Um dos assuntos mais comentados desse início de 2014 no Brasil tem sido o fenômeno do rolezinho. Jovens da periferia, muitos deles adeptos do estilo chamado funk ostentação (roupas de grife, bonés e correntes de prata), convocam pela internet um passeio em massa pelos shoppings de grandes cidades – ações que começaram em São Paulo e Guarulhos, mas tem dado mostras de que podem se espalhar. Ainda em dezembro, cerca de 6 mil jovens se encontraram no shopping Metrô Itaquera, zona leste da capital paulista. No sábado, 04/01, foram 400 pessoas no Shopping Metrô Tucuruvi.
Os eventos têm causado forte rebuliço, muitas vezes correria e sentimento de pânico. Lojistas fecharam as portas mais cedo, a polícia foi convocada e… não houve sequer um registro de furto. Apesar disso, o medo fez com que os centros de compra buscassem medidas judiciais para proibi-los – e o êxito obtido na empreitada ampliou ainda mais a repercussão da história. As intensas reações ao rolezinho e à proibição já despertaram uma espécie de polaridade entre aqueles que enxergam higienismo ou aparthaid social e aqueles que vêem tão somente a necessidade de defender a autonomia do direito de propriedade. Venho, então, propor uma espécie de síntese a partir desse choque entre as teses.
Considerações sobre a natureza do rolezinho
Considero salutar pensarmos com mais atenção a respeito do fenômeno em si e de suas motivações. Não tenho respostas fechadas, mas julgo pertinente levarmos em conta os seguintes pontos de reflexão:
1. Talvez o rolezinho possua um caráter eminentemente clássico e antropológico: desde os tempos imemoriais, adolescentes se divertem subvertendo a ordem estabelecida. Como centros comerciais, por definição, são lugares em que as pessoas frequentam para fazer compras e, ao longo do tempo, espontaneamente se constrói uma expectativa sobre como as pessoas se comportam por lá, bater de frente com essa convenção e promover um grande e descontraído encontro pode ser simplesmente divertido.
2.Talvez o rolezinho possua um caráter sociológico. O recorte social dos personagens envolvidos é composto majoritariamente de pobres e negros, parcelas da sociedade tradicionalmente excluídas do acesso a bens e serviços essenciais. Acrescente-se os ventos propícios a reivindicações que têm soprado desde as manifestações de junho. Não estaríamos assistindo ao embrião de uma nova maneira de protesto, uma forma de se fazer notar? Estariam aqueles jovens na busca da implosão de barreiras sociais historicamente estabelecidas? Seria um modo inusitado de pedir inclusão comercial?
3. Um outro elemento interessante Por que os rolezinhos estão ocorrendo em Shoppings?
Lazer. Modo de vida nas cidades. Parques, áreas de convivência. 4. Segurança.
Considerações sobre a repressão ao rolezinho 1. reprimir seria normal e saudável? como o pai que briga pela bagunça no quarto? 2. como a repressão se deu – aspecto sociológico: grito por inclusão, afirmação do lazer; mentalidade higienista – a forma de reprimir seria igual com adolescentes de classe média alta?; Nabuco: superação da cultura da escravidão; Antes, como uma espécie de questão de ordem: Pedro, onde é que França tachou os sujeitos? Sempre que se tacha, se tacha de alguma coisa. De que ele tachou? Agora vamos lá: Yuri, como você diz, “o Shopping, como outros tantos estabelecimentos, tem a função de atendimento ao público, sem o qual perde a razão de ser”. Concordo com esse trecho. Ocorre que, antes dele, há outras questões. Em primeiro lugar, o shopping não é sujeito, é objeto definido pelos sujeitos que lhe possuem. Foi a vontade, legítima, de seus proprietários que tornou shopping o conjunto de concreto e vitrine. Só que a legítima vontade de seus proprietários não acabou por aí: definiram aquele conjunto de concreto e vitrine como um shopping com uma identidade específica, que atinge a um público específico. Isso ocorre todo o tempo: a interação espontânea dos diversos sujeitos tende a criar espaços que, com o tempo, adquirem identidades específicas. Na maior parte das vezes, essa espontaneidade é capaz de atrair o seu público-alvo de modo eficiente. Algumas vezes, há um choque de interesses. Do mesmo modo ocorre com outros espaços privados de caráter aberto ao público com o qual nós costumamos naturalizar a sua condição de seletividade dos frequentadores: é o caso dos clubes de futebol ou das igrejas, por exemplo. Ou alguém considera absurdo o Sport proibir a entrada de pessoas trajadas com o uniforme do Santa Cruz? Ou seria absurdo um centro de ubanda proibir a entrada de pastores evangélicos? Em todos esses casos, o elemento comum que confere legitimidade à escolha da identidade dos lugares é a autonomia do proprietário dispor de sua propriedade. Afinal de contas, sem esse elemento humano que é a vontade do proprietário, nada emana do concreto. (Ah, talvez Homero Lacerda discorde: do concreto da Ilha brota Cazá Cazá…) Na perspectiva liberal, todas essas considerações são apenas fatos consequenciais à ideia primeira de propriedade humana. Ideia, vale ressaltar, que tem como valor histórico associado à sua tradição a defesa da tolerância. É direito dos sujeitos definirem a identidade de suas próprias propriedades – mesmo quando essas identidades ferem os desejos mais profundos de terceiros. Isso vale tanto para a expressão da identidade criada para o shopping pelo seu dono, como para a expressão da identidade de gênero alguém que não se enquadra nos padrões da heteronormatividade. Tudo isso diz respeito à forma como as pessoas exercem a sua liberdade sobre sua propriedade. Do mesmo modo como o conservador não deve poder impor sua visão de família sobre todos os outros, o progressista não deve poder impor sua visão de estabelecimento aberto ao público sobre todos os outros. Outra questão, bem distinta, é qual a cor mais liberal a preencher, de essência, essa forma. Ou seja: vencida a questão que cada proprietário pode dispor de sua propriedade como bem entender, qual seria o modo mais liberal de dispor de sua propriedade? Saímos, nesse momento, da esfera formal do liberalismo (primeira e necessária, que lutamos para que esteja representada na legislação) para a esfera essencial do liberalismo (derivada e mais complexa, que lutamos para que esteja expressa na cultura da sociedade). No caso do shopping, me parece óbvia a posição culturalmente liberal, e tão brilhantemente expressada por Martin Luther King: “Eu tenho um sonho. Um sonho no qual as pessoas não sejam julgadas pela cor de sua pele, mas pela essência do seu caráter”. Desse modo, o liberal essencial irá lutar culturalmente para que todo preconceito seja livremente destruído no seio da sociedade – processo que não ocorre de cima pra baixo, imposto pela lei, mas de baixo pra cima, construído pela cultura. Por fim, um esclarecimento, Pedro: no liberalismo, proprietário é todo ser humano. Propriedade, para nós, não é a posse material. Significa exatamente: aquilo que é próprio ao homem – sua vida, sua liberdade e o resultado do exercício de sua liberdade ao longo de sua vida, que chamamos de patrimônio.