Por Charles Johnson, adaptado e traduzido por Apolinário e Stefan Rostenberg

Em estudo que busca traçar o perfil político da geração Y (compreendida na pesquisa como pessoas hoje com idade entre 18-29 anos) dos Estados Unidos publicado em 2014 pela Reason-Rupe, foram realizadas perguntas a respeito do apoio desses jovens ao capitalismo e ao socialismo, e do apoio dessas mesmas pessoas ao livre mercado e a uma economia administrada pelo governo. Para uns, os termos são sinônimos, não é o caso da geração Y, que claramente observa uma diferença entre os conceitos.  KBX8FG0[1]

Como isso possível? Seria essa apenas uma questão semântica? Nesse texto, tento mostrar que não, a questão é mais do que semântica. Em boa parte do século XX, liberais e libertários eram vistos como defensores do capitalismo e se identificavam como tais.  No entanto, o conceito de anti-capitalismo libertário ou de livre-mercado, conceituado por anarquistas pró-mercado como Benjamin Tucker e Pierre-Joseph Proudhon, vem sendo resgatado, revivido e reformulado no século XXI, com novos conceitos ligados a economia digital e economia colaborativa, sendo essa inovação puxada pela geração Y.

Mas para conceituar o anti-capitalismo pró-mercado precisamos antes discutir as definições de capitalismo. Você com certeza já se envolveu em alguma discussão que envolva capitalismo. Frequentemente essa palavra é usada no debate político e econômico, muitas vezes com cada debatedor querendo dizer coisas distintas quando fala sobre capitalismo, mas acreditam estar batalhando sobre um tema em comum. O que exatamente, afinal, as pessoas querem dizer quando falam em ‘capitalismo’? Correndo o risco de super-simplificar uma literatura vasta e complexa, há pelo menos quatro definições majoritárias ligadas ao termo.

Capitalismo-1 — Liberdade de empreendimento.

Esse é um uso relativamente novo (advindo principalmente dos escritos libertários das décadas de 1920 a 40). ‘Capitalismo’ é assim usado pelos seus defensores no sentido de livre mercado ou de um sistema de livre empreendedorismo, isto é, um ordenamento econômico — qualquer ordenamento econômico — que emerge a partir de trocas voluntárias de propriedade e trabalho sem intervenção governamental (ou qualquer outra forma de coerção sistêmica). Esse é o sentido mais familiar para quem passa o tempo lendo literatura econômica liberal, tal como aparece em Friedman, Hayek, Mises, etc.

Capitalismo-2 — Política econômica pró-negócios

‘Capitalismo’ também é usado, às vezes pelos seus oponentes, às vezes por seus beneficiários, para caracterizar uma política econômica corporativista ou pró-negócios — ou seja, apoio governamental ativo dos grandes negócios por meio de instrumentos tais como monopólios concedidos pelo Estado, subsídios, bancos centrais, infraestrutura paga com impostos, empréstimos e financiamento “para o desenvolvimento”, apropriação de terras e casas, resgate de empresas falidas, etc.

Assim, quando uma progressista como Naomi Klein descreve os mercenários contratados pelo governo, esquadrões de tortura paramilitares ou instituições financeiras multigovernamentais como o FMI e o Banco Mundial, como exemplos de economia política do “capitalismo-desastre”, capitalismo aqui significa algo além das relações comerciais num mercado desregulado. Em vez disso, é precisamente a intervenção do Estado, com mão pesadíssima, a promover os interesses de uma classe particular de agentes econômicos, ou uma forma particular de atividade econômica, de acordo com alguma política.

Esse segundo sentido de capitalismo é, claro, incompatível com o primeiro — corporativismo encabeçado pelo Estado necessariamente é feito de projetos financiados pela população via impostos, ou de regulações mantidas à base da coerção, de forma que ser um ‘capitalista’ no sentido de um livre-empreendedor significa ser também ‘anti-capitalista’ enquanto opositor ao Estado corporativo, e ser ‘pró-capitalista’ no sentido de favorecer políticas públicas de “crescimento” significa ser contra o ‘capitalismo’ no sentido de mercados genuinamente livres.

Capitalismo-3 — O sistema de trabalho assalariado

‘Capitalismo’ também é usado para se referir a uma organização específica do mercado de trabalho, ou a um distinto padrão de condições que assolam a população ordinariamente trabalhadora — em que a forma predominante de atividade econômica é a produção de bens ou a prestação de serviços em ambientes de trabalho que são possuídos e gerenciados, não pelas próprias pessoas realizando o trabalho, mas por um chefe externo.

Nesse terceiro sentido, o capitalismo se dá quando a maior parte dos trabalhadores está trabalhando para um outro alguém, em troca de um salário, porque o acesso aos fatores de produção relevantes é mediado por uma classe empresarial, sendo os empresários, e não os trabalhadores, quem detêm os direitos legais ao negócio, às ferramentas, à propriedade onde se trabalha e aos lucros residuais que advêm do negócio. 

Os ambientes de trabalho são, como resultado, tipicamente organizados de maneira hierárquica, o chefe exercendo poderes discricionários sobre os empregados, que costumam precisar muito mais do próprio emprego do que o chefe precisa de cada um dos trabalhadores individualmente. Esse é o sentido mais comum na prosa marxista, e em escritos mais antigos da esquerda radical — incluindo aí a literatura pró-mercado de anarquistas como Benjamin Tucker e Pierre-Joseph Proudhon.

Capitalismo-4 — Sociedade dominada pelo lucro

Finalmente, o termo capitalismo é muitas vezes usado (fora dos círculos de economistas libertários provavelmente é o uso mais freqüente) para se referir, de modo não muito rígido, à comoditização da vida — isto é, a condição na qual as relações sociais são largamente mediadas por meio de, ou alteradas por, motivações explicitamente comerciais, e em que todas ou a maior parte das instituições sociais e econômicas operam mais ou menos como uma empresa, visando ao lucro.

É importante notar que enquanto “capitalismo” nos dois primeiros sentidos — aquele de mercados libertos, e aquele de políticas pró-negócios — são mutuamente excludentes, “capitalismo” nos últimos dois sentidos são conceitualmente independentes das oposições políticas envolvidas nos dois primeiros sentidos do termo.

Em tese, um mercado de trabalho verdadeiramente livre poderia se desenvolver em várias direções enquanto se mantém um mercado liberto — você poderia ter um mercado dominado por grandes corporações e relações tradicionais empregador-empregado; ou você poderia ter cooperativas, ou conselhos comunitários de trabalhadores, ou uma rede difusa de comerciantes e contratantes independentes; ou você poderia ter uma mistura plural de todos esses arranjos, sem nenhum deles claramente dominando o espectro. (O resultado mais provável vai depender em parte nos padrões pré-existentes de propriedade, a força e a direção das preferências das pessoas, a direção da inovação empreendedora, etc.).

Similarmente, Estados intervencionistas poderiam intervir tanto contra, quanto a favor do “capitalismo” nos últimos dois sentidos — quando Estados adotam “crescimento” com políticas de mão pesada e sustentam o corporativismo, eles atacam o livre mercado; mas podem estar também defendendo e reforçando: a hierarquia no local de trabalho, as concentrações riqueza, favorecendo determinadas finalidades e atividades comerciais, às custas de impedir o surgimento de outros padrões de posse, ou outras formas de atividade pacífica, que poderiam ser mais comuns se não fosse por essa intervenção.

Eu falo disso não porque eu pretendo passar um tempão na disputa semântica sobre o “significado real” do termo capitalismo, ou porque eu supostamente acharia que as discordâncias entre progressistas e libertários poderiam ser eliminadas por mostrar que um deles está usando “capitalismo-1”, enquanto o outro está usando os capitalismos-2, 3 e 4.

Na realidade, acredito que a vale a pena fazer essa distinção justamente para evitar o debate semântico, e assim deixar claro quais as áreas de discordâncias significativas, e quais os mais importantes pontos para uma discussão produtiva. Muitas vezes, para chegar à verdadeira discussão, você precisa estar disposto a dizer “Olha, veja bem, eu vejo que você está reclamando do ‘capitalismo’ no sentido do status quo corporativista, mas não é isso que eu quero defender. O que eu defendo é um mercado liberto, o que é radicalmente diferente do status quo; sem dúvida você discorda disso também, mas por razões distintas, então vamos debater a partir disso”.

Eu falo disso também por uma motivação pessoal — minha posição política é aquela que geralmente é apagada do debate quando uma distinção como essa não é feita sobre os diferentes significados do termo “capitalismo”. Mas a posição existe, e é a posição dos anarquistas mutualistas e individualistas como Pierre-Joseph Proudhon, Josiah Warren, Benjamin Tucker, Victor Yarros, Gertrude Kelly, Lysander Spooner, Voltairine de Cleyre, et al.

Em debates convencionais sobre capitalismo, nós geralmente somos apresentados a duas posições majoritárias: a posição da direita pró-capitalista e a posição da esquerda estatista. Mas ambas posições, apesar de seus níveis de discordâncias, tem uma alegação econômica importante em comum: eles praticamente asseguram que o mercado livre tende a produzir os capitalismos-3 e 4. Vamos chamar esse pensamento de Hipótese Capitalista Causal:

(HCC) Se você tem o “capitalismo-1” (uma economia sem a intensa, extensiva e contínua intervenção governamental), então você tenderá naturalmente aos capitalismos 3 e 4 (concentrações de propriedades em larga escala, uma economia corporativista pró-lucro, o sistema de trabalho assalariado, etc.).

A direita pró-capitalista gosta desse resultado, e a esquerda estatista não gosta, então um utiliza como razão para apoiar o “capitalismo” e o outro como razão para rejeita-lo. (há ainda uma parte dos progressistas que acredita na HCC e tenta mitigar essa diferença pedindo por um misto de regulações pró-negócios e regulações anti-negócios, de forma a obter uma forma corretamente gerenciada de capitalismo, com forças políticas nos lugares certos para sobrepor as piores tendências capitalistas.).

Mas e aqueles que rejeitam a alegação causal afirmada pela HCC? Para pensadores pró-mercado como Tucker, “capitalismo” no sentido de trabalho-assalariado e comercialismo foi largamente apoiado e sustentado por intervenções governamentais “pró-negócios”, e não por processos de um livre mercado — em particular, pela estrutura econômica criada pelos Quatro Grandes monopólios estatais e seus descendentes contemporâneos. (originais: terra, moeda, propriedade intelectual e protecionismo comercial; contemporâneos: agronegócio, segurança, infraestrutura e o protecionismo regulatório), por afunilar recursos no complexo militar-industrial, pelos resgates trilionários feitos a bancos e instituições financeiras, e pelas penetrantes e intensas hiperregulações das perspectivas econômicas dos pobres e marginalizados. Portanto, conforme o argumento se desenvolve, a tendência natural de um mercado liberto é na verdade anti-capitalista, no sentido de derrubar privilégios políticos que mantém o status quo, de dissipar desigualdades econômicas em larga escala, de minar invés de fortalecer monopólios, cartéis e fortunas acumuladas, e libertar trabalhadores para ter uma vida independente através de um rico conjunto de formas não-corporativas, de base, alternativas à economia corporativista atual (exemplo: cooperativas, estabelecimentos autogeridos, contratos de posse e uso da terra independentes, associações de ajuda mútua, etc.) . É apenas em virtude do capitalismo-2, o capitalismo estatista ou o privilégio corporativo, que o capitalismo-que-existe-hoje, nos últimos dois sentidos, floresce e cresce.

Agora, se a posição do Tucker (ou a minha), está certa ou errada, é claro que está aberto a um debate considerável, e vai depender de questões conceituais e muita evidência empírica que eu sequer comecei a discorrer sobre nesse post. Mas o meu primeiro interesse é que essa posição deve ser feita inteligível, para que possamos começar a discutir sobre o que concordar com o tema, ou ir contra. Antes de você começar a debater se uma afirmação como a HCC é verdadeira, você precisa primeiro estabelecer que existem dois termos totalmente distintos em cada lado dos operadores condicionais, e que alguém pode concordar ou negar que eles estão conectados dessa maneira.

Para fazer isso, ajuda muito deixar o mais claro possível que, na nossa terminologia ou ao menos no processo das nossas conversas, um “mercado liberto” não é a mesma coisa que um empresário sendo deixado em paz para fazer qualquer coisa que ele quiser; e que na verdade um mercado liberto significa propriedade e liberdade econômica para todos, e pode muito bem englobar relações que podem não parecer nada com grandes corporações ou empresas de hoje; que é muito possível que muitos dos críticos do “capitalismo” podem estar apontando para reais males sociais, mas errando no diagnóstico das causas; e que muitos males comumente associados ao “capitalismo”, que levam a uma crítica subsequente ao “mercado”, não são na verdade resultados de atividades de mercado, mas os resultados do “capitalismo” em um sentido diferente — o sentido do comércio subsidiado pelo governo e privilégios corporativos aos amigos do rei.

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