Por Valdenor Júnior.
O anticapitalista de livre mercado daqui do blog, o Rodrigo Viana, escreveu recentemente um texto denominado “Desestatização à cubana, ou: Por que eu não defendo o libertarianismo vulgar“. Ali ele defende o tipo de desestatização feita recentemente em Cuba, onde a propriedade pública é substituída por cooperativas de trabalhadores já empregados no setor antes estatizado. Denomina-a de “desestatização à cubana”, e coloca como um de seus defensores o libertário Charles Johnson, em Two Words on “Privatization”:
“‘Privatização’, como compreendida pelo FMI, pelos governos neoliberais e pelas corporações de barões assaltantes é um monstro bem diferente da ‘privatização’ como compreendida por radicais de livre mercado. O que libertários consistentes defendem é a devolução de toda riqueza ao povo que a criou e a reconstrução de toda indústria sobre o princípio de livre associação e troca mútua voluntária.
Então aqui está minha proposta para a reforma linguística. O que defendemos é a devolução da riqueza e indústrias confiscadas pelo estado de volta para a ‘sociedade civil’.”
O Viana contrasta isso com as privatizações “neoliberais”, entendendo por neoliberalismo um conjunto de “medidas políticas que buscam vender ativos públicos ou estatais para os interesses corporativos, geralmente sob preços muito baixos” e que “todo esse processo neoliberal faz entregar para uma elite corporativa um ativo onde os custos de instalação, infra-estrutura e start-up foram socializados através do espólio promovido pelos impostos.”
De fato, concordo que, se realmente quisermos dar um sentido para a palavra “neoliberalismo”, temos de defini-la como “liberalização econômica dirigida por negociação política, coordenação intergovernamental e organismos internacionais, com especial atenção aos efeitos macroeconômicos”, o que se relaciona com o fato da economia de mercado ter vencido por W.O, pela desistência de seu concorrente, não por uma mudança nas atitudes públicas em direção ao liberalismo. (contudo, o termo causa tanta confusão, que eu prefiro não usá-lo)
Agora, geralmente menciona-se que Milton Friedman seria “neoliberal”. O que é um grande erro, pois Milton Friedman era um liberal clássico autêntico. Contudo, você pode se perguntar: Friedman preferiria as desestatizações à cubana ou as privatizações tucanas (sob o FHC) “neoliberais”? Que modo ele favorecia para que as empresas públicas fossem privatizadas/desestatizadas?
Bem, para falar a verdade, o velho Friedman preferia as desestatizações à cubana. Sim, isso mesmo, o suposto “neoliberal” não defendia a venda das empresas públicas para as grandes corporações ou para quem pagasse mais em um leilão público.
Prova nº 1:
No vídeo abaixo, segue-se uma conversa entre Milton Friedman e um interlocutor, acerca da privatização na Hungria, dos 18:53 até os 20:04. Vou primeiro transcrever a conversa. E depois vocês podem confirmar assistindo ao vídeo:
[Milton Friedman narrando] Os convidados desta festa não se interessam por pequenos empresários como Martin. Altos executivos poderosos da América do Norte e da Europa Ocidental se interessam por coisas maiores. (…) Promoverão empreendimentos conjuntos entre empresas ocidentais e estatais. Para prosperarem precisam ser amigos dos políticos e dos burocratas poderosos. É lobby de alto escalão, aos moldes ocidentais. O perigo é que no processo, burocratas do governo local e grandes empresas estrangeiras congelam os pequenos empresários.
[o interlocutor fala] Ele sabe bem que o governo se preocupa em não vender o país.
[Milton Friedman] Os bens da Hungria pertencem ao povo.
[Interlocutor] certo.
[Milton Friedman] Não acho que devam ser vendidos. Você é cidadão húngaro. Quem é dono das estatais?
[Interlocutor] A sociedade.
[Milton Friedman] Não, é o povo.
[Interlocutor] sim…
[ Milton Friedman] Então, entreguem-nas ao povo.
Assista você mesmo ao vídeo:
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=l1j-pRWx3hg[/youtube]
Prova nº 2:
Milton Friedman, no ensaio “Using The Market for Social Development“, afirma que devemos tomar cuidado, ao privatizar, de converter um monopólio público em um monopólio privado, e afirma que sua forma favorita de privatização é entregar as empresas públicas… ao povo:
“Minha própria forma favorita de privatização não é vender participação acionária, mas dar as empresas possuídas pelo governo aos cidadãos. Quem, eu pergunto aos oponentes, possui as empresas estatais? A resposta invariavelmente é, “O público”. Bem, então por que não fazer disso uma realidade ao invés de floreio retórico? Configure-a como uma corporação privada, e dê a cada cidadão um ou uma centena de ações/quotas nela. Deixe-os livres para comprar ou vender suas ações/quotas. As ações/quotas iriam para as mãos dos empreendedores que poderia manter a empresa, por exemplo, o sistema postal, como uma única entidade se for mais rentável fazê-lo ou dividi-la no número de entidades que parecesse mais rentável.” (tradução livre)
Conclusão: Se usarmos o termo de Viana, “desestatização à Cubana”, em sentido amplo, de forma consistente com a definição de Charles Johnson (“O que defendemos é a devolução da riqueza e indústrias confiscadas pelo estado de volta para a ‘sociedade civil’”), teremos que concluir que Milton Friedman defendia justamente isso.
Ele considerava que era uma forma ruim de privatização simplesmente vender as empresas estatais para corporações já constituídas, mas defendia que deveríamos devolvê-las à população e permitir que os cidadãos, conforme a livre troca de suas participações na empresa, acabassem por reconfigurar a empresa em uma ou mais firmas a depender das condições daquele mercado em específico. (e claro, sendo garantida a livre entrada de concorrentes no setor)
Ainda que a desestatização em Cuba envolva a ideia de “cooperativas”, enquanto Friedman prioriza o modelo societário de firma (com base em ações ou quotas), não se pode negar que Friedman apoiava entusiasticamente uma espécie de desestatização à cubana e a desestatização preconizada por Charles Johnson, e não a privatização “neoliberal” ou nos moldes feitos no Brasil na década de 90.
Valdenor Júnior é advogado. Desde janeiro de 2013, tem o blog Tabula (não) Rasa & Libertarianismo Bleeding Heart onde discute alguns de seus principais interesses: naturalismo filosófico, ciência evolucionária com foco nas explicações darwinianas ao comportamento e cognição humanas, economia, filosofia política com foco na compatibilidade entre livre mercado e justiça social. Com Darwin aprendeu a valiosa lição de que entender o babuíno é mais importante do que se imagina.