por Brink Lindsey
Tradução por Pedro Galvão de França Pupo. Texto original aqui.
O princípio da não agressão depende de uma simplicidade radical que simplesmente não está presente no mundo real, argumenta Brink Lindsey
O princípio da não agressão (PNA) – não use e nem ameace usar violência física contra qualquer pessoa a não ser que você mesmo tenha sido atacado ou ameaçado antes, e não pegue e nem quebre as coisas dos outros sem o consentimento deles – funciona como uma síntese bruta e eficaz do pensamento libertário sobre direitos e deveres. Cada um de nós tem o dever de não agredir outros sem provocação, e todo mundo tem o direito de fazer o que quiser contanto que se abstenha da agressão. Como regra geral, ou como uma presunção forte porém afastável, o princípio da não agressão transmite bem a minha própria orientação política.
No entanto, muitos libertários esperam muito mais do PNA. Eles querem que ele sirva como o axioma fundamental da justiça, a partir do qual (juntamente com os princípios corolários de apropriação original lockeana e trocas livres) podem ser derivados os modelos da política ideal.
Infelizmente, a vida é muito mais complicada. Primeiramente, o princípio da não agressão não responde diversas questões de importância vital sobre como as regras da sociedade devem ser estruturadas. Além disso, os resultados de uma fidelidade inabalável ao PNA às vezes são inaceitáveis, mesmo quando não são ambíguos.
Matt Zwolinski já cobriu muito deste território (veja aqui, aqui e aqui), mas permitam-me oferecer a minha própria versão. Grande parte do indeterminismo do princípio da não agressão ocorre porque a definição de agressão depende da definição de direitos de propriedade. Por exemplo, A entra em uma casa e B, que já está na casa, atira e mata A. Quem é o agressor, aqui, vai depender de quem é o dono da casa – A ou B. E qualquer elucidação de direitos de propriedade que seja suficiente para guiar o comportamento e resolver conflitos – em resumo, para estabelecer uma ordem legal funcional – vai frequentemente se deparar com ambiguidades, áreas cinzentas e de penumbra, e lacunas que precisam ser resolvidas recorrendo a algum princípio ou princípios adicionais.
Quão abaixo no subterrâneo os direitos de propriedade da terra deveriam se estender? Até que altura do céu? Até que ponto um dono de terra pode restringir a habilidade de futuros donos venderem? Mais especificamente, gravar um imóvel com cláusula de inalienabilidade[1] é um tipo de direito de propriedade que deve ser reconhecido? A regra contra perpetuidades é uma restrição aos direitos de propriedade ou uma proteção da integridade daqueles direitos? A propriedade de terra pode ser perdida por abandono, ou a regra de usucapião é uma violação dos direitos de propriedade? Se a posse da terra foi adquirida por força, quanto tempo deve se passar e quantas vezes a terra precisa trocar de mãos antes que os direitos dos donos originais e dos seus descendentes sejam extintos e os possuidores atuais sejam reconhecidos como donos legítimos? Quando expiram os deveres de indenização aos despossuídos pelas suas perdas e danos?
E quanto à poluição ou outros incômodos? Se qualquer invasão física da propriedade de outros constitui uma transgressão ilegal, então as coisas não parecem boas para a civilização industrial: uma única molécula de efluente soprada das chaminés das minhas fábricas passando pela sua propriedade constitui uma violação dos seus direitos de propriedade. Uma interpretação como essa leva a resultados absurdos, visto que mesmo fótons da minha iluminação interna podem constituir uma transgressão conforme eles atravessam o seu quintal. Mas se nós desistirmos de uma regra clara, onde traçamos a linha? A regra de Direito Comum sobre incômodos considera passíveis de recurso apenas interferências “não razoáveis” com o usufruto tranquilo da propriedade de um indivíduo. Como dar conteúdo para essas palavras ocas?
E quanto a ações que criam o risco de dano ou demonstram a intenção de causar dano? Se você está tentando construir uma bomba nuclear na sua garagem vizinha, eu tenho o direito de reclamar? Se você atirar em mim nas ruas, mas errar, você cometeu uma ofensa contra mim ou, sem dano, não há problema? O ato de planejar um crime é um crime em si? Se sim, até que ponto o planejamento vai antes que uma infração tenha sido cometida?
E quanto a danos não intencionais? Se alguma ação sua acaba resultando em danos, você é sempre culpado? Ou você precisa ser negligente para que suas ações violem os direitos da pessoa que você prejudicou? Como definir negligência? Aqui a lei utiliza de novo os padrões vazios de “falta de cuidados razoáveis”.
E quanto às crianças? Direitos negativos de segurança contra a agressão não são suficientes para crianças; elas precisam que alguém cuide delas. Qual é o seu status legal (de capacidade jurídica)? Quais são as obrigações de seus pais? O que acontece se seus pais não cumprirem essas obrigações?
Finalmente, e quanto a soluções? Quais instituições sociais vão garantir que os direitos estão sendo respeitados e proteger as pessoas contra a agressão? Aqui o caráter indeterminado do princípio da não agressão é aparente, já que mesmo libertários que o utilizam como princípio supremo se dividem sobre a necessidade de um governo com um monopólio sobre as leis. Minarquistas argumentam que, sem um governo, o PNA é inútil; anarquistas respondem que o governo é desnecessário e a sua própria existência já contraria o PNA. Minarquistas pensam que a anarquia é completamente impraticável; anarquistas pensam que um governo limitado viola o princípio e é igualmente impraticável, visto que o governo não vai permanecer limitado. Quaisquer que sejam os méritos dos seus respectivos argumentos, o princípio da não agressão não vai resolver a disputa.
Indo além deste ponto básico, como direitos são garantidos – por qual agência governamental ou privada – faz uma diferença enorme sobre a significância desses direitos no mundo real, e, no entanto, o princípio da não agressão não nos diz nada sobre como garantir os direitos que o definem. Atividades prejudiciais contínuas podem ser proibidas, ou solicitar “perdas e danos” em dinheiro é suficiente? Como os danos são calculados? A compensação precisa cobrir todos os danos que seguem, ou apenas os “previsíveis”? Deveria existir uma distinção entre crimes “de Direito Público” e atos ilícitos “de Direito Privado”? A prisão é uma forma válida de fazer cumprir a lei? Ela é imposta como substituto ou complemento da restituição? E quanto a outras formas de punição? Como a culpa é determinada em casos criminais? Quais são os padrões exigidos de evidência e o ônus da prova? Quais são os arranjos institucionais concretos (como a liminar no habeas corpus ou o direito a um advogado) que esclarecem como crimes são julgados? Quais são os arranjos para resolver disputas civis?
Libertários que aderem ao princípio da não agressão como um axioma defendem que a resolução de disputas pelo Direito Comum e as convenções prevalentes vão preencher os vazios da ordem legal. Elas certamente podem fazer isso, mas não existem garantias de que o resultado vai ser remotamente parecido com o que libertários tem em mente quando imaginam uma sociedade livre. Talvez grande parte da terra seja aprisionada em estados feudais gigantescos. Ou talvez o usufruto tranquilo da propriedade seja protegido com vigor suficiente para impossibilitar a atividade industrial porque ela constitui um incômodo que pode ser proibido por lei. E se leis de incômodo sozinhas não fossem o suficiente para garantir a pureza bucólica (ou, em outras palavras, a completa miséria), a responsabilidade ilimitada por todos os prejuízos calculáveis resultantes direta ou indiretamente de danos não-intencionais pode dar uma ajuda.
Vale lembrar que o direito comum inglês, apesar de todos seus aspectos impressionantes, reconhecia a cláusula de inalienabilidade para bens imóveis, tinha regras contra comprar bens e revendê-los para obter lucro (sob três tipos penais de aquisição ilegal para revenda[2]), e permitia a subjugação de mulheres casadas pela doutrina de coverture (uma mulher perde a sua identidade legal própria após o casamento).
O princípio da não agressão como um axioma fundamental consiste de um sonho da vida sem política: existe somente um princípio neutro e livre de valores que pode gerar todo um sistema de direitos e obrigações igualmente neutro e livre de valores . A legitimidade da ordem legal, nessa visão, vem da natureza: a ordem exige o nosso consentimento porque ela reconhece e justifica nossos direitos naturais preexistentes. Toda disputa é uma disputa lógica sobre quais regras específicas necessárias à resolução de certa situação estão implícitas no PNA. Disputas entre concepções rivais do que é bom e correto são irrelevantes.
É um sonho com um apelo compreensível, considerando que, em política, a sujeira moral é certa e o horror verdadeiro é uma possibilidade distintiva. Mas continua sendo uma ilusão, porque a verdade é que política é inevitável. Não é possível construir uma ordem legal sem repetidamente tomar lados em controvérsias carregadas de valor: algumas visões do que é bom vão vencer, e outras vão perder. E nas ordens sociais grandes e complexas da modernidade, a diversidade de valores é inevitável, portanto disputas políticas entre grupos com concepções rivais do que é bom são inextinguíveis. Política é o processo pelo qual algumas pessoas impõem os seus valores aos outros, e não dá para escapar disso. A legitimidade de uma ordem política depende, portanto, não só do conteúdo das regras, mas do processo que resolve os inevitáveis conflitos de valores sobre essas regras. Decisões políticas devem ser estruturadas de maneira que os perdedores respeitem os resultados porque o processo foi justo e inclusivo.
Os problemas do princípio da não agressão não se limitam à sua natureza indeterminada. Além disso, uma fidelidade estrita às suas implicações ambíguas resulta em vários casos que quase todo mundo, incluindo a maioria dos libertários, iriam rejeitar de cara. Caridosamente, eu tratei as posições do princípio da não agressão sobre poluição, risco e crianças como ambíguas ao invés de absurdas, mas é fácil imaginar um compromisso em seguir somente regras que se conformam literalmente com o PNA. Nesse caso, toda atividade industrial iria essencialmente violar os direitos de alguém, mas você estaria livre para acumular materiais explosivos no seu ambiente de negócios, mesmo se um acidente pudesse destruir o quarteirão inteiro. Você não teria feito nada de errado se tivesse conspirado para cometer um crime ou tentado e falhado. E pais psicopatas poderiam deixar suas crianças morrer de fome só por diversão.
Em outros casos, não existe nem ao menos a desculpa da ambiguidade para resgatar o princípio de não agressão de implicações absurdas ou repugnantes. Parece bem claro que não poderia haver garantias legais ao cumprimento de contratos da maneira com que estamos familiarizados: uma restituição poderia ser exigida quando o dinheiro chega a trocar de mãos, mas, em uma mera troca de promessas, não haveria como remediar uma quebra de contrato de maneira consistente com o PNA. Abrigar um fugitivo não seria um crime. Nem chantagem. Nem mesmo as mais horrendas crueldades contra animais. Não poderiam haver leis de falência que extinguissem dívidas. A responsabilidade civil de empresas seria ou ilimitada ou inexistente (e nesse caso, apenas os empregados individuais encarregados poderiam ser responsabilizados). Não poderiam haver vacinas compulsórias durante epidemias. E naturalmente, o princípio da não agressão proíbe a cobranças de impostos, bem como qualquer gasto do governo para aliviar a pobreza, promover a educação, ou fazer qualquer coisa além de proteger pessoas e propriedade. Libertários radicais podem estar dispostos a encarar essas últimas consequências, mas ninguém mais está.
Por todos os motivos citados acima, eu concluo que um princípio da não agressão fundamentalista é absolutamente incapaz de funcionar como uma base para o pensamento libertário. O que, então, sugiro como alternativa? Em vez de procurar em vão por algum fundamento intelectual livre de valores, eu começo com um compromisso explícito aos valores liberais: uma crença no valor moral do indivíduo, e uma visão de progresso social onde mais e mais pessoas estão florescendo em vidas que elas mesmo escolheram. E em vez de basear minhas visões políticas em especulações sobre alguma utopia hipotética (e, a meu ver, quimérica), eu olho para a história e para as ciências sociais buscando orientações sobre como propagar esses valores liberais nas circunstâncias específicas que enfrentamos hoje. Na minha visão, a defesa de uma abordagem política libertária é baseada na sua combinação de seriedade moral e estabilidade empírica: seu compromisso com a autonomia individual, bem como seu reconhecimento esclarecido tanto das falhas do controle centralizado quanto da enorme fertilidade da experimentação, competição e coordenação descentralizadas.
Sim, a abordagem que eu sugiro é confusa e bagunçada – poucas regras claras e simples, vários caminhos escorregadios e compromissos difíceis. Mas quem disse que a vida ia ser fácil?
[1] N.T: No original, fee tail. É uma restrição sobre a venda ou herança de terra que obriga a terra a ir para os herdeiros do dono após sua morte. Era usada pela nobreza europeia para garantir que a propriedade de uma família permanecesse na linha de sucessão. Optamos por traduzir o termo pelo análogo mais próximo em português, “cláusula de inalienabilidade”, com a qual os imóveis podem ser gravados tradicionalmente em nosso Direito. O Direito brasileiro, tradicionalmente, ocupou-se também de manter a propriedade imobiliária dentro de uma mesma família.
[2] N.E: No original, engrossing, forestalling e regrating . A ideia desses crimes era impedir que uma pessoa adquirisse certos bens do produtor para revendê-los a maior, acrescentando intermediários e, assim, aumentando as margens de preço para o consumidor final. Isso significa que era proibido alguns tipos de “contrato de distribuição”, o que acarretava em ineficiências e diminuição do bem-estar.