Por Valdenor Júnior
Imagine que, no Brasil da década de 70, em plena ditadura militar, um libertário comprasse uma revista, a Visão, e tornasse sua linha editorial liberal, criticando os excessos do intervencionismo, do estatismo e do desenvolvimentismo do regime militar.
Imagine que, ao comprar a Visão, foi impedido de nela escrever por não ter diploma de jornalismo, pois eram os tempos da famigerada Lei de Imprensa, aprovada em 1967, em pleno regime ditatorial.
Imagine ainda que, a posição editorial dessa revista fosse um incômodo para o regime, de tal forma que o governo federal promoveu um boicote contra a Visão, por meio de seu controle econômico ao meio editorial brasileiro: deixando de investir em publicidade nela e inibindo a participação de empresários que mantinham relações com a esfera federal, para que passassem a não anunciar na revista Visão, temendo represálias.
Imagine que esta represália tenha contribuído para que a revista passasse por significativas dificuldades financeiras, passando por sucessivas crises, até deixar de circular por completo no início da década de 90.
Imagine que, sem desistir, este libertário chegou ao ponto de pagar do próprio bolso um programa de televisão com o intuito de divulgar as ideias da liberdade, logo na década de 90.
Imagine ainda que, por sua paixão pelas ideias hayekianas, ele tivesse trazido Hayek ao Brasil.
Imagine que, quando se discutia uma nova Constituição para o Brasil, esse libertário tivesse feito um anteprojeto próprio de Constituição inspirada nas ideias de Hayek, onde o regime de governo não era a tradicional democracia majoritária, mas sim a demarquia!
Imagine, portanto, que o Brasil, por conta desse libertário, teve a chance de adotar uma constituição que ao menos o aproximasse do liberalismo clássico, tentando limitar (seja isso pretensioso demais ou não) o Leviatã brasileiro.
Imagine que, na época em que o presidente Lula estava no poder e a hegemonia da esquerda estatista no Brasil parecia garantida pelos altos níveis de popularidade de sua presidência, este libertário, em entrevista para a Folha de São Paulo, tenha declarado que o único erro de Lula havia sido… ter comprado apenas um avião, pois era melhor que tivesse comprado logo 15 e colocado o governo para tirar férias coletivas.
Imagine que, na mesma entrevista, ele tenha justificado essa estranha recomendação da seguinte forma: “Aí não teríamos governo. Você está rindo, eu estou falando sério. Sou anarquista. As pessoas pensam que anarquia é bagunça. Anarquia é um sistema de governo. Quer dizer governo mínimo. Você já imaginou o governo viajando o tempo todo e em aviões bacanas por esses lugares todos? Anos atrás, uns amigos me acusavam de eu ficar criticando, escrevendo, falando e nunca apontar uma solução. E aí dei uma solução: férias coletivas para o governo.” Um comentário que lembra Henry David Thoureau: “o melhor governo é o que não governa absolutamente nada”.
Imagine que, ainda nesta entrevista, perguntado se preferia Lula ou FHC, tenha respondido: “se for para considerar o que eu penso do Brasil, este e o outro são umas merdas. Tem muita intervenção, coisas que não deveriam existir e que deveriam ter sido mudadas.”
Imagine ainda que ele tenha aproveitado para desmitificar a ideia de que o liberalismo e o livre mercado são triunfantes no mundo pós-Guerra Fria: “O conceito liberal que eu defendo não é o que se tem hoje. Essa bobagem chamada neoliberal não existe. Pode escrever. Neoliberal é besteira. Não existe essa asneira. O que aconteceu na Inglaterra e na Escócia é algo que poderia ser chamado de liberalismo clássico, mas aconteceu só lá. Foi apenas uma pequena mancha tão forte que as idéias foram para alguns outros lugares. Mas isso não quer dizer que, depois disso, o liberalismo clássico, a economia de mercado, espalhou-se pelo mundo. Não. Se você procurar onde existe a economia de mercado, vai ver só algumas manchas.”
Este libertário realmente existiu. Seu nome: Henry Maksoud.
Foi muito ativo numa época do Brasil em que o liberalismo brasileiro era ainda menor do que hoje e geralmente restrito ao seu aspecto econômico. Maksoud, em contraste, destacou-se por enfatizar, com notável coerência e independência, o aspecto político, o aspecto radical e transformador, a ousadia de tentar o diferente e de pretender mudanças estruturais radicais no modo como a sociedade se governa.
Da demarquia às férias coletivas do governo, o objetivo era libertação: libertação em relação ao Estado e à política enquanto instrumentos de coerção.
Ontem, ele faleceu. Mas, como a Voz que clamou no deserto, seu legado para o libertarianismo brasileiro não morrerá.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, escreve em seu blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Também escreve para o Center for a Stateless Society e o Liberzone.