Escrito com Juliana Damasceno*

Os impactos sentidos pelo mercado de trabalho com a recente crise atravessada pelo Brasil, assim como a reforma trabalhista aprovada no último ano, deram destaque para o fenômeno chamado de “Pejotização”. Trata-se de uma modalidade de contratação que permite ao trabalhador (pessoa física) prestar serviços na forma de empresa individual (pessoa jurídica), no lugar do vínculo empregatício tradicional com carteira assinada.

Recentemente, tem ganhado força a ideia de que a transição para prestação de serviços na forma de PJ – e seu consequente impacto estrutural sobre o mercado de trabalho – teriam sido reforçados pela recessão econômica. Há, inclusive, quem associe esse fenômeno à recuperação do mercado de trabalho observada nos últimos trimestres.

A hipótese da Pejotização vêm da análise de muitos especialistas sobre a variação agregada, no mesmo período, de duas condições ocupacionais: Empregado com Carteira Assinada e Conta Própria com CNPJ. De fato, tendências opostas podem ser observadas no quantitativo de profissionais ocupados nestas categorias desde o segundo trimestre de 2017, colaborando para o argumento da Pejotização.

A partir deste trimestre, é possível observar ainda a mesma tendência para o total da população ocupada e o total de Conta Própria com CNPJ, em linha com a ideia de que a Pejotização estaria puxando a retomada do mercado de trabalho (vide gráficos a seguir).

­­­

Fonte: Microdados da PNAD Contínua. Elaboração Própria.

Diferentes razões são apontadas pelos especialistas para explicar a disseminação dessa prática. Por um lado, alguns sustentam que a decisão parte do empregado, que prefere se organizar como empresa por conta de incentivos previdenciários e fiscais, como pagar menos Imposto de Renda (IR) e Contribuições para o INSS. Por outro, há aqueles que argumentam se tratar de uma decisão do próprio empregador, que consegue, dessa forma, reduzir seus custos com encargos trabalhistas em um país onde a folha de salários é fortemente tributada – gerando, portanto, uma suposta precarização do trabalho.

Apesar da coerência por trás dessa interpretação, no entanto, é preciso reconhecer suas limitações. A análise com base nos dados agregados não permite garantir que o incremento de determinada ocupação decorre da queda observada em outra. Ou seja, é possível que os movimentos opostos observados para as duas categorias não revelem uma migração e, portanto, não se tratem de evidência definitiva da Pejotização.

Para esclarecer o que tem, de fato, determinado a dinâmica e estrutura do mercado de trabalho no período analisado, importa “seguir” indivíduos ao longo do tempo, a fim de confirmar (ou não) a migração entre ocupações, com base em dados da PNAD Contínua (PNADC) e a partir de matrizes de transição, descreve-se a seguir a metodologia empregada para tal análise.

Como testar a hipótese de Pejotização? 

As chamadas “Matrizes de Transição” representam, nesse contexto, uma ferramenta de grande utilidade, pois permitem mapear origem e destino do entrevistado a partir de informações fornecidas em diferentes momentos. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, que faz cinco entrevistas trimestrais em cada domicílio, é portanto uma fonte ideal para analisar transições entre trimestres de diferentes condições ocupacionais.

Na análise a seguir, serão consideradas as seguintes condições ocupacionais: (i) Empregado com Carteira Assinada; (ii) Empregado sem Carteira Assinada; (iii) Empregado no Setor Público; (iv) Empregador com CNPJ; (v) Empregador sem CNPJ; (vi) Ocupado por Conta Própria com CNPJ; (vii) Ocupado por Conta Própria sem CNPJ; (viii) Trabalhador Familiar; (ix) Desempregado; e (x) Fora da Força de Trabalho (grupo indicado nos gráficos seguintes como Fora da FT).

O acompanhamento das transições entre períodos (trimestres) permite analisar para quais condições ocupacionais os indivíduos migraram ou, alternativamente, a partir de quais condições ocupacionais os indivíduos partiram. Com isso, é possível saber tanto para onde migraram os trabalhadores formais, tal como saber qual a origem dos trabalhadores ocupados como Conta Própria com CNPJ, permitindo a investigação mais precisa da hipótese de Pejotização.

As “Matrizes de Transição” construídas a partir da PNADC terão cobertura de cinco trimestres, de forma que os mesmos indivíduos poderão ser analisados no mesmo trimestre em uma dupla de anos. Deste modo, é possível observar migrações entre condições ocupacionais em um ano, excluídos os efeitos de sazonalidade. Seguindo a limitação de disponibilidade dos dados da PNADC, serão analisadas as duplas de trimestres de 2015.IV-2016.IV até 2017.III-2018.III.

A Pejotização é tão significativa quanto se pensa?

O gráfico abaixo, cobrindo de 2015.IV a 2018.III, mostra o destino no respectivo trimestre (t) daqueles que se encontravam Empregados com Carteira Assinada no mesmo trimestre do ano anterior (t-1). Desconsiderando as permanências, isto é, aqueles que declararam continuar Empregados com Carteira Assinada no mesmo trimestre do ano seguinte, é possível observar as migrações para cada par de trimestres.

Ao longo período analisado, destacam-se 3 principais destinos dos Empregados com Carteira Assinada: Desempregado, Fora da FT e Empregado sem Carteira Assinada. Por outro lado, a migração que configura Pejotização (isto é, destino Conta própria com CNPJ) mostrou-se bastante limitada, variando entre 0,6% e 0,8%.

Observando as informações referentes ao último par de trimestres, temos a seguinte distribuição, em 2018.III, daqueles que declararam estar Empregados com Carteira Assinada um ano antes (2017.III):

  • 5,2% encontravam-se Fora da FT;
  • 5,0% Empregados sem Carteira Assinada;
  • 4,8% Desempregados;
  • 2,2% como Conta Própria sem CNPJ;
  • 1,7% no Setor Público;
  • 0,7% como Empregador com CNPJ;
  • 0,6% como Conta Própria com CNPJ; e
  • 0,1% como Trabalhador Familiar.

Os demais 79,7% se mantiveram Empregados com Carteira Assinada entre tais trimestres.

Fonte: Microdados da PNAD Contínua. Elaboração Própria.

A baixíssima migração referente à Pejotização em todo o período (e menos de 1% no último Trimestre) mostra que esse tão alardeado movimento não explica de fato a expansão da categoria Conta Própria com CNPJ nos últimos trimestres. É oportuno, portanto, realizar o exercício inverso – isto é, investigar a origem desse quantitativo de firmas individuais cada vez maior.

O gráfico abaixo, cobrindo igual período, mostra as condições ocupacionais de origem no referido trimestre (t-1) daqueles que se encontram no mesmo trimestre do ano seguinte (t) como Conta Própria com CNPJ. Novamente desconsiderando as permanências, isto é, aqueles que já haviam declarado ser Conta Própria com CNPJ no mesmo trimestre do ano anterior, destacam-se 2 principais origens das PJs individuais: Conta Própria sem CNPJ e Empregador com CNPJ.

Confirmando os resultados obtidos pelo exercício anterior, a migração que configura Pejotização (isto é, origem Empregado com Carteira Assinada) apresentou números mais contidos, variando entre 3,9% e 5,4%.

Também quanto ao último par de trimestres, temos a seguinte distribuição, em 2017.III, daqueles que declararam ser Conta Própria com CNPJ um ano depois (2018.III):

  • 26,7% eram Conta Própria sem CNPJ;
  • 8,8% Empregador com CNPJ;
  • 4,8% Empregado sem Carteira Assinada;
  • 3,9% Empregado com Carteira Assinada;
  • 3,6% Fora da Força de Trabalho;
  • 2,8% Desempregado;
  • 0,9% Setor Público;
  • 0,8% Empregador sem CNPJ; e
  • 0,7% como Trabalhador Familiar.

Os demais 46,9% se mantiveram como Conta Própria com CNPJ entre tais trimestres.

Fonte: Microdados da PNAD Contínua. Elaboração Própria.

Tais dados permitem responder, enfim, que tipo de movimento tem determinado a expansão dos Contra Própria com CNPJ: cerca de ¼ dessas novas firmas individuais eram Contra Própria sem CNPJ, ou seja, já estavam ocupados sem vínculos empregatícios, mas passaram a ter um registro formal de empresa, o que acarreta em diferentes benefícios individuais, como maior segurança jurídica, maiores possibilidades de tomada de empréstimos e inclusão no sistema previdenciário.

Conclusão: Não é a Pejotização, mas a Formalização

Como foi visto, o atual movimento de recuperação do mercado de trabalho com redução dos empregados com Carteira Assinada e aumento dos ocupados por Conta Própria com CNPJ não se explica, como muitos afirmam, pela Pejotização do mercado de trabalho, mas de sua Formalização, uma tendência positiva, poismais pessoas estão passando de ocupações e serviços sem registro formal para a possibilidade de o fazer com contratos. Não há evidência, portanto, para maiores alarmes de precarização do trabalho, quando o que se vê de fato é o contrário.

*Juliana Damasceno é economista formada pela UFRJ e pesquisadora da área de contas públicas no IBRE/FGV

Compartilhar