por Carlos Góes

Antes de tudo, um preâmbulo.

A sociedade livre e próspera não é aquela que dá tanto enfoque às diferenças a ponto de exacerbá-las. É exatamente o contrário disso: é uma sociedade que dá tão pouca importância às diferenças a ponto que elas, embora múltiplas, se tornem banais. Quando chegarmos à banalização das diferenças, seremos tão diferentes que seremos todos iguais (em dignidade e direitos). Seremos todos igualmente indivíduos, mas sem qualquer tentativa autoritária de uniformização das nossas particularidades. Pois são essas desigualdades múltiplas, essas particularidades diversas, que criam a necessidade de vida em sociedade. É nossa pluralidade que torna a vida tão bela – que torna a liberdade tão necessária.

 

Agora sim, o texto.

Como tantas outras pessoas que sonham com o dia em que as diferenças serão celebradas, toleradas e respeitadas, eu gostei de saber, mesmo sem ser um noveleiro de carteirinha, que um beijo gay finalmente foi mostrado numa novela de horário nobre da Globo. É um primeiro passo, apesar de ser um passo pequeno. A celeuma nacional iniciada pelo beijo mostra como ainda há muito a avançar.

E o próprio fato de nós ainda nos referirmos a um beijo entre dois homens como um beijo gay (e não simplesmente como um beijo [“normal”], substantivo ainda reservado para os casais hétero) mostra como ainda estamos longe de reverter toda a estrutura de segregação a que somos expostos desde que somos crianças. Afinal de contas, ninguém diz que a música do Queen é “música gay” só porque as pessoas tocando a música são gays. No dia em que a gente conseguir aceitar os beijos dos gays do mesmo jeito que a gente aceita a música dos gays, eu diria que alcançamos algo muito importante.

[Pare sua leitura para ouvir essa música do Queen, vale à pena]

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=9TM-cbQ3gXo[/youtube]

Um ponto muito interessante nessa situação é o fato do beijo ter se dado sob o manto da Rede Globo, uma rede de televisão normalmente tida como “conservadora” – no sentido vulgar do termo. À primeira vista, essa caracterização de conservadorismo parece ser correta. A Globo é conhecida por colocar freios nos seus humoristas para não “chocar” o público (e, por isso, por “estragar” gente muito talentosa como o Marcelo Adnet, que era épico em sua época de Comédia MTV e já falava na TV aberta sobre “o lado bom de ser gay” há quatro anos).

E o mesmo parece acontecer quando comparamos a Globo com as outras redes de TV do mundo. Mesmo nos Estados Unidos, cuja sociedade é tão ou mais conservadora que a do Brasil, a mídia tende a ser mais progressista e plural. Ellen DeGeneres, apresentadora lésbica, é ícone na TV americana há alguns anos. Durante a entrega do Grammy, diversos casais (gays e héteros) se casaram, sob o pano de fundo de uma música em favor do casamento gay que foi escolhida como uma das melhores do ano.

[Casais de todos os gêneros casando em celebração à liberdade identitária no Grammy
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=CUM6JKkcYH4[/youtube]

Em termos mais objetivos, a melhor referência que eu tenho sobre os bastidores das relações de poder na Globo é o livro “Notícias do Planalto”, de Mário Sérgio Conti, ex-editor de Veja. O relato de Conti reforça a ideia de que a Globo é, de fato, uma instituição conservadora. Roberto Marinho apoiou a Ditadura Militar até o apagar das luzes do regime e foi o último a pular fora do barco de Fernando Collor (após ter sido, também, um dos últimos chefes da grande imprensa a endossar a candidatura do “Caçador de Marajás”). Os donos da Rede não gostam de mudanças imprevisíveis e preferem a certeza ao desconhecido.

Por que, então, uma instituição conservadora e detentora de tanto poder abraçaria a agenda de reforma da aceitação de práticas sexuais e de liberdade identitária?

A resposta é que, mesmo do alto de todo o seu poder, a Globo não é senão refém de alguém que é mais poderoso que ela: o consumidor. Na verdade, a Globo responde a algo mais importante que o conservadorismo de seus proprietários: o objetivo de conseguir mais dinheiro. E, pra conseguir mais dinheiro, ela precisa de anunciantes que, por sua vez, querem audiência. Portanto, a Globo precisa agradar seus telespectadores. Os noveleiros gostam ou rejeitam determinadas personagens – e a Globo responde a isso fazendo com que as personagens façam o que o público quer. Mises chamava isso, astutamente, de soberania do consumidor:

“Se um empresário não obedece estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, sofre perdas, vai à falência, e é assim removido de sua posição eminente no leme do navio. Outro que melhor satisfizer os desejos dos consumidores o substituirá.” (Mises, Ação Humana, XV.4)

As empresas passam a perceber que ser homofóbico e preconceituoso faz mal para os negócios e respondem mudando suas práticas – alimentando, assim, um ciclo virtuoso. Essa mudança é profunda e de amplo alcance, porque é uma mudança que vem de uma estrutura descentralizada – de baixo para cima. É uma mudança que ocorre por decisão da sociedade – não de burocratas. E, exatamente por isso, ela é uma mudança muito mais perene.

Isso pode ser visto em diversos outros exemplos. O ambientalismo gerou uma demanda por produtos ambientalmente responsáveis – e os empresários responderam criando novas opções para os consumidores. Uma das maiores redes de supermercado dos Estados Unidos – Whole Foods – surgiu exatamente para ocupar esse nicho: de comida saudável, orgânica, social e ambientalmente responsáveis. O dono do Whole Foods ganha muito dinheiro e os consumidores ganham um bom karma e produtos saudáveis. Todos saem ganhando.

A perspectiva da soberania do consumidor é libertadora. Ela nos faz entender que a responsabilidade sobre as mudanças sociais que a gente quer é nossa. Se as mudanças não vêm, precisamos ser mais inteligentes do que simplesmente culpar os outros. É muito fácil dizer que a culpa é da Globo, do lulo-petismo, do Foro de São Paulo ou do Olavo de Carvalho.

O capitão, o sujeito responsável pelas decisões que guiam o navio, é você. É você quem escolhe a rota a ser tomada. É isso que você faz cada vez que vai a uma loja e compra um produto. É isso que você faz cada vez que você liga sua TV, escolhe o programa que lhe agrada e escreve um tuíte cheio de rachitegues dizendo o que você quer ver na novela. A sociedade pode mudar – e é nossa responsabilidade que ela mude rumo a uma sociedade mais livre, tolerante, plural, próspera, inclusiva e humanitária.

Até que um beijo seja só um beijo – independentemente do sexo ou gênero dos beijoqueiros.

goesCarlos Góes é analista econômico com interesses em econometria, economia do desenvolvimento, filosofia política e antropologia. Fez seu mestrado em Economia Internacional na Universidade Johns Hopkins e sua graduação em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. É co-fundador da rede Estudantes pela Liberdade no Brasil e da Aliança pela LiberdadePublicou em periódicos internacionais e na imprensa nacional. Mora em Washington, DC, onde se divide entre think tanks e organismos multilaterais. Apesar disso, ele garante que aprendeu muito mais pagando multas na biblioteca e tomando cerveja com seus amigos do que em sala de aula.

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