por Laura Lira

Não se pode ser diferente sozinho. É a livre circulação das obras e dos talentos que permite a perpetuação das culturas pelo ato da renovação. Jean-François Revel

Cultura é todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade. É esta a definição formulada por Edward Burnett Tylor, antropólogo considerado o pai do conceito moderno de cultura. De acordo com ela, pode-se concluir que existe uma constante transformação cultural; principalmente no mundo conectado globalmente, em que as interações entre diferentes povos se tornam cada vez mais fáceis e frequentes.

Minha cantora preferida é Lianne La Havas. Inglesa, filha de pai grego e mãe jamaicana, menciona a diversidade dos gostos musicais de seus pais como a maior influência na sua música. Talvez por isso ela consiga agregar uma multiplicidade de cores que se manifestam visual e sonoramente em seu trabalho, o que faz dela uma artista tão especial e admirada por nomes como Stevie Wonder e Prince. Eu poderia citar diversos exemplos de obras cuja magia reside na mistura da pluralidade de aspectos culturais – que promovem, para além de beleza e vivacidade, o amadurecimento.

Não é a toa que o ato de viajar é apontado como algo que traz engrandecimento de espírito. O contato com o que é diferente propõe uma postura mais agregadora e menos arrogante diante da vida. O conhecido filósofo Montesquieu já disse: “as viagens dão uma grande abertura à mente: saímos do círculo de preconceitos do próprio país e não nos sentimos dispostos a assumir aqueles dos estrangeiros.”

Seguir linhas imaginárias impostas pela cor da pele ou pelos antepassados, restringir-se àquilo que “originalmente” te pertence pode perpetuar noções discriminatórias que vão de encontro ao próprio conceito de cultura. Tylor defende – não sem polêmica – que os distintos grupos étnicos entrariam em convergência durante seu desenvolvimento.

Um cidadão moderno janta macarronada italiana – com o macarrão inventado na China – e usa seu carro da Alemanha pra ver um filme feito nos Estados Unidos com protagonista espanhola na companhia de uma garota que conheceu no Tinder através do seu LG sul-coreano. Não se vê a mescla de aspectos culturais no seu dia a dia. Não se vê; elas estão muito enraizadas pra que se apresentem como algo digno de reflexão. E esta é a mais honesta inclusão.

O problema da apropriação cultural se dá quando os elementos da vida de um povo são reproduzidos sem o devido respeito à sua gênese ou visando emular aspectos culturais e físicos de um grupo marginalizado com base em conceitos elitistas. Tendo essa interpretação em mente, o caráter nocivo da prática não está nela mesma, mas nos antigos preconceitos que podem acompanhá-la – num momento em que eles devem justamente desaparecer.

Era julho de 1969, não faz muito tempo. Começara a ser exibida, na Globo, uma telenovela que abordava a luta entre latifundiários e escravos no sul dos Estados Unidos, A Cabana do Pai Tomás. Àquela época já havia um bom contingente de atores negros, que atuavam, em sua maioria, no teatro. Conseguiram encontrar negros competentes o bastante para representar a escravidão oprimida. Mas quem encarnou o abolicionista Dimitrius, principal personagem masculino da trama, foi Sérgio Cardoso, branco que se pintava de marrom, usava peruca e colocava rolhas no nariz a fim de se adequar às características daquele que não era. Isso escancarou a preterição do negro para lugares de destaque, o que deu início a um notável movimento contra a escolha de um ator branco para o papel. A classe artística reivindicava sua substituição por Milton Gonçalves. A novela teve fim antes do previsto devido ao imbróglio que causou.

Engana-se quem pensa que o problema morreu há 45 anos. Existe um preconceito velado que exclui modelos negras de catálogos de inúmeras grifes, fato que gerou, inclusive, a adoção de cotas de 10% para que a presença delas seja garantida no Fashion Rio. Em dezembro, no mês passado, Emicida deixou um comentário numa foto do Instagram da Farm, em que uma modelo branca representava Iemanjá. Ele criticou o fato da marca sempre se utilizar de elementos da cultura afro em suas coleções, como um “elemento de autenticidade”, mas nunca empregar negras. Coincidência ou não, a mais recente coleção da Farm (inverno 2015) traz, finalmente, modelos negras.

Roubar o agogô de seus criadores, ignorar seu significado, e fingir que não existe algo errado nisso jamais vai trazer as consequências positivas da interação entre culturas à tona. É indispensável o entendimento de que essas interações precisam vir acompanhadas de empatia e têm de revolucionar não apenas as vestimentas de uma it girl, mas o seu modo de aceitar as raízes afro, que continuam sofrendo opressão com a permanência de posturas exclusoras que já vêm sem reflexão prévia.

Diz-se que a principal característica do rap americano, a ostentação de pesadas correntes de ouro, carrões e belas casas, é uma herança comportamental recebida dos escravos libertos que precisavam ser aceitos e vistos como seres que existiam socialmente. Então eles compravam. Compravam e compravam, sempre que podiam, para mostrar que estavam ali – para existir. MC Guimê, hoje o principal representante do funk ostentação, que surgiu na periferia de São Paulo, é branco. Mas não seria surpreendente que ele teve motivos semelhantes aos dos negros americanos para repetir a conduta que prega o exibicionismo. Ele foi pobre, certamente sofreu preconceito. A realidade se transforma, insiste Taylor.

Coibir o uso de turbantes por brancos não vai diminuir a segregação. Vai aumentá-la. Como de praxe, o cerne do problema está naquele preconceito automático do qual não se abre mão. Quando uma garota branca põe o turbante ela provavelmente não está absorvendo ou emanando a simbologia religiosa que este carrega como quando utilizado por um africano. Mas será que é este o objetivo dela? Talvez não. Talvez ela sequer tenha dedicado algum tempo a pensar sobre o tema. Mas a tendência também pode pôr em foco uma cultura marginalizada, naturalizando-a fronte à sociedade e estimulando o debate acerca dos obstáculos que ainda tem de ser enfrentados rumo ao respeito pelo divergente.

Assimilar uma cultura alheia faz parte da vida em sociedade. Atirar na apropriação cultural não é acertar na discriminação velada. O placebo abre caminho para a permanência das raízes preconceituosas que geram não só debates sociológicos, mas traumas que podem ser eternos.

laura

Laura Lira é pernambucana, estudante de saneamento ambiental, vegana e nutre interesses por política, libertação  animal e literatura regionalista.

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