No fim de 2012, o futuro presidente dos Estados Unidos cravou, em sua conta no Twitter:
“O conceito de aquecimento global foi criado por e para os Chineses, com o intuito de tornar a indústria manufatureira americana não competitiva”. Conciso e direto, o tweet viralizou já na época. Com mais de cem mil retweets e sessenta mil likes hoje, é visível que Trump não esteve – nem está – sozinho nas redes sociais.
Ou, no original:
The concept of global warming was created by and for the Chinese in order to make U.S. manufacturing non-competitive.
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) November 6, 2012
O repertório daqueles que negam o aquecimento é vasto. Além da conspiração chinesa de Trump, outras justificativas comuns dizem que “trata-se de uma tentativa da ONU de estabelecer um pacto de governança global, para minar as soberanias nacionais”, ou que o planeta está se aquecendo sem que tenha sido provada a influência humana, que “CO2 não é um poluente”, ou “a culpa é das variações da radiação solar”, ou “a culpa é dos vulcões”.
A postura dos seguidores de Trump respeito do clima e de boa parte do público brasileiro diante da necessidade de uma reforma na previdência representam duas instâncias de um mesmo fenômeno: o negacionismo.
Segundo tradução livre do verbete “denialist” no dicionário Oxford, um negacionista “se recusa a admitir a verdade de um conceito ou proposição apoiado pela maioria da evidência científica ou histórica”.
Na questão do clima, nega-se alguma parte do seguinte: nosso planeta esquentou nos últimos 150 anos, e em particular de forma acelerada nos últimos 40 devido aos gases de efeito estufa, especialmente CO2, emitidos pelo homem.
No paralelo previdenciário, nega-se a importância, urgência ou extensão da reforma necessária ao sistema de previdência brasileiro. O Brasil já gasta com aposentadorias e pensões percentual do PIB similar ao de países ricos (que possuem, na média, população bem mais idosa que a nossa). Com o envelhecimento da população, o porcentagem da renda brasileira destinada ao sistema previdenciária, que já é recordista, se tornará insustentável a gestão das contas públicas e proibitiva a aplicação de novas políticas públicas de grande extensão.
No mundo dos climatologistas acadêmicos, não há debate acalorado para determinar se
a ação humana é causadora do aquecimento global. De fato, 97% dos cientistas que publicam ativamente pesquisas a respeito do clima concordam com a tese. Esta não foi a conclusão de um, mas vários estudos científicos que buscaram responder o que a literatura acadêmica diz a esse respeito.
Um resumo de todas essas meta-análises (ou estudos sobre o que dizem os estudos) está disponível em artigo de John Cook, Naomi Oreskes e outros em 2016.
Mais importante que o consenso entre cientistas, no entanto, é o consenso das evidências: diferentes linhas empiricamente robustas apontam na mesma direção, reforçando a ação humana no aquecimento global. Entre elas, pode-se citar: o resfriamento de camadas superiores da atmosfera, menos calor escapando para o espaço na forma de radiação por conta do CO2, noites esquentando mais rápido que os dias, dentre outras.
Não pretendo, de forma alguma, esgotar o negacionismo climático num texto. Caso o leitor deseje se aprofundar mais no assunto, o site Skeptical Science (mantido pelo mesmo John Cook citado acima) reúne diversos dos mitos mais comuns sobre o clima, e até mesmo um curso online foi montado a respeito do tema.
A pesquisa de John Cook e companhia, no entanto, vai além de meta-análise do que os pesquisadores do clima já escreveram. Ele pesquisou também sobre os elementos psicológicos que levam as pessoas a descartar o conhecimento científico.
Cook sustenta que o negacionismo possui cinco vertentes principais: falsos especialistas, falácias lógicas (que por sua vez, se desdobram em vários subtipos), expectativas impossíveis, cherry picking e teorias da conspiração. Estas são as ferramentas sustentam meu argumento. Todas caem como uma luva para abordar as falácias e mitos circundando a reforma da previdência.
O negacionismo científico – ou seja, a negação reiterada e irracional de determinadas evidências – tem sido estudado como um tema a parte. Em textos e estudos sobre o assunto, é comum encontrar uma lista de ferramentas pelas quais o negacionismo respira. No caso,
Nesse texto, pretendo citar três exemplos que tem aparecido no debate sobre reforma da previdência. Todos seriam possíveis. A ANFIP, associação de auditores da Receita Federal e responsável pelo cálculo alternativo do déficit previdenciário, chega a apresentar a líder do grupo (Maria Lúcia Fattorelli, filiada ao PSOL) como “uma das maiores autoridades em dívida pública no mundo”, sem que ela possua qualquer publicação original na área.
O foco, porém, estará em três aspectos, ligados na imagem à falácia lógica do “Red Herring”, das esperanças impossível e das teorias conspiratórias. As três tem sido parte importante do debate, inclusive no Congresso Nacional.
Assim como Trump crava que o aquecimento global é uma farsa criada pelos chineses para prejudicar americanos humildes, há quem considere a reforma da previdência – que atualmente (ainda) tramita como a PEC 287 – uma conspiração para beneficiar os mais ricos. No YouTube, um dos vídeos mais vistos sobre o assunto é do grupo “Povo Sem Medo”, liderado pelo possível candidato do PSOL à Presidência, Guilherme Boulos. A narração é do ator Wagner Moura, que diz:
“O governo Temer enviou para o Congresso um projeto que interessa apenas aos donos do dinheiro do país, que ataca duramente os trabalhadores. Eles querem acabar com o direito a aposentadoria para milhões de brasileiros e brasileiras.”
Se em um caso temos uma variedade de entidades científicas defendendo a teoria do aquecimento global, no outro também tem-se que diversos estudiosos e intelectuais de diferentes matizes defendendo a reforma.
A PEC 287 pode estar longe de ser um consenso, mas como falar em conspiração quando se tem inclusive nomes bastante progressistas, como o ministro do STF Luis Roberto Barroso, e Gilberto Dimenstein, dono do site Catraca Livre, defendendo a reforma? O que dizer do sociólogo Celso Rocha de Barros, certamente à esquerda do espectro político? Fora do PSOL ou PSTU, alguém crê a sério que Marina Silva integra uma conspiração dos “donos do dinheiro” para “atacar” trabalhadores? Uma maldade tão ampla e articulada não é explicação razoável.
Por que, então, os agentes do mercado apoiam a reforma? Como pode a reforma ser boa ao mesmo tempo para banqueiros e povo? A resposta passa pela compreensão de que não se pode tratar a economia do país como um jogo de soma zero, em que o ganho de um corresponde necessariamente à perda do outro.
Há, sim, efeitos na distribuição de renda. Alguns ônus são bastante visíveis para os trabalhadores, especialmente aqueles no setor público ou com muitas décadas de contribuição. Roberto Santos, em estudo para a FGV de São Paulo, revisou a literatura acadêmica que tentava responder à seguinte pergunta: o atual sistema de previdência, no fim das contas, reduz ou aumenta a desigualdade de renda?
Esta foi a resposta encontrada:
“O sistema previdenciário brasileiro atua como um mecanismo de fortalecimento da desigualdade no país. Apesar de sua progressividade por diversos canais, ainda há alguns efeitos fortemente regressivos do sistema, com destaque para as regras diferenciadas de aposentadoria dos funcionários públicos com relação aos privados e autônomos. Tais regras geram uma redistribuição de renda profunda e aguda em prol dos indivíduos mais abastados (superando em muito a redistribuição para os indivíduos mais pobres), a qual é ainda mais destacada nas regiões mais desiguais do pais.”
Apesar da existência de alguns mecanismos que de fato redistribuem renda, o impacto final de muitas regras previdenciárias é concentrador. Os fatores regressivos seriam mais relevantes que atingem os mais pobres, como a aposentadoria rural e o Benefício de Prestação Continuada. Por sinal, estes já estão praticamente fora da reforma proposta. E o texto lido por Wagner Moura focava a idade mínima de aposentadoria, justamente um dos aspectos progressivos da reforma.
O gráfico abaixo mostra como a aposentadoria por tempo de contribuição está concentrada em regiões ricas do país. O valor destas aposentadorias também é maior, em média, e quase todo concentrado em regiões urbanas.
Em política econômica, muitos benefícios de uma reforma são difusos. O fim da hiperinflação e a redução da pobreza extrema são dois exemplos de fenômenos que beneficiaram toda a sociedade. A estabilidade macroeconômica também é um benefício difuso. Pagar a conta da previdência será cada vez menos viável – e, sem escapatória, será pago como dívida, imposto ou inflação.
Com a reforma, manter na jaula o dragão inflacionário seria mais fácil para o Banco Central. Como assim? Segundo o próprio BC diz desde o governo Dilma (e os analistas de mercado acreditam e apostam nisso), a concretização da reforma diminuiria a taxa de juros neutra da economia, isto é, daria espaço para uma SELIC menor sem que a inflação subisse.
Creio que podemos concordar que a sociedade como um todo deseja a menor SELIC possível (ou pelo menos, bem menor do que a que temos hoje). Isso traria consequências positivas para o governo e empresas, que tomariam empréstimos mais baratos. Boa parte dos analistas e agentes de mercado também deseja isso – é preferível uma SELIC menor, num ambiente com menos risco de calote, do que uma taxa de juros alta por trás de uma dívida com trajetória insustentável.
Em economia, esses benefícios difusos podem alinhar o interesse dos “donos do dinheiro” ao de qualquer brasileiro. A teoria da conspiração também carece de verossimilhança: se o objetivo é prejudicar os mais pobres, porque o projeto afeta justamente a política social menos efetiva (e mais custosa) dentre as principais funções do Estado no Brasil? E como conseguiu agregar a seu favor uma coalização que inclui intelectuais e políticos de esquerda?
Há décadas, o governo federal avalia o resultado da previdência por um método, basicamente uma versão sofisticada de subtrair gasto da arrecadação. Para o sistema geral, a regra tem sido o déficit. Se você somar mais algumas coisas como receita e não considerar parte do gasto, como os benefícios para funcionários públicos, o déficit some. Qual a relevância desse cálculo alternativo para o debate em questão? Pouca ou nenhuma.
O debate em torno da existência do déficit previdenciário é maior jogada de marketing dos opositores da reforma. Concentrar o debate em torno de um cálculo desvia a atenção para longe do núcleo do problema. O déficit em si é pouco relevante e, sob certas circunstâncias, para alguns países, ele pode não ser um problema.
Não é o nosso déficit que gera a necessidade de reforma, mas sim a trajetória futura. Cerca de 13% do que se produz no Brasil tem como destino o sistema de previdência, um dos maiores níveis do mundo, mesmo considerando a população jovem. Nas próximas décadas, o número de trabalhadores produzindo (e contribuindo) diminuirá aceleradamente com relação aos aposentados. Seja qual for o cálculo do déficit, o sistema já consome mais de metade dos impostos destinados a gastos federais – e cresce a cada ano.
No caso de governos estaduais, como o Rio Grande do Sul, cada real gasto com um servidor público trabalhando correspondeu a R$ 1,44 com servidores inativos.
Tal como é irrelevante, para o debate climático, discutir se o CO2 se encaixa na definição de poluente das agências de proteção ao meio ambiente, também não importa muito saber se tivemos déficit ou superávit em 2016, 2015, 2012, etc. O passado já está escrito e não pode ser mudado – cabe a nós definir que tipo de sociedade iremos construir para amanhã.
A insistência na negação do déficit desvia o foco do debate de maneira contraproducente. Esta tática de desvio de foco aparece em diferentes esferas de discussão, e já tem até um nome em inglês: Red Herring. Por aqui, poderíamos dizer que a negação do déficit joga uma cortina de fumaça sobre a discussão.
“Ah, o problema é a corrupção! Se parassem de roubar e cortassem as regalias daqueles deputados e senadores, não precisaríamos fazer reforma”. Você já ouviu essa frase. Todos nós gostaríamos que fosse verdadeira, pois tornaria fácil uma solução. Infelizmente, não é.
Mesmo que todos os privilégios de políticos fossem reduzidos drasticamente, o problema da previdência não seria sanado. Mesmo se o orçamento da Câmara dos Deputados e do Senado fosse reduzido a zero, o problema permaneceria. Mesmo se todos os deputados devolvessem anualmente o valor encontrado no apartamento de Geddel Vieira Lima, o problema permaneceria.
Quem acredita nessa linha de argumento erra feio, e erra rude. Primeiramente, é preciso dizer que nenhum país do mundo jamais conseguiu erradicar a corrupção por inteiro, de modo. Mesmo em países escandinavos, onde alguns acreditam que reina um (gelado) paraíso na terra, existe corrupção. Mesmo assim, reduzir a corrupção e regalias a zero é tão improvável que não serve como alternativa factível à reforma.
O corte de regalias e privilégios de deputados e senadores é necessário, mas nem de longe é suficiente para resolver o problema das contas públicas. Veja no próximo gráfico a comparação entre o valor do déficit previdenciário, de um lado, com o custo do legislativo federal (área mais clara da coluna menor) de outro. O déficit é assustadoramente maior – 215 bilhões versus 10 bilhões em 2016, aproximadamente. Aí consideramos todos os gastos do legislativo, desde servidores concursados à energia elétrica, até o que vai para os parlamentares gastarem em seus gabinetes.
“Ah, mas e a corrupção?”.Façamos um simples exercício mental. Recentemente foi descoberto um apartamento com 51 milhões de dinheiro desviado, ligados a um parlamentar (o esquema teria durado três anos). Se cada parlamentar da Câmara desviasse, de fato, verba pública com a mesma voracidade (51/3 = 17 milhões de reais por ano), teríamos então que o custo efetivo do legislativo seria de 20 bilhões por ano.
E este exercício mental ainda é problemático. Geddel Vieira Lima, o parlamentar que está sendo investigado pelos 51 milhões, era do alto clero do governo – ocupava posição de alta influência durante os governos de Dilma e Temer. Muito provavelmente, a maioria não acumulou tal montante, mesmo se quisesse. Também é errôneo considerar que absolutamente todos os parlamentares praticam tamanha roubalheira. O déficit é um conceito de fluxo, que ocorre anualmente, já os 51 milhões não poderiam ser recuperados com a mesma frequência. E o custo do Legislativo é uma medida muito ruim para as regalias legalizadas que os parlamentares recebem, pois inclui vários outros tipos de gasto. No entanto, o cálculo serve para mostrar que a reforma segue sendo necessária, mesmo que a corrupção seja minimizada.
Na questão do aquecimento global, pessoas inteligentes negam o fenômeno dizendo simplesmente que “está frio lá fora”. Dessa forma, colocam uma expectativa impossível sobre o fenômeno como requisito para aceitá-lo como verdade – a probabilidade de dias quentes aumenta com as mudanças climáticas, mas obviamente o tempo frio continuará a existir (em menor frequência do que hoje). Da mesma forma, pessoas no nosso país negam a necessidade da reforma dizendo, essencialmente: “a corrupção existe”. Exigir que a corrupção seja completamente erradicada para que apenas depois possamos pensar em reforma é como só querer aceitar o fenômeno do aquecimento global apenas se na Antártica o verão estiver igual ao de Copacabana.
Apesar do negacionismo e da irracionalidade estarem presentes nos mais diversos campos de debate, nem tudo são trevas. Os mesmos autores que identificaram elementos comuns ao negacionismo científico também fizeram descobertas importantes sobre a melhor forma de comunicar a ciência e refutar os mitos. Entre as dicas, uma delas é focar em apresentar primeiro, e com mais ênfase, uma versão sucinta da informação verdadeira, ao invés de dar destaque ao mito. Isso vale, inclusive, como crítica a parte dos esforços de comunicação do governo sobre a reforma .
Entender os elementos comuns que levam pessoas de boa fé a negar ciência e fatos demonstráveis empiricamente pode contribuir para o debate público. Você pode entender perfeitamente todos os problemas da previdência e ainda assim ser contra a reforma – querer um país que gasta drasticamente mais com idosos do que com crianças não faz muito sentido, mas este é um direito seu, e esta é a beleza da democracia. A proposta atual de reforma pode até ser derrotada – não podemos deixar, no entanto, que o negacionismo falacioso saia vencedor.
* Escrito com ajuda de Pedro Menezes