Por Valdenor Júnior
Muitos alegam que menor desigualdade de renda induz menor criminalidade, mas não explicam como uma coisa levaria à outra, ou usam pseudo-explicações ideologizantes que não permitem saber como a hipótese da pessoa poderia provar-se falsa por meio de critérios objetivos. A finalidade deste artigo é mostrar de que modo uma coisa poderia levar à outra, sem entrar no mérito se existe mesmo essa relação.
Eu já comentei sobre este tema no artigo “Há uma relação direta entre limpar seu banheiro você mesmo e abrir sem medo um Mac Book no ônibus?“. Contudo, explicar um possível mecanismo por meio do qual essa relação causal fosse produzida não era o único escopo daquele texto, portanto, justifica-se um mais explícito e desenvolvido para este ponto, ainda que eu recomende sua leitura para a discussão sobre se essa relação existe empiricamente e sobre a relação entre luxo e redistribuição de renda.
Antes de descrever o mecanismo, três pontos precisam ficar esclarecidos de antemão:
1) Essa discussão volta-se para definir se a redistribuição de renda pelo governo seria capaz de promover menos violência por meio do aumento da igualdade de renda. Portanto, o modelo supõe que, se o governo fizer isso, a criminalidade cai.
2) A discussão trata de países desenvolvidos. O objetivo disso é separar o problema da desigualdade de renda do problema da pobreza absoluta encontrada nos países subdesenvolvidos, onde os pobres têm uma condição de vida muito miserável economicamente. Lembre, por exemplo, que os 5% mais pobres dos Estados Unidos têm renda média superior à 68% da população mundial e 50% da população brasileira.
Suponha que estejamos em um país desenvolvido. A renda do cidadão médio é x, mas existem pessoas que ganham muito mais que x (chegando a 20x) e que ganham bem menos (chegando a x/6), dadas as condições vigentes do mercado de trabalho e de distribuição de lucros das empresas, por isso o coeficiente de Gini é alto. O total da renda disponível para as pessoas privadas corresponde à maior parte do PIB, devido à baixa tributação, e o padrão de vida é elevado, uma vez que a renda per capita (PIB per capita) é elevada. O nível de criminalidade é y.
Digamos que, ouvindo especialistas no assunto, o governo resolva introduzir um imposto de renda progressivo com o intuito de diminuir a desigualdade de renda. Por meio desse tributo, grande parte da renda daqueles que ganham acima da média irá para o governo, que, em parte, a redistribuirá para aqueles que ganham abaixo da média, e, em parte, para custear serviços públicos mais generosos para a classe média (Lei de Director) e outras atividades do Estado (incluindo rent-seeking por grandes empresas e outros interesses especiais organizados).
Lembre que o resultado final da distribuição de renda quando se torna esta mais igual é que todas as pessoas estarão ganhando uma renda mais próxima da média, sem o mesmo grau de elevada variação anterior. A desigualdade é maior quando há grande variação de rendas familiares ou individuais em relação à média, e menor quando há pequena variação de rendas familiares ou individuais em relação à média.
Supondo um PIB per capita e um PIB constantes, a renda total é redistribuída: grande parte dela agora está nas mãos do governo, mas uma parte desta será redistribuída para aqueles que ganham menos que a média. Como resultado, a renda das pessoas que ganham acima da média aproxima-se da média (a menor distância agora será, digamos, 5x) e a renda das pessoas que ganham abaixo da média aproxima-se da média (a menor distância agora será, digamos, x/2). O coeficiente de Gini cai, medindo uma menor desigualdade de renda. Como afirmado anteriormente, supomos que a violência cai.
Por que ela cai?
Um dos motivos poderia ser: como as pessoas que ganham abaixo da média agora ganham mais, elas não passam mais necessidade, por isso não tentarão realizar fraudes, roubos, etc. O problema dessa reivindicação é que a vida de pessoas pobres nos países desenvolvidos, apesar de ser mais difícil que a da maioria de seu país, não é miserável. Além disso, as pessoas pobres são minoria. Portanto, o discurso de que é a necessidade e o desespero que faz o ladrão não tem como ser aplicado genericamente às pessoas de menor remuneração nos países desenvolvidos. Além disso, essa seria uma explicação baseada em pobreza, não em desigualdade, o que não é nosso objetivo aqui.
Assim, só resta uma alternativa: há menos crime porque há menos renda disponível para as pessoas privadas. Isso ocorre de duas maneiras.
Primeiro, com a transferência forçada de renda para o governo, as rendas acima da média chegam mais perto da renda média. Isso significa que há menos renda entre as pessoas que ganham acima da média para ser roubada. Como essas pessoas acabam por ganhar quantias mais parecidas com aquelas ganhas pelas pessoas que ganham abaixo da média, é menor a vantagem de tentar roubá-las.
Portanto, esse efeito está relacionado com a simples transferência dessa renda do setor privado para o setor público, não com a redistribuição de uma parte dela para aqueles que ganham abaixo da média.
Segundo, como supomos que o governo consiga transferir a renda das pessoas que ganham acima da média para si por meio da tributação, isso significa que quem assume posições melhor remuneradas (cujo produto marginal é maior) terá uma recompensa menor, o que diminui o incentivo de trabalhar mais para ganhar mais, já que trabalhar mais para ganhar mais está sendo tributado (desincentivado).
Mas isso também significa que quem tenta fraudar as regras do jogo para conseguir uma maior recompensa também terá menos incentivo, uma vez que quem se esforça para roubar/fraudar mais para ganhar mais está sendo tributado também. A pessoa pode obter uma elevada renda com fraude, mas não poderá usufruir de boa parte dela por conta da ação do Fisco (que, repita-se, pressupomos aqui, inevitável).
“O incentivo para produzir é o mesmo para fraudar as regras do jogo“, nas palavras de Steve Randy Waldman, e, portanto, com um incentivo menor dada a menor desigualdade, há menos incentivo tanto para maior produção quanto para maior quebra das regras do jogo. Aqui o efeito é completamente da transferência forçada da renda de quem ganha mais para o governo, não de redistribuição de uma parte dessa renda para quem ganha abaixo da média.
Isso também significa uma inexatidão significativa do nosso modelo em relação ao mundo real: se o incentivo para fraudar as regras do jogo é menor, isso significa que o incentivo para produzir mais dentro das regras do jogo também é menor, portanto, é irrealista assumir que o PIB, o PIB per capita e a renda média das famílias/indivíduos permaneceria o mesmo. Essas variáveis sofreriam uma queda junto com a da taxa de criminalidade e do coeficiente de Gini.
Logo, se menor desigualdade leva a menor criminalidade, isso ocorre porque: 1) o Estado apropria-se forçadamente da renda das pessoas para evitar que elas sejam roubadas; e/ou 2) o Estado apropria-se forçadamente da renda das pessoas para evitar que elas usufruam dessa renda, independente se a obtiveram lícita ou ilicitamente, diminuindo o incentivo para que elas tentem obter essa renda.
Perceba que isso joga um grande questionamento sobre a adequação de diminuir a desigualdade por meio da tributação para diminuir a criminalidade. O que você está dizendo é que o Estado deveria ele mesmo apropriar-se forçadamente das rendas das pessoas que ganham acima da média para evitar que essas rendas sejam apropriadas forçadamente ou fraudulentamente por pessoas privadas, e para evitar que essas rendas sejam usufruídas por criminosos vetando esse usufruto também aos nãos criminosos.
Uma analogia: o fato de mulheres ingerirem bebida alcoólicas em festas aumenta as ocorrências de estupro, já que homens podem aproveitar-se da maior vulnerabilidade sob efeito do álcool para estuprá-las. Isso significa que devemos proibir as mulheres de ingerirem bebida alcoólica?
Outra analogia: devemos abolir qualquer premiação (ou reduzi-la ao máximo) em campeonatos de atletismo porque algumas pessoas vencem competições de atletismo fraudando as regras?
Se existem alternativas para redução dos crimes que envolvam não retirar recursos/liberdades de pessoas que não cometeram nenhum crime, no mínimo é mais desejável priorizar essas alternativas.
Por outro lado, nem todos os objetivos da sociedade devem estar subordinados ao da redução da criminalidade.
O objetivo das mulheres em ingerir bebida alcoólica porque acham bom fazer isso não deveria ser restringido porque criminosos vão tentar se aproveitar disso para violentá-las, ou o objetivo dos atletas profissionais de ganhar um prêmio em uma competição não deveria ser restringido porque alguns jogadores vão tentar fraudar as regras do jogo.
Se o único objetivo socialmente relevante fosse o da redução da criminalidade, e nenhum objetivo privado importasse, restringir outros objetivos à vontade desde que se diminua a criminalidade seria encarado como justo, mas é muito difícil que alguém ache correto isso. No mínimo, esse objetivo é um dentre outros a serem sopesados.
Inclusive cabe ressaltar que um nível de produção menor (e uma taxa de crescimento da produção menor) significa uma renda menor para os mais pobres. Há custos de oportunidade na opção entre produção e redistribuição que não devem ser olvidados, caso se queira justiça social.
Portanto, mesmo que menor desigualdade de renda leve a menor criminalidade, não está clara a legitimidade do governo para tentar fazê-lo por meio de uma elevada e progressiva tributação da renda. Esta pode justificar-se por outros motivos, mas a redução da criminalidade como seu objetivo final certamente não é um deles.
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Nota: Não estou dizendo que a desigualdade de renda deva ser maximizada, para que haja incentivos adequados à produção. Não podemos também olvidar o fato de que grande parte das desigualdades (não só de renda) que encontramos em vários países ao redor do mundo são não só injustas, como ineficientes. Mas, em geral, tendo a pensar que é um equívoco concentrar-se na desigualdade de renda por si só. É importante olhar para coisas como mobilidade de renda, oscilações na renda ao longo do ciclo de vida(comparando a frequência da pobreza crônica com a pobreza meramente transitória), a relação entre desigualdade de consumo e desigualdade de renda, a relação entre pobreza na renda e pobreza multidimensional, a (i)mobilidade no topo dos muito ricos, ocrescimento da renda dos mais pobres, as taxas de imigração de trabalhadores desqualificados e assim por diante, para compreender onde reside o aspecto problemático e quais são suas causas. Veja mais sobre uma visão dinâmica em pobreza e desigualdade aqui.
Publicado originalmente no Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart
Valdenor Júnior é advogado. Editor no site Mercado Popular. Escreve também para o site internacional Centro por uma Sociedade sem Estado (C4SS) e mantém o blog pessoal Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart. Seus principais interesses são filosofia política, economia mainstream e institucional, ciência evolucionária, genética comportamental, naturalismo filosófico, teoria naturalizada do Direito, direito internacional dos direitos humanos e psicologia cognitiva.