Uma decisão da Justiça Federal – tomada pelo desembargador Carlos Moreira Alves – alterou os critérios de correção de redações do ENEM, o Exame Nacional do Ensino Médio. Foi suspensa anulação imediata da prova por “violação dos direitos humanos”.

Em um cenário menos explosivo e polarizado, soaria como correção técnica, na melhor das hipóteses, ou como ingerência desnecessária do poder judiciário na seara do executivo, na pior. Mas suscitou uma montanha de reações extremadas, descrevendo o ocorrido como mais um passo apocalíptico na destruição dos direitos, da vida humana, da bondade no mundo, etc.

A decisão vem na esteira de reclamações do movimento “Escola sem Partido”, que denunciava esse critério de correção como intrusivo, injusto e fonte potencial de censura ideológica.

É necessário um parêntese aqui para fazer um breve relato da relação da intelligentsia brasileira (majoritariamente de esquerda, ou ao menos assim auto-identificada) com o EsP. A visão hegemônica na seara intelectual identifica no movimento um oportunismo macartista que tem zero preocupação com neutralidade ou isenção e busca apenas silenciar a esquerda e impor uma educação única e censurada. A partir dessa análise, a resposta costuma ser alguma variação de “não existe neutralidade, tudo é político/ideológico”. Deixando para outro dia e outro texto uma análise mais detalhada do Escola sem Partido, um comentário pragmático sobre isso: se a sua resposta a um movimento (com certo apoio popular) que clama por imparcialidade e justiça é “não existe imparcialidade! tudo é parcial!”, bom, amigo, você vai perder de lavada, por mais safado e cínico que esse movimento seja. Mas divago.

O que importa é: a intelectualidade de esquerda viu a decisão sobre o ENEM como maculada pelo Escola sem Partido. Não existia, portanto, muita chance de que ela fosse levada a sério. Ela veio do inimigo.

Na esteira pulsante das infinitas polêmicas diárias, essa foi mais uma na lista dos “sinais de que vivemos em uma ditadura, um golpe, o apocalipse etc”. Luminares como a filósofa Marcia Tiburi e o ex-ministro da educação Renato Janine, em suas páginas do Facebook, se manifestaram ora em tom de revolta (“não deixem o Escola sem Partido vencer! fascistas!”), ora em tom de lamúria (“poxa, não respeitam nem mais os direitos humanos, isso é um absurdo…”). O presidente do Conselho Nacional da Educação, Eduardo Deschamps, condenou a decisão e disse que “os direitos humanos estão acima de qualquer ideologia”. Em setores menos higiênicos da internet, páginas militantes que trafegam entre o neostalinismo e o pós-petismo desesperado anunciaram essa decisão como parte de um plano para revogar os direitos humanos, eleger Jair Bolsonaro presidente, assassinar todas as minorias do Brasil e, provavelmente, estabelecer o reinado de Satã na terra (carece de fontes).

Tenho tentado não participar tão ativamente dessa roda incessante da nova polêmica-para-acabar-com-todas-as-polêmicas, que me parece cada vez mais uma armadilha na qual ficamos presos eternamente discutindo o pequeno ultraje patético da vítima da vez – uma variação especialmente cruel do inferno, no qual as rodas de espinhos e poços de lava são substituídos por um discurso que nunca termina no qual se denuncia a falta de consciência de classe de Clarice Falcão. Esse caso, no entanto, me parece ser sintomático de problemas recorrentes do ativismo progressista atual, então resolvi me arriscar a alimentar o monstro e chafurdar na lama em busca de alguma conclusão que valha a pena. Boa sorte para mim.

Antes de tudo, um pequeno histórico sobre a pessoa escrevendo esse texto. Me identifiquei como de esquerda por quase toda a minha vida, e um dos primeiros momentos de ruptura nesse casamento infeliz foi quando decidi comentar o tema da redação do ENEM 2015, que citava Simone Beauvoir, feminismo e violência contra as mulheres. Na ocasião, achei engraçado que uma coisa tão pequena e simbólica (guardem esse termo – ele sempre terá significado negativo, por aqui) tivesse se tornado motivo de tanta comemoração e júbilo. O texto, sabe Deus por que, viralizou, muita gente gostou, muita gente odiou, me acusaram de odiar mulheres, e o resto é história. Pode-se dizer, então, que o ENEM é um karma para mim. Falar mal da prova é retornar a um tempo mais inocente no qual eu achava que criticar vestibular era cool e aceito pelos amigos progressistas – “é uma prova, gente, nós odiamos provas!”.

Voltando aos direitos humanos. Sinto que as pessoas indignadas com a mudança sofrem de um mal infelizmente muito comum: a incapacidade de separar as intenções e os efeitos práticos de uma ação. Poderíamos entrar em uma enorme discussão sobre os embates entre a ética das virtudes e o consequencialismo ao analisar as ações de um sujeito, mas basta dizer que, no mínimo desde Maquiavel, o padrão ouro ao analisar uma ação política é perguntar “o que vai acontecer?“, e não “a pessoa que decidiu isso tinha um bom coração?”. Parece óbvio: se queremos políticas públicas eficientes, devemos analisar os efeitos por elas causados. Infelizmente o óbvio às vezes é extremamente difícil, e corriqueiramente somos reféns de leis e diretrizes cuja defesa e aceitação é 100% pautada pelo “mas isso é do bem!”, ignorando toda e qualquer consequência prática.

No caso do critério do ENEM, podemos vestir a máscara “progressista bem intencionado” e encarar a antiga regra derrubada. Ora, o ENEM é parte do sistema educacional brasileiro, e a educação, além de ensinar técnicas e habilidades práticas, deve formar cidadãos! Um cidadão do bem (não confundir com “de bem” – “do bem” é quem toma suco de clorofila, “de bem” é quem queria poder andar armado) é aquele que respeita direitos humanos! Devemos usar a prova do ENEM para formar esses cidadãos! A redação deverá rejeitar quem não respeita os direitos humanos! Assim educaremos nossos jovens para que eles sejam melhores, progressistas, do bem.

O mundo real, como sempre, ri e responde:

1.

A objeção mais trivial de todas: não é difícil mentir no ENEM.

Abrir a simulação mental progressista.exe e repetir clichês da esquerda-paz-e-amor não é especialmente difícil. Lembrar de 2015 novamente: frente ao tema “feminista” da redação, diversos alunos conservadores se vangloriaram na internet de “falar qualquer besteira feminista para agradar o corretor”. Esse tipo de medida não elimina o estudante reaça – ela elimina apenas o estudante reaça burro, que não consegue simular esquerdismo. Selecionam-se assim os alunos mais cínicos e capazes de fingir preocupações “de esquerda”.

2.

O progressista-otimista, ao pensar em “desrespeito aos direitos humanos”, imagina casos óbvios, indubitáveis, indiscutíveis. Alunos que defendem genocídio, tortura, estupro. Não há mal nenhum em limar esse tipo de gente, não? Infelizmente, o mundo é cheio de situações levemente mais complicadas, e o critério legava imensa latitude de ação aos corretores (mal pagos, cansados, corrigindo centenas de redações em seguida). Nós sabemos como agentes governamentais costumam ser comedidos quando dotados de tanta discricionariedade, certo? O corretor poderá topar com redações defendendo genocídio, claro, mas haverá também redações que podem ou não ser racistas (blackface é racismo? quem decide?), podem ou não ser machistas (ser contra aborto é machismo? quem decide?), e por aí vai. Dotado da bazuca hermenêutica “desrespeito aos direitos humanos”, o corretor poderá buscar nos meandros de redações que o desagradem uma frasezinha que seja na qual se viola alguma diretriz e declarar: anulado! E corretores são humanos, falíveis, passíveis de irritação, de cansaço… Entregar essa arma de destruição em massa na mão do sujeito corrigindo centenas de provas parece temeroso. Quem duvida, dê uma olhada nesta matéria do G1, que mostra algumas frases que causaram anulações de redações – a coisa vai desde o “tem que matar geral mesmo” até coisas como “devíamos acabar com a religião”, uma conclamação abstrata que pode significar matar/proibir/destruir pessoas ou pode significar uma ampla campanha laica. A latitude é imensa. 

3.

O mais cômico: o governo não é necessariamente nosso amigo! Os maiores defensores do critério derrubado são, em sua maioria, críticos intensos do atual presidente, costumam chamá-lo de golpista, ilegítimo. Existe uma ilusão de que a correção de provas como o ENEM será técnica e isenta, independente do governante sentado no trono, mas… alguém acredita nisso de verdade? Quanto mais critérios subjetivos legitimamos na correção da prova, mais fácil fica para um governante mal-intencionado apossar-se deles e usá-los como marreta para impor sua ideologia e censurar a dos outros. Por exemplo: e se começassem a censurar e zerar qualquer redação que elogiasse o socialismo, pois o marxismo é crítico aos direitos humanos? Nem precisaram inventar algo, porque é verdade! A rasteira contra-majoritária do judiciário, nesse caso, pode ser uma proteção para o próprio esquerdismo frente um MEC anticomunista. Mas o progressista-otimista não para para pensar nisso, ele só vê o “desrespeito aos direitos humanos”.

Pegando o gancho na crítica marxista, chegamos ao cerne do problema. A rigor, qualquer crítica ao status quo pode ser lida como uma crítica aos direitos humanos. Marxista contra a propriedade privada? Bom, essa é fácil: desrespeito ao direito à propriedade. Liberal defendendo cobrança progressiva de mensalidade na universidade, ou focalização do serviço do SUS? Desrespeito ao direito à educação e à saúde. Conservador contra o aborto? Desrespeito ao direito sobre o próprio corpo da mulher. E por aí vai. É esse segredo podre que maculava toda a empreitada desse critério: direitos humanos são um conceito em disputa. Filósofos se batem discutindo quais seriam os direitos básicos, canônicos, consensuais. Tratados internacionais são firmados dizendo “isso aqui é consenso” e imediatamente desrespeitados por todos seus signatários. Metade do espectro político (nos dois extremos) se diz cética ou crítica aos direitos humanos. E nós tivemos a soberba de achar que marretar alunos de ensino médio com um conceito aberto, em disputa, em evolução seria uma boa ideia!

Saindo um pouco do pragmatismo e incorrendo em sentimentalismo (ou seja, ética): o que exatamente queríamos com essa exclusão? Uma das utopias da esquerda é a universalidade dos serviços públicos – e a educação é central nessa fantasia. Condicionar o ingresso de um estudante a conformismo ideológico é anátema a isso. Indo mais a fundo e reconhecendo a correlação entre posturas mais “conservadoras” socialmente e a baixa renda (quem tem mais chance de defender “bala em bandido” numa redação: um jovem pobre ou rico?), esse critério vira (mais) um filtro pra expulsar o pobre da universidade. Não sendo julgado por sua capacidade argumentativa, nem por seu vocabulário, nem por sua caligrafia (!), o coitado tem a redação zerada porque teve a audácia de desrespeitar “direitos humanos” em uma redação. Delenda jovem reaça, xô, quem ele pensa que é pra violar direitos humanos com a sua redação?

Aliás, uma dúvida: como diabos se violam direitos humanos em uma redação? Retomemos o conceito lá de cima: o progressismo otimista (e aqui lembramos que essa palavra pode ser um eufemismo para impotente) está encastelado no reino do simbólico. Desnorteado pelo fato de que ele ainda defende as ruínas de um governo que basicamente – perdão a vulgaridade – cagou para direitos humanos durante 13 anos, presidindo em meio a uma explosão carcerária e a massacres indígenas (para ficar só em dois exemplos) e passando incólume por tudo isso, confrontado com um novo governo que caga para direitos humanos de maneira acintosa o suficiente para que o choque seja fatal, o progressista-otimista se agarra a pequenos símbolos de civilização, tentando preservar sua sanidade e dignidade. Nesse cenário, uma decisão que vem do inimigo (Escola sem Partido) e derrota o Bem (direitos humanos) só pode ser um ataque fascista, e deve ser resistida.

E é esse o fenômeno mais importante de se analisar: a hermenêutica paranoica que vê retórica como bruxaria, igualando o plano discursivo ao material sem nenhuma (nenhuma mesmo) mediação. Esse traço místico-xamânico, somado à incapacidade de conceber uma posição que escape ao binarismo apoiar/exigir a proibição, cria essa reação histérica: não proibir expressões anti-direitos humanos é equivalente a apoiar isso, e expressões anti-direitos humanos são equivalentes a violações-em-si dos direitos humanos. Ergo, essa decisão judicial é, ela mesma, uma violação dos direitos humanos e deve ser combatida.

(Vale a risada: um dos argumentos usados para derrubar o critério é que essa imposição ideológica era ela mesma uma violação de direitos – nesse caso, o direito à livre expressão.)

Nessa visão simbólico-paranoica, um jovem de 18 anos escrevendo alguma bobagem como “tem que matar bandido” em uma redação do ENEM que será lida por três pessoas é uma violação de direito humano. Vale perguntar: direito de quem? O que foi violado? Qual bem jurídico foi ferido? Que sujeito foi vítima aqui?

Essa não é a única instância na qual uma representação discursiva/simbólica é equalizada à ação/objeto sendo representado, claro, e isso não é exclusividade da esquerda. Basta pensar na histeria recente contra arte “pedófila” para lembrar que a confusão entre o retrato de algo e a coisa-em-si é um problema amplo, geral e irrestrito. A ordem do dia é essa postura desesperada (pense em quão exaustivo deve ser viver num mundo no qual toda representação de algo é dotada do poder sombrio e ameaçador da Realidade) que mistura tudo e termina com gente dizendo que textos são violentos e quadros são pedófilos. Dá vontade de pedir para a pessoa respirar fundo e dizer-lhe, “amigo, você está usando adjetivos esquisitos… tá tudo bem?”.

Porque isso é um problema. A paranoia simbólica que permite a um sujeito acreditar que uma redação viola direitos humanos (eu achei que esse critério a gente guardasse para coisas como, sei lá, execução sumária, e não um texto de 30 linhas) é o impulso amedrontado que faz com que esse mesmo sujeito apoie censura, autoritarismo, silenciamento. Se um textinho escrito por um adolescente que ninguém jamais vai ler é uma violação de direitos humanos, imagina um livro que pode ser comprado na livraria? Um filme? Um quadro? Uma peça de teatro?

Na ânsia de defender o castelo de areia que restou da identidade progressista pós-debacle petista, uma parcela preocupante da intelectualidade de esquerda defendeu poder censor para agentes governamentais excluírem do sistema educacional quem não se conforma ideologicamente. Uma vez na vida, o judiciário fez algo positivo e derrubou o troço. Mas a postura desse pessoal é indicativa de um mal estar muito maior – e o preocupante é que essas são as pessoas que teoricamente defenderiam direitos humanos! Quando a coisa apertasse e propusessem leis querendo proibir expressões “perigosas”, eram essas pessoas que deveriam ficar contra! Não deveria ser difícil – elas já chamam o governo de golpista e ilegítimo.

Infelizmente, deu errado, e a ânsia reacionária em defesa do simbólico venceu preocupações pragmáticas. Mais uma vez, confirmamos que para conseguir mobilizar gente em prol de censura, é só apelar para essa histeria atávica que confunde representação com endosso, representação com objeto, simbólico com material, verbal com físico. O ENEM em si não importa tanto, e essa decisão não deve mudar tanta coisa. Mas a reação a ela é um mau sinal.

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