por Beatriz Martins

 

Com o objetivo de estimular a realização de partos normais na rede privada de saúde, o Ministério da Saúde, em conjunto com a Agência Nacional de Saúde (ANS), divulgou nesta terça-feira (6) uma série de resoluções.

A decisão da ANS determina que, para que profissionais recebam o pagamento referente à realização de cesáreas, um partograma precisa ser preenchido com informações referentes à dilatação do colo do útero em função do tempo e o horário do rompimento da membrana. Em casos especiais, o partograma pode ser substituído por um relatório médico detalhado. A finalidade dessas ações é dar continuidade a ações anteriores do governo no sentido de diminuir o número de cesarianas desnecessárias no país.

A quantidade de partos cirúrgicos no Brasil é, de fato, estarrecedora. Em hospitais públicos, o índice de cesarianas atinge a marca dos 40%, bem acima dos 15% recomendados como taxa máxima pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na rede privada, o percentual é ainda mais preocupante e chega a 84%. O ministro Arthur Chioro vê esses dados como uma “epidemia de cesarianas”, em suas próprias palavras. A alta percentagem de preferência por um procedimento cirúrgico sobre um natural é tão sintomática que possa ser comparada a uma epidemia?

Não pretendo me prolongar discorrendo sobre as vantagens de se ter um parto normal e sobre os riscos que envolvem a cirurgia cesariana. Do ponto de vista biológico, o parto natural é muito mais seguro que a cesárea. Mas onde está o salto cognitivo entre “gestantes deveriam escolher parto natural para sua própria segurança” e “o Estado deve escolher qual parto fazer em seu lugar”?

Suponhamos que a aplicação da lei cumpra seu propósito: reduzir a proporção de cirurgias cesarianas nas redes privadas e públicas de saúde. Para que precisamos atingir tal meta? A única coisa que ganhamos é com essa medida em nossas vidas cotidianas é menos liberdade para escolher qual tipo de parto queremos. O fato de que o país vai conseguir ter uma taxa menor de procedimentos cirúrgicos não significa nada para mim enquanto indivíduo, é um mero dado abstrato que não tem qualquer efeito em minha vida. Talvez eu corra menos riscos ao ser obrigada por ela a realizar um parto natural, mas se eu estou disposta a correr riscos, por que alguém deveria ignorar o que eu quero e me impedir?

Podem me dizer que este é um pensamento egoísta. Que ter menos pessoas tendo complicações no parto é um fim legítimo para esse pequeno cerceamento da liberdade de escolha de cada um. Esse é um dos inúmeros casos em que uma resolução que não é boa para ninguém individualmente cria uma ilusão de ser positiva ao ser analisada no coletivo. Mas a sociedade é composta de indivíduos, e é para nós as leis devem ser direcionadas (se é que devam existir leis), não para que o país possa se orgulhar de ter reduzido o número de cesáreas. Até porque “o país” não existe. Obrigar civis a abrir mão de suas liberdades em prol do bem da nação é um princípio fascista.

Outro possível contra-argumento: a medida protege gestantes de profissionais que privilegiem a cesariana em razão de sua maior praticidade, já que esta requer uma equipe menor envolvida e é um procedimento mais curto que o parto natural, e não atentem ao bem estar de quem vai dar à luz. Existe, de fato, uma pressão nesse sentido. Então, para resolvê-la, a ANS substitui a coerção moral que obstetras praticam com o objetivo de se realizarem mais cesáreas pela coerção física do Estado com o objetivo de se realizarem mais partos naturais. Uma medida bastante desproporcional para combatê-la.

Na prática, as resoluções da ANS só beneficiam os planos de saúde, que agora poderão se recusar a pagar quem não provar que a cesariana foi absolutamente necessária – mesmo que o procedimento tenha sido absolutamente consensual entre obstetra e paciente. A necessidade de se preencher um partograma tão detalhado também é vantajosa a eles, já que os planos glosam quaisquer guias de consulta ou de internação que possuam algum erro de digitação e não pagam quem prestou o serviço, e quanto maior a burocracia, maior a chance de haver algum erro.

As medidas tomadas pela Agência Nacional de Saúde representam um retrocesso em direitos reprodutivos na legislação brasileira. É absurdo que algumas alas progressistas defendam a descriminalização do aborto, mas aplaudam uma medida que tira tanto a autonomia de parturientes. Meu útero vai muito bem sem a interferência do Estado e pretendo continuar assim.

 

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