos libertários), o que significa que você pode efetivamente concorrer com o Estado se puder investir em uma cidade privada e oferecer um sistema legal que a torne atrativa ao investimento e à imigração, e já existem projetos em andamento, como o que estão tentando fazer em Honduras;
3) direito de contratar com franquias de provisão privada do Direito, mas sob supervisão anti-trust de um Estado que, deixando de ser provedor do Direito, apenas segue um mandato constitucional, que especifica alguns (poucos) limites ao que as agências privadas podem oferecer e proíbe arranjos secretos entre as agências privadas que possam conduzir à alteração lesiva da estrutura de direitos dos clientes, sendo esse Estado, talvez auxiliado por “vigilâncias comunitárias de vizinhança“, o zelador de tal quadro constitucional. Essa ideia de supervisão anti-trust devo ao Robin Hanson, ainda que eu a tenha desenvolvida com algumas modificações. (vide também Gillian K. Hadfield)
Libertários bleeding heart sempre enfatizam o peso das instituições. Nós precisamos de instituições legais que de fato favoreçam a todas as pessoas, e, assim, satisfaçam os ditames da justiça social. E essas “todas as pessoas” faz parte de um ideal cosmopolita, que recomenda livre imigração e livre circulação de todas as pessoas que queiram cooperar pacificamente em interações de mercados ou relações civis.
Mas perceba: não faz diferença se o provedor dessas instituições legais seja público ou privado. Uma empresa privada poderia fazer operar em uma “cidade livre” um sistema jurídico mais amigável ao livre mercado, provavelmente com uma rede de segurança básica, que satisfaça aquilo que os teóricos do liberalismo do Arizona entendem por justiça social. Como geralmente esses teóricos aceitam que há um conjunto de opções justificadas (veja o trabalho de Gerald Gaus e de David Schmidtz), então empresas privadas podem oferecer sistemas diferentes de “instituições legais socialmente justas”, que serão mais atrativos para diferentes pessoas. Cada pessoa poderia buscar sua utopia, conforme já havia prenunciado Robert Nozick em “Anarquia, Estado e Utopia”.
Um dos mais conhecidos defensores das “cidades livres” é o libertário Michael Strong, que já foi considerado por alguns como um libertário bleeding heart (em um sentido amplo). Ele de fato é bastante progressista e inclusive defendeu “dividendos de cidadão” e “fundos de empoderamento às mulheres” financiados pelo investimento em cidades livres. Aqui um breve artigo que explica em linhas gerais como seria esse financiamento alternativo de uma rede de seguridade social. Também criticou os Estados de Bem-Estar social como condomínios fechados, assim como eu fiz em um artigo aqui para o Mercado Popular. O acesso a sistemas jurídicos de alta qualidade, por meio de cidades livres, é defendido por ele como forma de reduzir a pobreza. (aliás, Paul Roemer, como pioneiro desse conceito, também tinha esse objetivo)
Assim, esse empreendedorismo social radical sobressai como instrumento de justiça social. Imagine que você (supondo que tenha dinheiro suficiente) queira construir uma cidade no Brasil. Para atrair pessoas para viver em sua cidade (e assim cobrando-lhes uma taxa de aluguel por obterem um espaço nela), você oferece aos potenciais residentes uma infra-estrutura jurídica propícia ao investimento e aos negócios, com juízes experientes e de alta reputação internacional em arbitragem comercial, e assegurando amplas liberdades civis e proteção robusta à propriedade privada e ao investimento realizado. Digamos que seu objetivo com isso seja ganhar do governo brasileiro em Brasília em uma série de medidas: tempo para abrir um negócio, transparência, renda per capita, custo e tempo gastos com processos judiciais, taxa de desemprego, etc. Isso seria justiça social!
(Do que esta família realmente precisa?)
Se essas possibilidades muito interessantes que nos aguardam no futuro de fato derem certo, teremos um resultado no mínimo irônico: fornecedoras privadas do Direito (incluindo empresas de fins lucrativos) derrubariam barreiras à justiça social cuja retirada as soluções estatistas preferidas pela esquerda tradicional tanto atrasaram.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, tem o blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Com Darwin aprendeu a valiosa lição de que entender o babuíno é mais importante do que se imagina.