O pesquisador e professor Sílvio Meira assumiu para si o papel de arauto das más notícias, logo na abertura do 4º Congresso Internacional do Livro Digital. De bibliotecários a livreiros, muitos profissionais saíram do auditório se sentindo um pouco mais desempregados, porém alertas para uma realidade que já está desenhada e pronta para acontecer: a transformação completa da indústria editorial.
“Se você olhar a transição de mosteiros e monges copistas para Gutenberg, quantos mosteiros se tornaram casas impressoras, gráficas, editoras ou livrarias? Nenhum”, diz. Meira recorda que em uma janela de 50 anos, a invenção de Gutenberg mudou completamente o que se conhecia por produção de livros desde o final da antiguidade. E isso vai se repetir em nossa era.
“Essa transição que a gente está vendo agora está em andamento. Se for medir, desde o lançamento do Mosaic, que é o primeiro browser competente da internet, em 93, nós já temos 20 anos. Eu não tenho a menor dúvida de que dentro dos próximos 30 anos, completando o mesmo ciclo de 50 anos, a gente vai ter resolvido esse problema”.
Problema? Sim, o fato de a atual indústria editorial gerar lucro e meios de sobrevivência para uma parcela mínima de seus participantes, para Sílvio, é um problema que vai ser superado. “As transições não têm respeito nenhum pelo passado. Mas não têm mesmo!”. No entanto, ele aponta uma saída, um novo papel para o editor. Leia a entrevista abaixo com a mente aberta.
Queria começar com um assunto interessante que você falou no final da palestra, de que os próximos passos do mercado vão ser definidos por tentativas, erros e aprendizado. A indústria editorial é bem tradicional, está assentada sobre padrões sólidos desde o século 19, e agora recebe esse impacto. Como as editoras irão lidar com isso?
Uma parte significativa dessa indústria vai deixar de existir, para começar. Se você olhar a transição de mosteiros e monges copistas para Gutenberg, quantos mosteiros se tornaram casas impressoras, gráficas, editoras ou livrarias? Nenhum. Eles simplesmente ficaram lá achando que esse negócio não ia rolar, e tudo aconteceu em 50 anos. Se você olhar a história da transição do monge copista para a prensa de Gutenberg, em 50 anos você fechou todos os mosteiros copistas da Europa, exceto aqueles que tinham altíssimas especialidades de ilustração. Fechou todos em 50 anos. Essa transição que a gente tá vendo agora, ela já está em andamento. Se formos medir, desde o lançamento do Mosaic, que é o primeiro browser competente da internet, em 93, nós já temos 20 anos. Eu não tenho a menor dúvida de que dentro dos próximos 30 anos, completando o mesmo ciclo de 50 anos, a gente vai ter resolvido esse problema. Aí você diz: “ah, mas o cara é editor, ele tem publicações e livrarias que vendem milhões de livros…”. Certo, mas acontece o seguinte: vamos pegar um outro cenário. As pessoas dizem: “esse negócio de redes sociais, isso é um absurdo…”. Daqui a 30 anos, o presidente da República do Brasil vai ser um cara que quando era adolescente tinha uma conta no Facebook. Jogava todo dia. Provavelmente vai continuar jogando, esperando que alguma reunião termine enquanto fica jogando o Angry Birds do futuro, ou então um retrô. As coisas mudam. Em 1450, existiam famílias lutando para colocar seus filhos para serem monges copistas em mosteiros europeus porque era uma profissão segura, bem remunerada e era para a vida toda.
Hoje, literalmente, se eu quiser criar um negócio ao redor do meu livro, criar um PDF e colocar para vender, a renda que eu vou ter é a mesma ou maior do que se eu colocasse um mecanismo de distribuição para fazer isso. Sabe por quê? Porque estruturalmente ninguém ganha dinheiro com livro. Conjunturalmente alguns poucos caras ganham dinheiro com livro. Paulo Coelho ganha dinheiro com livro. A imensa maioria das pessoas não ganha dinheiro com livro. Se você fizer um levantamento da indústria literária brasileira ou de qualquer país do mundo e for ver como as pessoas que escrevem livro ganham dinheiro, tirando uma certa nata do leite, todo mundo ganha a vida em um outro trampo. Então tem alguma coisa errada aí. Desde o começo, mesmo na indústria de Gutenberg, tem algo errado. Se não tivesse, Carlos Drummond de Andrade não teria sido funcionário público, nem Machado de Assis, nem José de Alencar.
Então estruturalmente, o autor, que é um cara que foi criado — se tem uma coisa que a plataforma de Gutenberg cria é o autor — não ganha dinheiro escrevendo livro. Ele é aquele cara romântico, que escreve o que quer, porque tem alguma coisa a dizer para o mundo. Mas e se você disser para o mundo a partir do seu Facebook? Se a sua página no Facebook tiver 100 mil pessoas? Se a minha página no Facebook tiver 100 mil pessoas que queiram ouvir certas coisas, eu escreveria, depois imprimiria para quem quisesse comprar como lembrança.
As transições não têm respeito nenhum pelo passado. Mas não têm mesmo! A Seleção Brasileira não teve o direito de ganhar a Copa da Inglaterra (1966) porque tinha ganho as outras Copas. Ganhamos em 58, 62 e a gente tinha certeza absoluta que iria ganhar a Copa da Inglaterra. Foi o maior desastre futebolístico da história do Brasil. Por que isso? O futebol tinha mudado. As pessoas não eram mais as mesmas, mudou tudo, mudou o game. O que estamos vendo agora é uma mudança do jogo. Imagine esses livros-apps, literatura como aplicações e serviços. Cultura de entretenimento “de fundo literário” como processo interativo conectado. Se esse negócio começa a pegar, o livro pode sair dali. Eu não estou dizendo que necessariamente sairá dali. E o pessoal que está fazendo as regras lá não está perguntando o que a indústria literária está achando.
Estamos vendo uma onda muito forte hoje que é a do selfpublishing. Mas embora um autor adote o selfpublishing, cada um deles se torna um pequeno editor. E muitos autores simplesmente não gostam…
Vai acontecer um processo de reintermediação, como já aconteceu várias vezes na indústria da música. Alguém, numa nova forma, numa nova arquitetura de valor diz: “olha, eu sou o editor do seu negócio, eu vou formatar, eu vou colocar no ar, eu vou promover, eu vou articular, mas eu vou ter também outra renda associada a isso. Não é o mesmo domínio que você tinha sobre o autor como antigamente, os autores viviam num domínio de escassez, com pouco papel, pouca tinta, pouca impressora, pouco espaço na estante… A estante da Amazon ou de outro publicador digital qualquer, é infinita. O meu problema agora é outro: como é que eu sou achado, como é que alguém vai comprar alguma coisa minha lá? Como é que alguém chega a mim? E o editor vai fazer esse trabalho? Se ele for fazer esse trabalho, ele é muito benvindo. Mas se ele for só dizer: “ah, eu acho que você só deveria escrever parágrafos ‘não sei o que lá’ porque a nova novela…”, eu caguei (sic). Eu é quem vou definir o que é e vou escrever do jeito que eu quiser. O lance do selfpublishing não é você dominar a inteireza da cadeia de valor para que a ideia saia da sua cabeça e você saia promovendo o livro digital do outro lado. É muito mais sobre você dizer: “o conteúdo é meu, porque eu posso refazê-lo a qualquer momento”.
Mas toda essa arquitetura nova que você acredita que um dia vai existir, tudo isso esbarra no copyright…
Ou não. Por exemplo, eu acho que os autores não ganham dinheiro com livro. Os autores ganham dinheiro na periferia do livro. Eu não ganho dinheiro com meu blog. Ninguém pagaria para ler meu blog. Mas eventualmente eu ganho dinheiro porque as pessoas me chamam para discutir isso. Isso acontece com quase todos os autores. Eles não ganham dinheiro com o que escrevem, é mais uma atitude de colaboração com o pensamento geral da humanidade, ou como a expectativa de cada um de ser reconhecido como parte dele. Os poucos que ganham, ganham fortunas e passam a depender da literatura. E o fato do digital ter aparecido não tem mudado esse negócio não.
Como assim?
A literatura como a gente conhece vai ser modificada radicalmente pela pirataria, mas numa escala em que ao mesmo tempo parece e não parece com o mercado da música. Porque música todo mundo ouve. Menos de 10% dos norte-americanos leem um livro depois de sair da universidade, isso nos Estados Unidos. Qual o percentual da população brasileira que leu algum livro depois de sair da universidade? Qual o percentual da população brasileira que leu algum livro? Não existe uma demanda infinita para as pessoas piratearem livros, porque livro é um negócio que dá trabalho para ler.
Se eu vou piratear Ulysses ou Dom Casmurro, eu vou gastar um tempão para ler esse negócio. Se a gente tivesse um problema de pirataria de literatura no Brasil, a gente deveria dar graças a Deus. Acho que eu vou escrever um texto sobre esse negócio. Se a gente tivesse pirataria de literatura, a gente deveria sair comemorando, soltando fogos, já imaginou o que significaria? Já imaginou o significado de pirataria literária? As pessoas fazendo o download de todas as obras de Érico Veríssimo, por exemplo. Aliás, uma parte da obra de Érico Veríssimo já deve estar em domínio público, como Machado de Assis, José de Alencar, e eu não vejo as pessoas fazendo esses downloads desesperados, e de repente a Câmara Brasileira do Livro sair correndo atrás de gente que está pirateando livro.
Esse negócio eu simplesmente não vejo acontecer, mas eu gostaria muito que acontecesse. logo depois que eu publicar, se eu descobrir que tem gente escaneando meu livro e tem 100 cópias piratas dele na rede, eu estaria muito bem. Eu tenho certeza absoluta que eu não vou ganhar dinheiro com esse livro que eu escrevi. Me deu um trabalho infernal, só a versão em papel me custou 1000 horas de trabalho contadas, ou 100 dias trabalhando 10 horas por dia. Abandonei todo o resto da minha vida, pedi uma licença na universidade para fazer isso, e antes disso publiquei 27 capítulos no meu blog que deve ter consumido mais ou menos 20 horas por capítulo. Então tem aí 1500 horas de trabalho. O retorno financeiro do livro jamais vai remunerar 1500 horas de trabalho. Se eu tivesse olhado para o custo de oportunidade, teria investido em outra coisa. Mas se eu tiver 100 links diferentes apontando para uma cópia pirata do meu livro, ele é um sucesso, e eu estarei gratificado por isso ter acontecido.
Perfil
Sílvio Meira é professor do Centro de Informática da UFPE e ex-cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R.). Sua formação inclui graduação em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e um doutorado em Computação pela Universidade de Kent, Canterbury. Já trabalhou como assessor da secretaria de política de informática do Ministério da Ciência e Tecnologia; foi membro do primeiro Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e presidente da Sociedade Brasileira de Computação. Trabalhou também como consultor do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).